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April 4, 2021 15:34
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1 | |
Universidade da Amazônia | |
A Carteira | |
de Machado de Assis | |
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2 | |
A Carteira | |
de Machado de Assis | |
...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. | |
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o | |
viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe | |
disse rindo: | |
— Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez. | |
— É verdade, concordou Honório envergonhado. | |
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem | |
de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o | |
bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, | |
que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as | |
circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a | |
princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida | |
da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia | |
remédio senão ir descontando o futuro. | |
Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos | |
empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, | |
e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma | |
voragem. | |
—Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e | |
familiar da casa. | |
— Agora vou, mentiu o Honório. | |
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes | |
remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, com que fundara grandes | |
esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa | |
à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais. | |
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus | |
negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em | |
um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, | |
dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os | |
trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o | |
Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente | |
falavam de política. | |
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro | |
anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era. | |
— Nada, nada. | |
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. | |
Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias | |
melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro | |
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3 | |
anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, | |
a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas. | |
A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de | |
carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, | |
o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, | |
com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da | |
tarde. | |
Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao | |
enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no | |
bolso, e foi andando. | |
Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, | |
andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, — | |
enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. | |
Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, | |
sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, | |
olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas | |
papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das | |
reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. | |
Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão | |
irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? | |
Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia | |
levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, | |
vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a | |
cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, | |
ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo. | |
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com | |
medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; | |
não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; | |
calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida | |
paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os | |
olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia | |
consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la. | |
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o | |
dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e | |
trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. | |
Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, | |
um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... | |
Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, | |
passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. | |
Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. | |
"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do | |
dinheiro," pensou ele. | |
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, | |
bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do | |
Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente | |
do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não | |
havia duvidar; era dele. | |
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um | |
ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um | |
amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a | |
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4 | |
última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era | |
quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns | |
dous empurrões, mas ele resistiu. | |
"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." | |
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria | |
D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava | |
alguma cousa. | |
— Nada. | |
— Nada? | |
— Por quê? | |
— Mete a mão no bolso; não te falta nada? | |
— Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. | |
— Sabes se alguém a achou? | |
— Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. | |
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. | |
Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a | |
necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe | |
perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. | |
— Mas conheceste-a? | |
— Não; achei os teus bilhetes de visita. | |
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. | |
Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou | |
um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, | |
que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor. | |
FIM |
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