Last active
August 17, 2023 02:09
-
-
Save issilva5/b4a1c6dc5989ad83663ae02929f2894c to your computer and use it in GitHub Desktop.
We can't make this file beautiful and searchable because it's too large.
This file contains bidirectional Unicode text that may be interpreted or compiled differently than what appears below. To review, open the file in an editor that reveals hidden Unicode characters.
Learn more about bidirectional Unicode characters
Author,Content | |
Cecília Meireles,"Retrato | |
Eu não tinha este rosto de hoje, | |
Assim calmo, assim triste, assim magro, | |
Nem estes olhos tão vazios, | |
Nem o lábio amargo. | |
Eu não tinha estas mãos sem força, | |
Tão paradas e frias e mortas; | |
Eu não tinha este coração | |
Que nem se mostra. | |
Eu não dei por esta mudança, | |
Tão simples, tão certa, tão fácil: | |
- Em que espelho ficou perdida | |
A minha face?" | |
Fernando Pessoa,"Para ser grande, sê inteiro: nada | |
Para ser grande, sê inteiro: nada | |
Teu exagera ou exclui. | |
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és | |
No mínimo que fazes. | |
Assim em cada lago a lua toda | |
Brilha, porque alta vive." | |
Marina Colasanti,"Eu sei, mas não devia | |
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. | |
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos | |
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. | |
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. | |
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. | |
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz. | |
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. | |
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. | |
A tomar café correndo porque está atrasado. | |
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem. | |
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar. | |
A sair do trabalho porque já é noite. | |
A cochilar no ônibus porque está cansado. | |
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. | |
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. | |
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. | |
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, | |
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração. | |
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. | |
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. | |
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. | |
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. | |
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. | |
E a ganhar menos do que precisa. | |
E a fazer filas para pagar. | |
E a pagar mais do que as coisas valem. | |
E a saber que cada vez pagará mais. | |
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra. | |
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes. | |
A abrir as revistas e a ver anúncios. | |
A ligar a televisão e a ver comerciais. | |
A ir ao cinema e engolir publicidade. | |
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. | |
A gente se acostuma à poluição. | |
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. | |
A luz artificial de ligeiro tremor. | |
Ao choque que os olhos levam na luz natural. | |
Às bactérias da água potável. | |
A contaminação da água do mar. | |
A lenta morte dos rios. | |
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, | |
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. | |
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. | |
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, | |
um ressentimento ali, uma revolta acolá. | |
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. | |
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. | |
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. | |
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo | |
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. | |
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. | |
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se | |
da faca e da baioneta, para poupar o peito. | |
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, | |
de tanto acostumar, se perde de si mesma. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Quadrilha | |
João amava Teresa que amava Raimundo | |
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili | |
que não amava ninguém. | |
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, | |
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia, | |
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes | |
que não tinha entrado na história." | |
Eugénio de Andrade,"É urgente o amor | |
É urgente o amor. | |
É urgente um barco no mar. | |
É urgente destruir certas palavras, | |
ódio, solidão e crueldade, | |
alguns lamentos, | |
muitas espadas. | |
É urgente inventar alegria, | |
multiplicar os beijos, as searas, | |
é urgente descobrir rosas e rios | |
e manhãs claras. | |
Cai o silêncio nos ombros e a luz | |
impura, até doer. | |
É urgente o amor, é urgente | |
permanecer." | |
Vinicius de Moraes,"Procura-se um amigo | |
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar. | |
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer. | |
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim. | |
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive." | |
Fernando Pessoa,"X. MAR PORTUGUÊS | |
Ó mar salgado, quanto do teu sal | |
São lágrimas de Portugal! | |
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, | |
Quantos filhos em vão rezaram! | |
Quantas noivas ficaram por casar | |
Para que fosses nosso, ó mar! | |
Valeu a pena? Tudo vale a pena | |
Se a alma não é pequena. | |
Quem quer passar além do Bojador | |
Tem que passar além da dor. | |
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, | |
Mas nele é que espelhou o céu." | |
Vinicius de Moraes,"Eu sei e você sabe | |
Eu sei e você sabe | |
Já que a vida quis assim | |
Que nada nesse mundo levará você de mim | |
Eu sei e você sabe | |
Que a distância não existe | |
Que todo grande amor | |
Só é bem grande se for triste | |
Por isso meu amor | |
Não tenha medo de sofrer | |
Que todos os caminhos | |
Me encaminham a você. | |
Assim como o Oceano, só é belo com o luar | |
Assim como a Canção, só tem razão se se cantar | |
Assim como uma nuvem, só acontece se chover | |
Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer | |
Assim como viver sem ter amor, não é viver | |
Não há você sem mim | |
E eu não existo sem você!" | |
Gonçalves Dias,"Como eu te amo | |
Como se ama o silêncio, a luz, o aroma, | |
O orvalho numa flor, nos céus a estrela, | |
No largo mar a sombra de uma vela, | |
Que lá na extrema do horizonte assoma; | |
Como se ama o clarão da branca lua, | |
Da noite na mudez os sons da flauta, | |
As canções saudosíssimas do nauta, | |
Quando em mole vaivém a nau flutua, | |
Como se ama das aves o gemido, | |
Da noite as sombras e do dia as cores, | |
Um céu com luzes, um jardim com flores, | |
Um canto quase em lágrimas sumido; | |
Como se ama o crepúsculo da aurora, | |
A mansa viração que o bosque ondeia, | |
O sussurro da fonte que serpeia, | |
Uma imagem risonha e sedutora; | |
Como se ama o calor e a luz querida, | |
A harmonia, o frescor, os sons, os céus, | |
Silêncio, e cores, e perfume, e vida, | |
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus: | |
Assim eu te amo, assim; mais do que podem | |
Dizer-to os lábios meus, - mais do que vale | |
Cantar a voz do trovador cansada: | |
O que é belo, o que é justo, santo e grande | |
Amo em ti. - Por tudo quanto sofro, | |
Por quanto já sofri, por quanto ainda | |
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo. | |
O que espero, cobiço, almejo, ou temo | |
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas | |
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte | |
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo! | |
Esta oculta paixão, que mal suspeitas, | |
Que não vês, não supões, nem te eu revelo, | |
Só pode no silêncio achar consolo, | |
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas. | |
De mim não saberás como te adoro; | |
Não te direi jamais, | |
Se te amo, e como, e a quanto extremo chega | |
Esta paixão voraz! | |
Se andas, sou o eco dos teus passos; | |
Da tua voz, se falas; | |
o murmúrio saudoso que responde | |
Ao suspiro que exalas. | |
No odor dos teus perfumes te procuro, | |
Tuas pegadas sigo; | |
Velo teus dias, te acompanho sempre, | |
E não me vês contigo! | |
Oculto e ignorado me desvelo | |
Por ti, que me não vês; | |
Aliso o teu caminho, esparjo flores, | |
Onde pisam teus pés. | |
Mesmo lendo estes versos, que m'inspiras, | |
- ""Não pensa em mim"", dirás: | |
Imagina-o, se o podes, que os meus lábios | |
Não to dirão jamais! | |
Sim, eu te amo; porém nunca | |
Saberás do meu amor; | |
A minha canção singela | |
Traiçoeira não revela | |
O prêmio santo que anela | |
O sofrer do trovador! | |
Sim, eu te amo; porém nunca | |
Dos lábios meus saberás, | |
Que é fundo como a desgraça, | |
Que o pranto não adelgaça, | |
Leve, qual sombra que passa, | |
Ou como um sonho fugaz! | |
Aos meus lábios, aos meus olhos | |
Do silêncio imponho a lei; | |
Mas lá onde a dor se esquece, | |
Onde a luz nunca falece, | |
Onde o prazer sempre cresce, | |
Lá saberás se te amei! | |
E então dirás: Objeto | |
Fui de santo e puro amor: | |
A sua canção singela; | |
Tudo agora me revela; | |
Já sei o prêmio que anela | |
O sofrer do trovador. | |
""Amou-me como se ama a luz querida, | |
Como se ama o silêncio, os sons, os céus, | |
Qual se amam cores e perfume e vida, | |
Os pais e a pátria, e a virtude e a Deus!"" | |
" | |
Manuel Bandeira,"Poema tirado de uma notícia de jornal | |
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado." | |
Eugénio de Andrade,"De palavra em palavra | |
De palavra em palavra | |
a noite sobe | |
aos ramos mais altos | |
e canta | |
o êxtase do dia." | |
Chacal,"Primeiro eu quero falar de amor | |
meu amor se esparrama na grama | |
Meu amor se esparrama na cama | |
meu amor se espreguiça | |
meu amor deita e rola no planeta. | |
" | |
Cecília Meireles,"A arte de ser feliz | |
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia | |
ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. | |
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. | |
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando | |
com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma | |
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para | |
as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos | |
magros e meu coração ficava completamente feliz. | |
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes | |
encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que | |
pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. | |
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. | |
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Ás vezes, um | |
galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, | |
cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. | |
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de | |
cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem | |
diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a | |
olhar, para poder vê-las assim. | |
" | |
Miguel Torga,"Sei um ninho | |
Sei um ninho. | |
E o ninho tem um ovo. | |
E o ovo, redondinho, | |
Tem lá dentro um passarinho | |
Novo. | |
Mas escusam de me atentar: | |
Nem o tiro, nem o ensino. | |
Quero ser um bom menino | |
E guardar | |
Este segredo comigo. | |
E ter depois um amigo | |
Que faça o pino | |
A voar..." | |
Clarice Lispector,"Precisão | |
O que me tranquiliza | |
é que tudo o que existe, | |
existe com uma precisão absoluta. | |
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete | |
não transborda nem uma fração de milímetro | |
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. | |
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. | |
Pena é que a maior parte do que existe | |
com essa exatidão | |
nos é tecnicamente invisível. | |
O bom é que a verdade chega a nós | |
como um sentido secreto das coisas. | |
Nós terminamos adivinhando, confusos, | |
a perfeição." | |
Thiago de Mello,"Os Estatutos do Homem | |
(Ato Institucional Permanente) | |
A Carlos Heitor Cony | |
Artigo I. | |
Fica decretado que agora vale a verdade. | |
que agora vale a vida, | |
e que de mãos dadas, | |
trabalharemos todos pela vida verdadeira. | |
Artigo II. | |
Fica decretado que todos os dias da semana, | |
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, | |
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. | |
Artigo III. | |
Fica decretado que, a partir deste instante, | |
haverá girassóis em todas as janelas, | |
que os girassóis terão direito | |
a abrir-se dentro da sombra; | |
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, | |
abertas para o verde onde cresce a esperança. | |
Artigo IV. | |
Fica decretado que o homem | |
não precisará nunca mais | |
duvidar do homem. | |
Que o homem confiará no homem | |
como a palmeira confia no vento, | |
como o vento confia no ar, | |
como o ar confia no campo azul do céu. | |
Parágrafo Único: | |
O homem confiará no homem | |
como um menino confia em outro menino. | |
Artigo V. | |
Fica decretado que os homens | |
estão livres do jugo da mentira. | |
Nunca mais será preciso usar | |
a couraça do silêncio | |
nem a armadura de palavras. | |
O homem se sentará à mesa | |
com seu olhar limpo | |
porque a verdade passará a ser servida | |
antes da sobremesa. | |
Artigo VI. | |
Fica estabelecida, durante dez séculos, | |
a prática sonhada pelo profeta Isaías, | |
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos | |
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. | |
Artigo VII. | |
Por decreto irrevogável fica estabelecido | |
o reinado permanente da justiça e da claridade, | |
e a alegria será uma bandeira generosa | |
para sempre desfraldada na alma do povo. | |
Artigo VIII. | |
Fica decretado que a maior dor | |
sempre foi e será sempre | |
não poder dar-se amor a quem se ama | |
e saber que é a água | |
que dá à planta o milagre da flor. | |
Artigo IX. | |
Fica permitido que o pão de cada dia | |
tenha no homem o sinal de seu suor. | |
Mas que sobretudo tenha sempre | |
o quente sabor da ternura. | |
Artigo X. | |
Fica permitido a qualquer pessoa, | |
a qualquer hora da vida, | |
o uso do traje branco. | |
Artigo XI. | |
Fica decretado, por definição, | |
que o homem é um animal que ama | |
e que por isso é belo. | |
muito mais belo que a estrela da manhã. | |
Artigo XII. | |
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. | |
tudo será permitido, | |
inclusive brincar com os rinocerontes | |
e caminhar pelas tardes | |
com uma imensa begônia na lapela. | |
Parágrafo único: | |
Só uma coisa fica proibida: | |
amar sem amor. | |
Artigo XIII. | |
Fica decretado que o dinheiro | |
não poderá nunca mais comprar | |
o sol das manhãs vindouras. | |
Expulso do grande baú do medo, | |
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal | |
para defender o direito de cantar | |
e a festa do dia que chegou. | |
Artigo Final. | |
Fica proibido o uso da palavra liberdade. | |
a qual será suprimida dos dicionários | |
e do pântano enganoso das bocas. | |
A partir deste instante | |
a liberdade será algo vivo e transparente | |
como um fogo ou um rio, | |
e a sua morada será sempre | |
o coração do homem. | |
Santiago do Chile, abril de 1964 | |
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
Cecília Meireles,"Tu tens um medo | |
Tu tens um medo: | |
Acabar. | |
Não vês que acabas todo o dia. | |
Que morres no amor. | |
Na tristeza. | |
Na dúvida. | |
No desejo. | |
Que te renovas todo o dia. | |
No amor. | |
Na tristeza. | |
Na dúvida. | |
No desejo. | |
Que és sempre outro. | |
Que és sempre o mesmo. | |
Que morrerás por idades imensas. | |
Até não teres medo de morrer. | |
E então serás eterno." | |
Fernando Pessoa,"Todo o mundo de seres e relações | |
O mistério do mundo, | |
O íntimo, horroroso, desolado, | |
Verdadeiro mistério da existência, | |
Consiste em haver esse mistério. | |
... | |
Não é a dor de já não poder crer | |
Que m’oprime, nem a de não saber, | |
Mas apenas completamente o horror | |
De ter visto o mistério frente a frente, | |
De tê-lo visto e compreendido em toda | |
A sua infinidade de mistério. | |
... | |
Quanto mais fundamente penso, mais | |
Profundamente me descompreendo. | |
O saber é a inconsciência de ignorar... | |
Só a inocência e a ignorância são | |
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não? | |
Que é ser sem o saber? Ser, como a pedra, | |
Um lugar, nada mais. | |
... | |
Quanto mais claro | |
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo. | |
Quanto mais compreendo | |
Menos me sinto compreendido. Ó horror | |
paradoxal deste pensar... | |
... | |
Alegres camponesas, raparigas alegres e ditosas, | |
Como me amarga n’alma essa alegria!" | |
Florbela Espanca,"Fanatismo | |
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida | |
Meus olhos andam cegos de te ver ! | |
Não és sequer a razão do meu viver, | |
Pois que tu és já toda a minha vida ! | |
Não vejo nada assim enlouquecida ... | |
Passo no mundo, meu Amor, a ler | |
No misterioso livro do teu ser | |
A mesma história tantas vezes lida ! | |
""Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."" | |
Quando me dizem isto, toda a graça | |
Duma boca divina fala em mim ! | |
E, olhos postos em ti, digo de rastros : | |
""Ah ! Podem voar mundos, morrer astros, | |
Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."" | |
" | |
Clarice Lispector,"Meu Deus, me dê a Coragem | |
Meu Deus, me dê a coragem | |
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, | |
todos vazios de Tua presença. | |
Me dê a coragem de considerar esse vazio | |
como uma plenitude. | |
Faça com que eu seja a Tua amante humilde, | |
entrelaçada a Ti em êxtase. | |
Faça com que eu possa falar | |
com este vazio tremendo | |
e receber como resposta | |
o amor materno que nutre e embala. | |
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, | |
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. | |
Faça com que a solidão não me destrua. | |
Faça com que minha solidão me sirva de companhia. | |
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. | |
Faça com que eu saiba ficar com o nada | |
e mesmo assim me sentir | |
como se estivesse plena de tudo. | |
Receba em teus braços | |
o meu pecado de pensar." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Destruição | |
Os amantes se amam cruelmente | |
e com se amarem tanto não se vêem. | |
Um se beija no outro, refletido. | |
Dois amantes que são? Dois inimigos. | |
Amantes são meninos estragados | |
pelo mimo de amar: e não percebem | |
quanto se pulverizam no enlaçar-se, | |
e como o que era mundo volve a nada. | |
Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma | |
que os passeia de leve, assim a cobra | |
se imprime na lembrança de seu trilho. | |
E eles quedam mordidos para sempre. | |
deixaram de existir, mas o existido | |
continua a doer eternamente. | |
" | |
Cecília Meireles,"Pus o meu sonho num navio | |
Pus o meu sonho num navio | |
e o navio em cima do mar; | |
- depois, abri o mar com as mãos, | |
para o meu sonho naufragar | |
Minhas mãos ainda estão molhadas | |
do azul das ondas entreabertas, | |
e a cor que escorre de meus dedos | |
colore as areias desertas. | |
O vento vem vindo de longe, | |
a noite se curva de frio; | |
debaixo da água vai morrendo | |
meu sonho, dentro de um navio... | |
Chorarei quanto for preciso, | |
para fazer com que o mar cresça, | |
e o meu navio chegue ao fundo | |
e o meu sonho desapareça. | |
Depois, tudo estará perfeito; | |
praia lisa, águas ordenadas, | |
meus olhos secos como pedras | |
e as minhas duas mãos quebradas." | |
Vinicius de Moraes,"O Desespero da Piedade | |
Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde | |
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos... | |
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel | |
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção. | |
Tende piedade das pequenas famílias suburbanas | |
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos | |
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam | |
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina | |
Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta | |
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina | |
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte | |
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte. | |
Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá | |
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão | |
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio | |
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca. | |
Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram | |
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução | |
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram | |
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza. | |
Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos | |
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão | |
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão | |
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão... | |
Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros | |
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias | |
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo: | |
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus! | |
Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria | |
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos | |
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo | |
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus. | |
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas | |
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer | |
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia | |
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor. | |
Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos | |
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão | |
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes | |
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também. | |
E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres | |
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres | |
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres | |
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres! | |
Tende piedade da moça feia que serve na vida | |
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita | |
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita | |
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus! | |
Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais | |
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação | |
E sonham exaltadas nos quartos humildes | |
Os olhos perdidos e o seio na mão. | |
Tende piedade da mulher no primeiro coito | |
Onde se cria a primeira alegria da Criação | |
E onde se consuma a tragédia dos anjos | |
E onde a morte encontra a vida em desintegração. | |
Tende piedade da mulher no instante do parto | |
Onde ela é como a água explodindo em convulsão | |
Onde ela é como a terra vomitando cólera | |
Onde ela é como a lua parindo desilusão. | |
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas | |
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade | |
Mas tende piedade também das mulheres casadas | |
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada. | |
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas | |
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas | |
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento | |
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno. | |
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas | |
De corpo hermético e coração patético | |
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas | |
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas. | |
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres | |
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade | |
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade | |
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade. | |
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras | |
Que são crianças e são trágicas e são belas | |
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam | |
E que têm a única emoção da vida nelas. | |
Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse | |
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade | |
E outra, à simples emoção do amor piedoso | |
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne. | |
Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas | |
A vida fere mais fundo e mais fecundo | |
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas | |
E a loucura reside nesse mundo. | |
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres | |
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim | |
Piedoso com todos, que tudo merece piedade | |
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!" | |
Florbela Espanca,"Ser Poeta | |
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior | |
Do que os homens! Morder como quem beija! | |
É ser mendigo e dar como quem seja | |
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! | |
É ter de mil desejos o esplendor | |
E não saber sequer que se deseja! | |
É ter cá dentro um astro que flameja, | |
É ter garras e asas de condor! | |
É ter fome, é ter sede de Infinito! | |
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... | |
É condensar o mundo num só grito! | |
E é amar-te, assim, perdidamente... | |
É seres alma, e sangue, e vida em mim | |
E dizê-lo cantando a toda a gente!" | |
Thiago de Mello,"Solilóquio ao Pé do Berço | |
Cruzaste | |
a porta do tempo. | |
Sem resplendores (chegaste) | |
de sol ferindo o levante, | |
fulges-me aos olhos — cristal | |
entre sonho e a relembrança | |
do que não sou, do que fui. | |
(...) | |
Perante a paz de teu sono. | |
dentro de mim se desfralda | |
um jeito novo de amar. | |
Meus vícios e desvirtudes | |
cabisbaixos se recolhem | |
ao mais secreto de mim, | |
para depois regressarem | |
humildemente velados | |
sob as roupagens do amor, | |
como flores falecidas | |
que por milagre recobram | |
suas pétalas mais brancas. | |
(...) | |
Teu pranto, de claro timbre, | |
com suavidades de canto, | |
leva-me à lágrima, arranca | |
de céu estéril, orvalho | |
que, de tão puro, dissolve | |
os seixos de antigas penas: | |
de sobre a magoada areia | |
que entre pesares palmilho, | |
teu suave pranto me leva | |
a ignotos ermos caminhos | |
onde, foscos, se derramam | |
palores de nove luas. | |
Em troca, nada te dou. | |
Meu filho, és retardatário: | |
o que talvez fora puro | |
— límpida pérola intacta | |
no coração escondida — | |
era frágil, se quebrou. | |
A porção a mim legada | |
de substância que permite | |
mudar de pouso as montanhas, | |
ouvir o canto das pedras | |
e caminhar sobre as águas, | |
era pouca, se acabou. | |
Pelas esquinas do mundo, | |
os mistérios já te espreitam | |
com suas múltiplas faces: | |
as sombras da solidão | |
já se insinuam, de manso, | |
rumo aos campos de teu ser. | |
Ah que pobre amor paterno! | |
Pobre de mim, andarilho | |
cego e sujo, desprovido | |
dos mais frágeis artifícios | |
que te afastem dos tormentos | |
a que nasce condenado | |
um homem — ser cuja glória | |
se resume nos covardes | |
passeios pela floresta | |
enquanto o Lobo não vem. | |
Sem mão que possa guiar-te | |
(mal-aventurada mão!) | |
em futuros desamparos, | |
sem boca que te anuncie | |
o tempo dos malefícios, | |
uma ventura me resta: | |
és meu filho — dou-te a bênção. | |
(...) | |
E porque nada possuo | |
digno de oferta a quem chega | |
de mãos vazias ao mundo, | |
é que te fiz, sob disfarce | |
de conversa, este inaudível | |
solilóquio ao pé do berço. | |
Imagem - 00850001 | |
Poema integrante da série Romance do Primogênito, 1952. | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984" | |
Manuel Bandeira,"Arte de Amar | |
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. | |
A alma é que estraga o amor. | |
Só em Deus ela pode encontrar satisfação. | |
Não noutra alma. | |
Só em Deus — ou fora do mundo. | |
As almas são incomunicáveis. | |
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. | |
Porque os corpos se entendem, mas as almas não." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Por muito tempo achei que a ausência é falta | |
Por muito tempo achei que a ausência é falta. | |
E lastimava, ignorante, a falta. | |
Hoje não a lastimo. | |
Não há falta na ausência. | |
A ausência é um estar em mim. | |
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, | |
que rio e danço e invento exclamações alegres, | |
porque a ausência, essa ausência assimilada, | |
ninguém a rouba mais de mim." | |
Miguel Torga,"Súplica | |
Agora que o silêncio é um mar sem ondas, | |
E que nele posso navegar sem rumo, | |
Não respondas | |
Às urgentes perguntas | |
Que te fiz. | |
Deixa-me ser feliz | |
Assim, | |
Já tão longe de ti como de mim. | |
Perde-se a vida a desejá-la tanto. | |
Só soubemos sofrer, enquanto | |
O nosso amor | |
Durou. | |
Mas o tempo passou, | |
Há calmaria... | |
Não perturbes a paz que me foi dada. | |
Ouvir de novo a tua voz seria | |
Matar a sede com água salgada." | |
Eugénio de Andrade,"Passamos pelas coisas sem as ver | |
Passamos pelas coisas sem as ver, | |
gastos, como animais envelhecidos: | |
se alguém chama por nós não respondemos, | |
se alguém nos pede amor não estremecemos, | |
como frutos de sombra sem sabor, | |
vamos caindo ao chão, apodrecidos." | |
Mário de Sá-Carneiro,"Quase | |
Um pouco mais de sol - eu era brasa, | |
Um pouco mais de azul - eu era além. | |
Para atingir, faltou-me um golpe de asa... | |
Se ao menos eu permanecesse aquém... | |
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído | |
Num grande mar enganador de espuma; | |
E o grande sonho despertado em bruma, | |
O grande sonho - ó dor! - quase vivido... | |
Quase o amor, quase o triunfo e a chama, | |
Quase o princípio e o fim - quase a expansão... | |
Mas na minhalma tudo se derrama... | |
Entanto nada foi só ilusão! | |
De tudo houve um começo ... e tudo errou... | |
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... | |
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, | |
Asa que se elançou mas não voou... | |
Momentos de alma que desbaratei... | |
Templos aonde nunca pus um altar... | |
Rios que perdi sem os levar ao mar... | |
Ânsias que foram mas que não fixei... | |
Se me vagueio, encontro só indícios... | |
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; | |
E mãos de herói, sem fé, acobardadas, | |
Puseram grades sobre os precipícios... | |
Num ímpeto difuso de quebranto, | |
Tudo encetei e nada possuí... | |
Hoje, de mim, só resta o desencanto | |
Das coisas que beijei mas não vivi... | |
Um pouco mais de sol - e fora brasa, | |
Um pouco mais de azul - e fora além. | |
Para atingir faltou-me um golpe de asa... | |
Se ao menos eu permanecesse aquém... | |
Listas de som avançam para mim a fustigar-me | |
Em luz. | |
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?... | |
Os braços duma cruz | |
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar... | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Amigo | |
Mal nos conhecemos | |
Inauguramos a palavra amigo! | |
Amigo é um sorriso | |
De boca em boca, | |
Um olhar bem limpo | |
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece. | |
Um coração pronto a pulsar | |
Na nossa mão! | |
Amigo (recordam-se, vocês aí, | |
Escrupulosos detritos?) | |
Amigo é o contrário de inimigo! | |
Amigo é o erro corrigido, | |
Não o erro perseguido, explorado. | |
É a verdade partilhada, praticada. | |
Amigo é a solidão derrotada! | |
Amigo é uma grande tarefa, | |
Um trabalho sem fim, | |
Um espaço útil, um tempo fértil, | |
Amigo vai ser, é já uma grande festa!" | |
José Gomes Ferreira,"Devia morrer-se de outra maneira | |
Devia morrer-se de outra maneira. | |
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. | |
Ou em nuvens. | |
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol | |
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos | |
os amigos mais íntimos com um cartão de convite | |
para o ritual do Grande Desfazer: ""Fulano de tal comunica | |
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje | |
às 9 horas. Traje de passeio"". | |
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos | |
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir | |
a despedida. | |
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. | |
""Adeus! Adeus!"" | |
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, | |
numa lassidão de arrancar raízes... | |
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) | |
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se | |
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen... | |
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono | |
ainda tocada por um vento de lábios azuis..." | |
Cecília Meireles,"Serenata | |
Permita que eu feche os meus olhos, | |
pois é muito longe e tão tarde! | |
Pensei que era apenas demora, | |
e cantando pus-me a esperar-te. | |
Permite que agora emudeça: | |
que me conforme em ser sozinha. | |
Há uma doce luz no silencio, | |
e a dor é de origem divina. | |
Permite que eu volte o meu rosto | |
para um céu maior que este mundo, | |
e aprenda a ser dócil no sonho | |
como as estrelas no seu rumo. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros | |
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, | |
De vivo luzir, | |
Estrelas incertas, que as águas dormentes | |
Do mar vão ferir; | |
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, | |
Têm meiga expressão, | |
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta | |
De noite cantando, — mais doce que a frauta | |
Quebrando a solidão, | |
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, | |
De vivo luzir, | |
São meigos infantes, gentis, engraçados | |
Brincando a sorrir. | |
São meigos infantes, brincando, saltando | |
Em jogo infantil, | |
Inquietos, travessos; — causando tormento, | |
Com beijos nos pagam a dor de um momento, | |
Com modo gentil. | |
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, | |
Assim é que são; | |
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos, | |
Às vezes vulcão! | |
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco, | |
Tão frouxo brilhar, | |
Que a mim me parece que o ar lhes falece, | |
E os olhos tão meigos, que o pranto humedece | |
Me fazem chorar. | |
Assim lindo infante, que dorme tranquilo, | |
Desperta a chorar; | |
E mudo e sisudo, cismando mil coisas, | |
Não pensa — a pensar. | |
Nas almas tão puras da virgem, do infante, | |
Às vezes do céu | |
Cai doce harmonia duma Harpa celeste, | |
Um vago desejo; e a mente se veste | |
De pranto co'um véu. | |
Quer sejam saudades, quer sejam desejos | |
Da pátria melhor; | |
Eu amo seus olhos que choram em causa | |
Um pranto sem dor. | |
Eu amo seus olhos tão negros, tão puros, | |
De vivo fulgor; | |
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia, | |
Que falam de amores com tanta poesia, | |
Com tanto pudor. | |
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, | |
Assim é que são; | |
Eu amo esses olhos que falam de amores | |
Com tanta paixão." | |
José Régio,"Cântico Negro | |
""Vem por aqui"" - dizem-me alguns com os olhos doces | |
Estendendo-me os braços, e seguros | |
De que seria bom que eu os ouvisse | |
Quando me dizem: ""vem por aqui!"" | |
Eu olho-os com olhos lassos, | |
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) | |
E cruzo os braços, | |
E nunca vou por ali... | |
A minha glória é esta: | |
Criar desumanidade! | |
Não acompanhar ninguém. | |
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade | |
Com que rasguei o ventre à minha mãe | |
Não, não vou por aí! Só vou por onde | |
Me levam meus próprios passos... | |
Se ao que busco saber nenhum de vós responde | |
Por que me repetis: ""vem por aqui!""? | |
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, | |
Redemoinhar aos ventos, | |
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, | |
A ir por aí... | |
Se vim ao mundo, foi | |
Só para desflorar florestas virgens, | |
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! | |
O mais que faço não vale nada. | |
Como, pois sereis vós | |
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem | |
Para eu derrubar os meus obstáculos?... | |
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, | |
E vós amais o que é fácil! | |
Eu amo o Longe e a Miragem, | |
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... | |
Ide! Tendes estradas, | |
Tendes jardins, tendes canteiros, | |
Tendes pátria, tendes tectos, | |
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... | |
Eu tenho a minha Loucura ! | |
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, | |
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... | |
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. | |
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; | |
Mas eu, que nunca principio nem acabo, | |
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. | |
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! | |
Ninguém me peça definições! | |
Ninguém me diga: ""vem por aqui""! | |
A minha vida é um vendaval que se soltou. | |
É uma onda que se alevantou. | |
É um átomo a mais que se animou... | |
Não sei por onde vou, | |
Não sei para onde vou | |
- Sei que não vou por aí!" | |
Luís de Camões,"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades | |
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, | |
muda-se o ser, muda-se a confiança; | |
todo o Mundo é composto de mudança, | |
tomando sempre novas qualidades. | |
Continuamente vemos novidades, | |
diferentes em tudo da esperança; | |
do mal ficam as mágoas na lembrança, | |
e do bem (se algum houve), as saudades. | |
O tempo cobre o chão de verde manto, | |
que já coberto foi de neve fria, | |
e, enfim, converte em choro o doce canto. | |
E, afora este mudar-se cada dia, | |
outra mudança faz de mor espanto, | |
que não se muda já como soía. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Desencanto | |
Eu faço versos como quem chora | |
De desalento... de desencanto... | |
Fecha o meu livro, se por agora | |
Não tens motivo nenhum de pranto. | |
Meu verso é sangue. Volúpia ardente... | |
Tristeza esparsa... remorso vão... | |
Dói-me nas veias. Amargo e quente, | |
Cai, gota a gota, do coração. | |
E nestes versos de angústia rouca | |
Assim dos lábios a vida corre, | |
Deixando um acre sabor na boca. | |
- Eu faço versos como quem morre." | |
Marina Colasanti,"Sexta-feira à noite | |
Sexta-feira à noite | |
os homens acariciam o clitóris das esposas | |
com dedos molhados de saliva. | |
O mesmo gesto com que todos os dias | |
contam dinheiro papéis documentos | |
e folheiam nas revistas | |
a vida dos seus ídolos. | |
Sexta-feira à noite | |
os homens penetram suas esposas | |
com tédio e pênis. | |
O mesmo tédio com que todos os dias | |
enfiam o carro na garagem | |
o dedo no nariz | |
e metem a mão no bolso | |
para coçar o saco. | |
Sexta-feira à noite | |
os homens ressonam de borco | |
enquanto as mulheres no escuro | |
encaram seu destino | |
e sonham com o príncipe encantado. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Os ombros suportam o mundo | |
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. | |
Tempo de absoluta depuração. | |
Tempo em que não se diz mais: meu amor. | |
Porque o amor resultou inútil. | |
E os olhos não choram. | |
E as mãos tecem apenas o rude trabalho. | |
E o coração está seco. | |
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. | |
Ficaste sozinho, a luz apagou-se, | |
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. | |
És todo certeza, já não sabes sofrer. | |
E nada esperas de teus amigos. | |
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? | |
Teus ombros suportam o mundo | |
e ele não pesa mais que a mão de uma criança. | |
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios | |
provam apenas que a vida prossegue | |
e nem todos se libertaram ainda. | |
Alguns, achando bárbaro o espetáculo | |
prefeririam (os delicados) morrer. | |
Chegou um tempo em que não adianta morrer. | |
Chegou um tempo que a vida é uma ordem. | |
A vida apenas, sem mistificação." | |
Cecília Meireles,"No mistério do sem-fim | |
No mistério do sem-fim | |
equilibra-se um planeta. | |
E, no planeta, um jardim, | |
e, no jardim, um canteiro; | |
no canteiro uma violeta, | |
e, sobre ela, o dia inteiro, | |
entre o planeta e o sem-fim, | |
a asa de uma borboleta" | |
Manuel Bandeira,"O último poema | |
Assim eu quereria o meu último poema. | |
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais | |
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas | |
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume | |
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos | |
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação." | |
Vinicius de Moraes,"A maior solidão é a do ser que não ama | |
A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. | |
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, | |
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. | |
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, | |
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre." | |
Fernando Pessoa,"O amor é uma companhia | |
O amor é uma companhia. | |
Já não sei andar só pelos caminhos, | |
Porque já não posso andar só. | |
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa | |
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. | |
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. | |
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. | |
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. | |
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. | |
Todo eu sou qualquer força que me abandona. | |
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. | |
" | |
Reinaldo Ferreira,"Receita para fazer um herói | |
Tome-se um homem, | |
Feito de nada, como nós, | |
E em tamanho natural. | |
Embeba-se-lhe a carne, | |
Lentamente, | |
Duma certeza aguda, irracional, | |
Intensa como o ódio ou como a fome. | |
Depois, perto do fim, | |
Agite-se um pendão | |
E toque-se um clarim. | |
Serve-se morto. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Vale a pena ser discreto? | |
Vale a pena ser discreto? | |
Não sei bem se vale a pena. | |
O melhor é estar quieto | |
E ter a cara serena." | |
Vinicius de Moraes,"Soneto do amor total | |
Amo-te tanto meu amor... não cante | |
O humano coração com mais verdade... | |
Amo-te como amigo e como amante | |
Numa sempre diversa realidade. | |
Amo-te enfim, de um calmo amor prestante | |
E te amo além, presente na saudade. | |
Amo-te, enfim, com grande liberdade | |
Dentro da eternidade e a cada instante. | |
Amo-te como um bicho, simplesmente | |
De um amor sem mistério e sem virtude | |
Com um desejo maciço e permanente. | |
E de te amar assim, muito e amiúde | |
É que um dia em teu corpo de repente | |
Hei de morrer de amar mais do que pude." | |
José Régio,"Soneto de amor | |
Não me peças palavras, nem baladas, | |
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio, | |
Deixa cair as pálpebras pesadas, | |
E entre os seios me apertes sem receio. | |
Na tua boca sob a minha, ao meio, | |
Nossas línguas se busquem, desvairadas... | |
E que os meus flancos nus vibrem no enleio | |
Das tuas pernas ágeis e delgadas. | |
E em duas bocas uma língua..., - unidos, | |
Nós trocaremos beijos e gemidos, | |
Sentindo o nosso sangue misturar-se. | |
Depois... - abre os teus olhos, minha amada! | |
Enterra-os bem nos meus; não digas nada... | |
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce! | |
" | |
Pablo Neruda,"Posso escrever os versos mais tristes | |
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. | |
Escrever, por exemplo: ""A noite está estrelada, | |
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe"". | |
O vento da noite gira no céu e canta. | |
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. | |
Eu amei-a e por vezes ela também me amou. | |
Em noites como esta tive-a em meus braços. | |
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito. | |
Ela amou-me, por vezes eu também a amava. | |
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos. | |
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. | |
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi. | |
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. | |
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho. | |
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la. | |
A noite está estrelada e ela não está comigo. | |
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe. | |
A minha alma não se contenta com havê-la perdido. | |
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a. | |
O meu coração procura-a, ela não está comigo. | |
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores. | |
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos. | |
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei. | |
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido. | |
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos. | |
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos. | |
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda. | |
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento. | |
Porque em noites como esta tive-a em meus braços, | |
a minha alma não se contenta por havê-la perdido. | |
Embora seja a última dor que ela me causa, | |
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo." | |
Mário Quintana,"Das Utopias | |
Se as coisas são inatingíveis... ora! | |
não é motivo para não querê-las. | |
Que tristes os caminhos, se não fora | |
a mágica presença das estrelas!" | |
Vinicius de Moraes,"Pela luz dos olhos teus | |
Quando a luz dos olhos meus | |
E a luz dos olhos teus | |
Resolvem se encontrar | |
Ai que bom que isso é meu Deus | |
Que frio que me dá o encontro desse olhar | |
Mas se a luz dos olhos teus | |
Resiste aos olhos meus só pra me provocar | |
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar | |
Meu amor, juro por Deus | |
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar | |
Quero a luz dos olhos meus | |
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará | |
Pela luz dos olhos teus | |
Eu acho meu amor que só se pode achar | |
Que a luz dos olhos meus precisa se casar. | |
" | |
Al Berto,"E ao anoitecer | |
e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão deixas viver sobre a pele uma criança de lume e na fria lava da noite ensinas ao corpo a paciência o amor o abandono das palavras o silêncio e a difícil arte da melancolia" | |
Vinicius de Moraes,"Ausência | |
Eu deixarei que morra | |
em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces | |
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. | |
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida | |
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. | |
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. | |
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados | |
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada | |
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado. | |
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face. | |
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada. | |
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite. | |
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa. | |
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço. | |
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. | |
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos. | |
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir. | |
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas. | |
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada." | |
José Régio,"Poema do Silêncio | |
Sim, foi por mim que gritei. | |
Declamei, | |
Atirei frases em volta. | |
Cego de angústia e de revolta. | |
Foi em meu nome que fiz, | |
A carvão, a sangue, a giz, | |
Sátiras e epigramas nas paredes | |
Que não vi serem necessárias e vós vedes. | |
Foi quando compreendi | |
Que nada me dariam do infinito que pedi, | |
-Que ergui mais alto o meu grito | |
E pedi mais infinito! | |
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas, | |
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas | |
Que, sem rumo, | |
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo... | |
O que buscava | |
Era, como qualquer, ter o que desejava. | |
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo, | |
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo. | |
Que só por me ser vedado | |
Sair deste meu ser formal e condenado, | |
Erigi contra os céus o meu imenso Engano | |
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano! | |
Senhor meu Deus em que não creio! | |
Nu a teus pés, abro o meu seio | |
Procurei fugir de mim, | |
Mas sei que sou meu exclusivo fim. | |
Sofro, assim, pelo que sou, | |
Sofro por este chão que aos pés se me pegou, | |
Sofro por não poder fugir. | |
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir! | |
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação! | |
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...) | |
Senhor dá-me o poder de estar calado, | |
Quieto, maniatado, iluminado. | |
Se os gestos e as palavras que sonhei, | |
Nunca os usei nem usarei, | |
Se nada do que levo a efeito vale, | |
Que eu me não mova! que eu não fale! | |
Ah! também sei que, trabalhando só por mim, | |
Era por um de nós. E assim, | |
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade, | |
Lutava um homem pela humanidade. | |
Mas o meu sonho megalómano é maior | |
Do que a própria imensa dor | |
De compreender como é egoísta | |
A minha máxima conquista... | |
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros | |
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros, | |
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á, | |
E sobre mim de novo descerá... | |
Sim, descerá da tua mão compadecida, | |
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida. | |
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome | |
Saciarão a minha fome." | |
Eugénio de Andrade,"Entre os teus lábios | |
Entre os teus lábios | |
é que a loucura acode, | |
desce à garganta, | |
invade a água. | |
No teu peito | |
é que o pólen do fogo | |
se junta à nascente, | |
alastra na sombra. | |
Nos teus flancos | |
é que a fonte começa | |
a ser rio de abelhas, | |
rumor de tigre. | |
Da cintura aos joelhos | |
é que a areia queima, | |
o sol é secreto, | |
cego o silêncio. | |
Deita-te comigo. | |
Ilumina meus vidros. | |
Entre lábios e lábios | |
toda a música é minha." | |
Ruy Belo,"Contigo aprendi coisas tão simples | |
Contigo aprendi coisas tão simples como | |
a forma de convívio com o meu cabelo ralo | |
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas | |
Só tu me acompanhastes súbitos momentos | |
quando tudo ruía ao meu redor | |
e me sentia só e no cabo do mundo | |
Contigo fui cruel no dia a dia | |
mais que mulher tu és já a minha única viúva | |
Não posso dar-te mais do te dou | |
este molhado olhar de homem que morre | |
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente" | |
Luís de Camões,"Amor é fogo que arde sem se ver | |
Amor é fogo que arde sem se ver, | |
é ferida que dói, e não se sente; | |
é um contentamento descontente, | |
é dor que desatina sem doer. | |
É um não querer mais que bem querer; | |
é um andar solitário entre a gente; | |
é nunca contentar-se de contente; | |
é um cuidar que ganha em se perder. | |
É querer estar preso por vontade; | |
é servir a quem vence, o vencedor; | |
é ter com quem nos mata, lealdade. | |
Mas como causar pode seu favor | |
nos corações humanos amizade, | |
se tão contrário a si é o mesmo Amor?" | |
David Mourão-Ferreira,"E por vezes as noites duram meses | |
E por vezes as noites duram meses | |
E por vezes os meses oceanos | |
E por vezes os braços que apertamos | |
nunca mais são os mesmos. E por vezes | |
encontramos de nós em poucos meses | |
o que a noite nos fez em muitos anos | |
E por vezes fingimos que lembramos | |
E por vezes lembramos que por vezes | |
ao tomarmos o gosto aos oceanos | |
só o sarro das noites não dos meses | |
lá no fundo dos copos encontramos | |
E por vezes sorrimos ou choramos | |
E por vezes por vezes ah por vezes | |
num segundo se evolam tantos anos." | |
Pablo Neruda,"É assim que te quero, amor | |
É assim que te quero, amor, | |
assim, amor, é que eu gosto de ti, | |
tal como te vestes | |
e como arranjas | |
os cabelos e como | |
a tua boca sorri, | |
ágil como a água | |
da fonte sobre as pedras puras, | |
é assim que te quero, amada, | |
Ao pão não peço que me ensine, | |
mas antes que não me falte | |
em cada dia que passa. | |
Da luz nada sei, nem donde | |
vem nem para onde vai, | |
apenas quero que a luz alumie, | |
e também não peço à noite explicações, | |
espero-a e envolve-me, | |
e assim tu pão e luz | |
e sombra és. | |
Chegastes à minha vida | |
com o que trazias, | |
feita | |
de luz e pão e sombra, eu te esperava, | |
e é assim que preciso de ti, | |
assim que te amo, | |
e os que amanhã quiserem ouvir | |
o que não lhes direi, que o leiam aqui | |
e retrocedam hoje porque é cedo | |
para tais argumentos. | |
Amanhã dar-lhes-emos apenas | |
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha | |
que há-de cair sobre a terra | |
como se a tivessem produzido os nosso lábios, | |
como um beijo caído | |
das nossas alturas invencíveis | |
para mostrar o fogo e a ternura | |
de um amor verdadeiro." | |
Alexandre O'Neill,"Há palavras que nos beijam | |
Há palavras que nos beijam | |
Como se tivessem boca, | |
Palavras de amor, de esperança, | |
De imenso amor, de esperança louca. | |
Palavras nuas que beijas | |
Quando a noite perde o rosto, | |
Palavras que se recusam | |
Aos muros do teu desgosto. | |
De repente coloridas | |
Entre palavras sem cor, | |
Esperadas, inesperadas | |
Como a poesia ou o amor. | |
(O nome de quem se ama | |
Letra a letra revelado | |
No mármore distraído, | |
No papel abandonado) | |
Palavras que nos transportam | |
Aonde a noite é mais forte, | |
Ao silêncio dos amantes | |
Abraçados contra a morte." | |
Pablo Neruda,"Tu eras também uma pequena folha | |
Tu eras também uma pequena folha | |
que tremia no meu peito. | |
O vento da vida pôs-te ali. | |
A princípio não te vi: não soube | |
que ias comigo, | |
até que as tuas raízes | |
atravessaram o meu peito, | |
se uniram aos fios do meu sangue, | |
falaram pela minha boca, | |
floresceram comigo." | |
Nuno Júdice,"Nunca são as coisas mais simples | |
Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios." | |
Eugénio de Andrade,"Devias estar aqui rente aos meus lábios | |
Devias estar aqui rente aos meus lábios | |
para dividir contigo esta amargura | |
dos meus dias partidos um a um | |
- Eu vi a terra limpa no teu rosto, | |
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum" | |
Fernando Pessoa,"Tenho tanto sentimento | |
Temos, todos que vivemos, | |
Uma vida que é vivida | |
E outra vida que é pensada, | |
E a única vida que temos | |
É essa que é dividida | |
Entre a verdadeira e a errada." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Que pode uma criatura | |
Que pode uma criatura senão, | |
entre outras criaturas, amar? | |
amar e esquecer, | |
amar e malamar, | |
amar, desamar, amar? | |
sempre, e até de olhos vidrados, amar?" | |
Eugénio de Andrade,"Hoje roubei todas as rosas dos jardins | |
Hoje roubei todas as rosas dos jardins | |
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias." | |
Ruy Belo,"Nomeei-te no meio dos meus sonhos | |
Nomeei-te no meio dos meus sonhos | |
chamei por ti na minha solidão | |
troquei o céu azul pelos teus olhos | |
e o meu sólido chão pelo teu amor" | |
Stéphane Mallarmé,"O Acaso | |
Cai | |
a pluma | |
rítmico suspense do sinistro | |
nas espumas primordiais | |
de onde há pouco sobressaltara seu delírio a um cimo fenescido | |
pela neutralidade idêntica do abismo | |
" | |
António Gedeão,"Pedra Filosofal | |
Eles não sabem que o sonho | |
é uma constante da vida | |
tão concreta e definida | |
como outra coisa qualquer, | |
como esta pedra cinzenta | |
em que me sento e descanso, | |
como este ribeiro manso | |
em serenos sobressaltos, | |
como estes pinheiros altos | |
que em verde e oiro se agitam, | |
como estas aves que gritam | |
em bebedeiras de azul. | |
Eles não sabem que o sonho | |
é vinho, é espuma, é fermento, | |
bichinho álacre e sedento, | |
de focinho pontiagudo, | |
que fossa através de tudo | |
num perpétuo movimento. | |
Eles não sabem que o sonho | |
é tela, é cor, é pincel, | |
base, fuste, capitel, | |
arco em ogiva, vitral, | |
pináculo de catedral, | |
contraponto, sinfonia, | |
máscara grega, magia, | |
que é retorta de alquimista, | |
mapa do mundo distante, | |
rosa-dos-ventos, Infante, | |
caravela quinhentista, | |
que é Cabo da Boa Esperança, | |
ouro, canela, marfim, | |
florete de espadachim, | |
bastidor, passo de dança, | |
Colombina e Arlequim, | |
passarola voadora, | |
pára-raios, locomotiva, | |
barco de proa festiva, | |
alto-forno, geradora, | |
cisão do átomo, radar, | |
ultra-som, televisão, | |
desembarque em foguetão | |
na superfície lunar. | |
Eles não sabem, nem sonham, | |
que o sonho comanda a vida. | |
Que sempre que um homem sonha | |
o mundo pula e avança | |
como bola colorida | |
entre as mãos de uma criança." | |
Vinicius de Moraes,"Operário em construção | |
Era ele que erguia casas | |
Onde antes só havia chão. | |
Como um pássaro sem asas | |
Ele subia com as asas | |
Que lhe brotavam da mão. | |
Mas tudo desconhecia | |
De sua grande missão: | |
Não sabia por exemplo | |
Que a casa de um homem é um templo | |
Um templo sem religião | |
Como tampouco sabia | |
Que a casa que ele fazia | |
Sendo a sua liberdade | |
Era a sua escravidão. | |
De fato como podia | |
Um operário em construção | |
Compreender porque um tijolo | |
Valia mais do que um pão? | |
Tijolos ele empilhava | |
Com pá, cimento e esquadria | |
Quanto ao pão, ele o comia | |
Mas fosse comer tijolo! | |
E assim o operário ia | |
Com suor e com cimento | |
Erguendo uma casa aqui | |
Adiante um apartamento | |
Além uma igreja, à frente | |
Um quartel e uma prisão: | |
Prisão de que sofreria | |
Não fosse eventualmente | |
Um operário em construcão. | |
Mas ele desconhecia | |
Esse fato extraordinário: | |
Que o operário faz a coisa | |
E a coisa faz o operário. | |
De forma que, certo dia | |
À mesa, ao cortar o pão | |
O operário foi tomado | |
De uma subita emoção | |
Ao constatar assombrado | |
Que tudo naquela mesa | |
- Garrafa, prato, facão | |
Era ele quem fazia | |
Ele, um humilde operário | |
Um operário em construção. | |
Olhou em torno: a gamela | |
Banco, enxerga, caldeirão | |
Vidro, parede, janela | |
Casa, cidade, nação! | |
Tudo, tudo o que existia | |
Era ele quem os fazia | |
Ele, um humilde operário | |
Um operário que sabia | |
Exercer a profissão. | |
Ah, homens de pensamento | |
Nao sabereis nunca o quanto | |
Aquele humilde operário | |
Soube naquele momento | |
Naquela casa vazia | |
Que ele mesmo levantara | |
Um mundo novo nascia | |
De que sequer suspeitava. | |
O operário emocionado | |
Olhou sua propria mão | |
Sua rude mão de operário | |
De operário em construção | |
E olhando bem para ela | |
Teve um segundo a impressão | |
De que não havia no mundo | |
Coisa que fosse mais bela. | |
Foi dentro dessa compreensão | |
Desse instante solitário | |
Que, tal sua construção | |
Cresceu também o operário | |
Cresceu em alto e profundo | |
Em largo e no coração | |
E como tudo que cresce | |
Ele nao cresceu em vão | |
Pois além do que sabia | |
- Excercer a profissão - | |
O operário adquiriu | |
Uma nova dimensão: | |
A dimensão da poesia. | |
E um fato novo se viu | |
Que a todos admirava: | |
O que o operário dizia | |
Outro operário escutava. | |
E foi assim que o operário | |
Do edificio em construção | |
Que sempre dizia ""sim"" | |
Começou a dizer ""não"" | |
E aprendeu a notar coisas | |
A que nao dava atenção: | |
Notou que sua marmita | |
Era o prato do patrão | |
Que sua cerveja preta | |
Era o uisque do patrão | |
Que seu macacão de zuarte | |
Era o terno do patrão | |
Que o casebre onde morava | |
Era a mansão do patrão | |
Que seus dois pés andarilhos | |
Eram as rodas do patrão | |
Que a dureza do seu dia | |
Era a noite do patrão | |
Que sua imensa fadiga | |
Era amiga do patrão. | |
E o operário disse: Não! | |
E o operário fez-se forte | |
Na sua resolução | |
Como era de se esperar | |
As bocas da delação | |
Comecaram a dizer coisas | |
Aos ouvidos do patrão | |
Mas o patrão não queria | |
Nenhuma preocupação. | |
- ""Convençam-no"" do contrário | |
Disse ele sobre o operário | |
E ao dizer isto sorria. | |
Dia seguinte o operário | |
Ao sair da construção | |
Viu-se súbito cercado | |
Dos homens da delação | |
E sofreu por destinado | |
Sua primeira agressão | |
Teve seu rosto cuspido | |
Teve seu braço quebrado | |
Mas quando foi perguntado | |
O operário disse: Não! | |
Em vão sofrera o operário | |
Sua primeira agressão | |
Muitas outras seguiram | |
Muitas outras seguirão | |
Porém, por imprescindível | |
Ao edificio em construção | |
Seu trabalho prosseguia | |
E todo o seu sofrimento | |
Misturava-se ao cimento | |
Da construção que crescia. | |
Sentindo que a violência | |
Não dobraria o operário | |
Um dia tentou o patrão | |
Dobrá-lo de modo contrário | |
De sorte que o foi levando | |
Ao alto da construção | |
E num momento de tempo | |
Mostrou-lhe toda a região | |
E apontando-a ao operário | |
Fez-lhe esta declaração: | |
- Dar-te-ei todo esse poder | |
E a sua satisfação | |
Porque a mim me foi entregue | |
E dou-o a quem quiser. | |
Dou-te tempo de lazer | |
Dou-te tempo de mulher | |
Portanto, tudo o que ver | |
Será teu se me adorares | |
E, ainda mais, se abandonares | |
O que te faz dizer não. | |
Disse e fitou o operário | |
Que olhava e refletia | |
Mas o que via o operário | |
O patrão nunca veria | |
O operário via casas | |
E dentro das estruturas | |
Via coisas, objetos | |
Produtos, manufaturas. | |
Via tudo o que fazia | |
O lucro do seu patrão | |
E em cada coisa que via | |
Misteriosamente havia | |
A marca de sua mão. | |
E o operário disse: Não! | |
- Loucura! - gritou o patrão | |
Nao vês o que te dou eu? | |
- Mentira! - disse o operário | |
Não podes dar-me o que é meu. | |
E um grande silêncio fez-se | |
Dentro do seu coração | |
Um silêncio de martirios | |
Um silêncio de prisão. | |
Um silêncio povoado | |
De pedidos de perdão | |
Um silêncio apavorado | |
Com o medo em solidão | |
Um silêncio de torturas | |
E gritos de maldição | |
Um silêncio de fraturas | |
A se arrastarem no chão | |
E o operário ouviu a voz | |
De todos os seus irmãos | |
Os seus irmãos que morreram | |
Por outros que viverão | |
Uma esperança sincera | |
Cresceu no seu coração | |
E dentro da tarde mansa | |
Agigantou-se a razão | |
De um homem pobre e esquecido | |
Razão porém que fizera | |
Em operário construido | |
O operário em construção" | |
Fernando Pessoa,"Sim, sei bem | |
Sim, sei bem | |
Que nunca serei alguém. | |
Sei de sobra | |
Que nunca terei uma obra. | |
Sei, enfim, | |
Que nunca saberei de mim. | |
Sim, mas agora, | |
Enquanto dura esta hora, | |
Este luar, estes ramos, | |
Esta paz em que estamos, | |
Deixem-me crer | |
O que nunca poderei ser." | |
Eugénio de Andrade,"Foi para ti que criei as rosas | |
Foi para ti que criei as rosas. | |
Foi para ti que lhes dei perfume. | |
Para ti rasguei ribeiros | |
e dei ás romãs a cor do lume." | |
Florbela Espanca,"Os Versos Que Te Fiz | |
Deixa dizer-te os lindos versos raros | |
Que a minha boca tem pra te dizer! | |
São talhados em mármore de Paros | |
Cinzelados por mim pra te oferecer. | |
Têm dolência de veludos caros, | |
São como sedas pálidas a arder... | |
Deixa dizer-te os lindos versos raros | |
Que foram feitos pra te endoidecer! | |
Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda... | |
Que a boca da mulher é sempre linda | |
Se dentro guarda um verso que não diz! | |
Amo-te tanto! E nunca te beijei... | |
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei | |
Guardo os versos mais lindos que te fiz! | |
" | |
Martha Medeiros,"Quem morre? | |
Morre lentamente | |
quem se transforma em escravo do hábito, | |
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca | |
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece. | |
Morre lentamente | |
quem faz da televisão o seu guru. | |
Morre lentamente | |
quem evita uma paixão, | |
quem prefere o negro sobre o branco | |
e os pontos sobre os ""is"" em detrimento de um redemoinho de emoções, | |
justamente as que resgatam o brilho dos olhos, | |
sorrisos dos bocejos, | |
corações aos tropeços e sentimentos. | |
Morre lentamente | |
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, | |
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, | |
quem não se permite pelo menos uma vez na vida, | |
fugir dos conselhos sensatos. | |
Morre lentamente | |
quem não viaja, | |
quem não lê, | |
quem não ouve música, | |
quem não encontra graça em si mesmo. | |
Morre lentamente | |
quem destrói o seu amor-próprio, | |
quem não se deixa ajudar. | |
Morre lentamente, | |
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte | |
ou da chuva incessante. | |
Morre lentamente, | |
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo, | |
não pergunta sobre um assunto que desconhece | |
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe. | |
Evitemos a morte em doses suaves, | |
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior | |
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos | |
um estágio esplêndido de felicidade. | |
" | |
Al Berto,"Dizem que a paixão o conheceu | |
dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros senta-se no estremecer da noite enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto turvo pela ligeira náusea da velhice conhece a solidão de quem permanece acordado quase sempre estendido ao lado do sono pressente o suave esvoaçar da idade ergue-se para o espelho que lhe devolve um sorriso tamanho do medo dizem que vive na transparência do sonho à beira-mar envelheceu vagarosamente sem que nenhuma ternura nenhuma alegria nenhum ofício cantante o tenha convencido a permanecer entre os vivos" | |
Eugénio de Andrade,"Sê paciente; espera | |
Sê paciente; espera | |
que a palavra amadureça | |
e se desprenda como um fruto | |
ao passar o vento que a mereça." | |
Al Berto,"Há-de flutuar uma cidade | |
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida pensava eu... como seriam felizes as mulheres à beira mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas espiando o mar e a longitude do amor embarcado por vezes uma gaivota pousava nas águas outras era o sol que cegava e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite os dias lentíssimos... sem ninguém e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão (anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.) um dia houve que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir tanto faz sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade" | |
António Ramos Rosa,"Não posso adiar o amor | |
Não posso adiar o amor para outro século | |
não posso | |
ainda que o grito sufoque na garganta | |
ainda que o ódio estale e crepite e arda | |
sob as montanhas cinzentas | |
e montanhas cinzentas | |
Não posso adiar este braço | |
que é uma arma de dois gumes amor e ódio | |
Não posso adiar | |
ainda que a noite pese séculos sobre as costas | |
e a aurora indecisa demore | |
não posso adiar para outro século a minha vida | |
nem o meu amor | |
nem o meu grito de libertação | |
Não posso adiar o coração." | |
Eugénio de Andrade,"Sê tu a palavra | |
1. | |
Sê tu a palavra, | |
branca rosa brava. | |
2. | |
Só o desejo é matinal. | |
3. | |
Poupar o coração | |
é permitir à morte | |
coroar-se de alegria. | |
4. | |
Morre | |
de ter ousado | |
na água amar o fogo. | |
5. | |
Beber-te a sede e partir | |
- eu sou de tão longe. | |
6. | |
Da chama à espada | |
o caminho é solitário. | |
7. | |
Que me quereis, | |
se me não dais | |
o que é tão meu?" | |
Alexandre O'Neill,"Sei os teus seios | |
Sei os teus seios. | |
Sei-os de cor. | |
Para a frente, para cima, | |
Despontam, alegres, os teus seios. | |
Vitoriosos já, | |
Mas não ainda triunfais. | |
Quem comparou os seios que são teus | |
(Banal imagem) a colinas! | |
Com donaire avançam os teus seios, | |
Ó minha embarcação! | |
Porque não há | |
Padarias que em vez de pão nos dêem seios | |
Logo p'la manhã? | |
Quantas vezes | |
Interrogaste, ao espelho, os seios? | |
Tão tolos os teus seios! Toda a noite | |
Com inveja um do outro, toda a santa | |
Noite! | |
Quantos seios ficaram por amar? | |
Seios pasmados, seios lorpas, seios | |
Como barrigas de glutões! | |
Seios decrépitos e no entanto belos | |
Como o que já viveu e fez viver! | |
Seios inacessíveis e tão altos | |
Como um orgulho que há-de rebentar | |
Em deseperadas, quarentonas lágrimas... | |
Seios fortes como os da Liberdade | |
-Delacroix-guiando o Povo. | |
Seios que vão à escola p'ra de lá saírem | |
Direitinhos p'ra casa... | |
Seios que deram o bom leite da vida | |
A vorazes filhos alheios! | |
Diz-se rijo dum seio que, vencido, | |
Acaba por vencer... | |
O amor excessivo dum poeta: | |
""E hei-de mandar fazer um almanaque | |
da pele encadernado do teu seio"" | |
(Gomes Leal) | |
Retirar-me para uns seios que me esperam | |
Há tantos anos, fielmente, na província! | |
Arrulho de pequenos seios | |
No peitoril de uma janela | |
Aberta sobre a vida. | |
Botas, botirrafas | |
Pisando tudo, até os seios | |
Em que o amor se exalta e robustece! | |
Seios adivinhados, entrevistos, | |
Jamais possuídos, sempre desejados! | |
""Oculta, pois, oculta esses objectos | |
Altares onde fazem sacrifícios | |
Quantos os vêem com olhos indiscretos"" | |
(Abade de Jazente) | |
Raimundo Lúlio, a mulher casada | |
Que cortejaste, que perseguiste | |
Até entrares, a cavalo, p'la igreja | |
Onde fora rezar, | |
Mudou-te a vida quando te mostrou | |
(""É isto que amas?"") | |
De repente a podridão do seio. | |
Raparigas dos limões a oferecerem | |
Fruta mais atrevida: inesperados seios... | |
Uma roda de velhos seios despeitados, | |
Rabujando, | |
A pretexto de chá... | |
Engolfo-me num seio até perder | |
Memória de quem sou... | |
Quantos seios devorou a guerra, quantos, | |
Depressa ou devagar, roubou à vida, | |
À alegria, ao amor e às gulosas | |
Bocas dos miúdos! | |
Pouso a cabeça no teu seio | |
E nenhum desejo me estremece a carne. | |
Vejo os teus seios, absortos | |
Sobre um pequeno ser" | |
José Gomes Ferreira,"Quero voar | |
Quero voar | |
-mas saem da lama | |
garras de chão | |
que me prendem os tornozelos. | |
Quero morrer | |
-mas descem das nuvens | |
braços de angústia | |
que me seguram pelos cabelos. | |
E assim suspenso | |
no clamor da tempestade | |
como um saco de problemas | |
-tapo os olhos com as lágrimas | |
para não ver as algemas... | |
(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)" | |
Vinicius de Moraes,"Dialética | |
É claro que a vida é boa | |
E a alegria, a única indizível emoção | |
É claro que te acho linda | |
Em ti bendigo o amor das coisas simples | |
É claro que te amo | |
E tenho tudo para ser feliz | |
Mas acontece que eu sou triste..." | |
Jorge de Sena,"Beijo | |
Um beijo em lábios é que se demora | |
e tremem no abrir-se a dentes línguas | |
tão penetrantes quanto línguas podem. | |
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante | |
para de encher-se ao que se mova nela. | |
É dentes se apertando delicados. | |
É língua que na boca se agitando | |
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto | |
e sobretudo o que se oculta em sombras | |
e nos recantos em cabelos vive. | |
É beijo tudo o que de lábios seja | |
quanto de lábios se deseja." | |
Manuel Bandeira,"Poética | |
Estou farto do lirismo comedido | |
Do lirismo bem comportado | |
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente | |
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor. | |
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o | |
cunho vernáculo de um vocábulo. | |
Abaixo os puristas | |
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais | |
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção | |
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis | |
Estou farto do lirismo namorador | |
Político | |
Raquítico | |
Sifilítico | |
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora | |
de si mesmo | |
De resto não é lirismo | |
Será contabilidade tabela de co-senos secretário | |
do amante exemplar com cem modelos de cartas | |
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. | |
Quero antes o lirismo dos loucos | |
O lirismo dos bêbados | |
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos | |
O lirismo dos clowns de Shakespeare | |
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação." | |
Fernando Pessoa,"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. | |
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. | |
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos | |
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. | |
(Enlaçemos as mãos). | |
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida | |
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, | |
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado, | |
Mais longe que os deuses. | |
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. | |
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. | |
Mais vale saber passar silenciosamente. | |
E sem desassossegos grandes." | |
Mário Cesariny,"Poema | |
Em todas as ruas te encontro | |
em todas as ruas te perco | |
conheço tão bem o teu corpo | |
sonhei tanto a tua figura | |
que é de olhos fechados que eu ando | |
a limitar a tua altura | |
e bebo a água e sorvo o ar | |
que te atravessou a cintura | |
tanto tão perto tão real | |
que o meu corpo se transfigura | |
e toca o seu próprio elemento | |
num corpo que já não é seu | |
num rio que desapareceu | |
onde um braço teu me procura | |
Em todas as ruas te encontro | |
em todas as ruas te perco | |
" | |
Luís de Camões,"Da alma e de quanto tiver | |
Da alma e de quanto tiver | |
Quero que me despojeis, | |
contanto que me deixeis | |
Os olhos para vos ver." | |
Cesário Verde,"Eu que sou feio, sólido, leal | |
Eu que sou feio, sólido, leal, | |
A ti, que és bela, frágil, assustada, | |
Quero estimar-te, sempre, recatada | |
Numa existência honesta, de cristal. | |
Sentado à mesa de um café devasso, | |
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura, | |
Nesta babel tão velha e corruptora, | |
Tive tenções de oferecer-te o braço. | |
E, quando socorrestes um miserável, | |
Eu, que bebia cálices de absinto, | |
Mandei ir a garrafa, porque sinto | |
Que me tornas prestante, bom, sudável. | |
«Ela aí vem!» disse eu para os demais; | |
E pus me a olhar, vexado e suspirando, | |
O teu corpo que pulsa, alegre e brando, | |
Na frescura dos linhos matinais. | |
Via-te pela porta envidraçada; | |
E invejava, - talvez que não o suspeites! - | |
Esse vestido simples, sem enfeites, | |
Nessa cintura tenra, imaculada. | |
... | |
Soberbo dia! Impunha-me respeito | |
A limpidez do teu semblante grego; | |
E uma família, um ninho de sossego, | |
Desejava beijar o teu peito. | |
Com elegância e sem ostentação, | |
Atravessavas branca, esbelta e fina, | |
Uma chusma de padres de batina, | |
E de altos funcionários da nação. | |
«Mas se a atropela o povo turbulento! | |
Se fosse, por acaso, ali pisada!» | |
De repente, parastes embaraçada | |
Ao pé de um numeroso ajuntamento, | |
E eu, que urdia estes frágeis esbocetos, | |
Julguei ver, com a vista de poeta, | |
Um pombinha tímida e quieta | |
Num bando ameaçador de corvos pretos. | |
E foi, então que eu, homem varonil, | |
Quis dedicar-te a minha pobre vida, | |
A ti, que és ténue, dócil, recolhida, | |
Eu, que sou hábil, prático, viril." | |
Cecília Meireles,"Por que me falas nesse idioma? | |
Por que me falas nesse idioma? perguntei-lhe, sonhando. | |
Em qualquer língua se entende essa palavra. | |
Sem qualquer língua. | |
O sangue sabe-o. | |
Uma inteligência esparsa aprende | |
esse convite inadiável. | |
Búzios somos, moendo a vida | |
inteira essa música incessante. | |
Morte, morte. | |
Levamos toda a vida morrendo em surdina. | |
No trabalho, no amor, acordados, em sonho. | |
A vida é a vigilância da morte, | |
até que o seu fogo veemente nos consuma | |
sem a consumir." | |
António Gedeão,"Poema do alegre desespero | |
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal | |
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo | |
que plantava couves em Oliveira do Hospital, | |
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores | |
que tirou um retrato toda vestida de veludo | |
sentada num canapé junto de um vaso com flores. | |
Compreende-se. | |
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto | |
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império) | |
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil, | |
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito, | |
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil, | |
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras, | |
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio, | |
e passavam a vida inteira a fazer guerras, | |
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio, | |
e o resto tudo por aí fora, | |
e a Guerra dos Cem Anos, | |
e a Invencível Armada, | |
e as campanhas de Napoleão, | |
e a bomba de hidrogénio. | |
Compreende-se. | |
Mais império menos império, | |
mais faraó menos faraó, | |
será tudo um vastíssimo cemitério, | |
cacos, cinzas e pó. | |
Compreende-se. | |
Lá para o ano três mil e tal. | |
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?" | |
Pablo Neruda,"Dois amantes felizes não têm fim nem morte | |
Dois amantes felizes não têm fim nem morte, | |
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem, | |
são eternos como é a natureza." | |
Fernando Pessoa,"LIBERDADE | |
Ai que prazer | |
Não cumprir um dever, | |
Ter um livro para ler | |
E não o fazer! | |
Ler é maçada, | |
Estudar é nada. | |
O sol doira | |
Sem literatura. | |
O rio corre, bem ou mal, | |
Sem edição original. | |
E a brisa, essa, | |
De tão naturalmente matinal, | |
Como tem tempo não tem pressa... | |
Livros são papéis pintados com tinta. | |
Estudar é uma coisa em que está indistinta | |
A distinção entre nada e coisa nenhuma. | |
Quanto é melhor, quanto há bruma, | |
Esperar por D. Sebastião, | |
Quer venha ou não! | |
Grande é a poesia, a bondade e as danças... | |
Mas o melhor do mundo são as crianças, | |
Flores, música, o luar, e o sol, que peca | |
Só quando, em vez de criar, seca. | |
O mais que isto | |
É Jesus Cristo, | |
Que não sabia nada de finanças | |
Nem consta que tivesse biblioteca..." | |
Cesário Verde,"Nas nossas ruas, ao anoitecer | |
Nas nossas ruas, ao anoitecer, | |
Há tal soturnidade, há tal melancolia, | |
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia | |
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer" | |
Eugénio de Andrade,"Procura a maravilha | |
Procura a maravilha. | |
Onde um beijo sabe | |
a barcos e bruma. | |
No brilho redondo | |
e jovem dos joelhos. | |
Na noite inclinada | |
de melancolia. | |
Procura. | |
Procura a maravilha." | |
Maria Teresa Horta,"Joelho | |
Ponho um beijo | |
demorado | |
no topo do teu joelho | |
Desço-te a perna | |
arrastando | |
a saliva pelo meio | |
Onde a língua | |
segue o trilho | |
até onde vai o beijo | |
Não há nada | |
que disfarce | |
de ti aquilo que vejo | |
Em torno um mar | |
tão revolto | |
no cume o cimo do tempo | |
E os lençóis desalinhados | |
como se fosse | |
de vento | |
Volto então ao teu | |
joelho | |
entreabrindo-te as pernas | |
Deixando a boca | |
faminta | |
seguir o desejo nelas." | |
António Gedeão,"Amostra sem valor | |
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém. | |
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: | |
com ele se entretém | |
e se julga intangível. | |
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu, | |
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito, | |
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, | |
não pesa num total que tende para infinito. | |
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida | |
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, | |
nesta insignificância, gratuita e desvalida, | |
Universo sou eu, com nebulosas e tudo. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Segundo: O QUINTO IMPÉRIO | |
Triste de quem vive em casa, | |
Contente com o seu lar, | |
Sem que um sonho, no erguer de asa, | |
Faça até mais rubra a brasa | |
Da lareira a abandonar! | |
Triste de quem é feliz! | |
Vive porque a vida dura. | |
Nada na alma lhe diz | |
Mais que a lição da raiz- | |
Ter por vida a sepultura. | |
... | |
Grécia, Roma, Cristandade, | |
Europa - os quatro se vão | |
Para onde vai toda idade. | |
Quem vem viver a verdade | |
Que morreu D. Sebastião?" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Limites do Amor | |
Condenado estou a te amar | |
nos meus limites | |
até que exausta e mais querendo | |
um amor total, livre das cercas, | |
te despeça de mim, sofrida, | |
na direção de outro amor | |
que pensas ser total e total será | |
nos seus limites da vida. | |
O amor não se mede | |
pela liberdade de se expor nas praças | |
e bares, em empecilho. | |
É claro que isto é bom e, às vezes, | |
sublime. | |
Mas se ama também de outra forma, incerta, | |
e este o mistério: | |
- ilimitado o amor às vezes se limita, | |
proibido é que o amor às vezes se liberta." | |
Pablo Neruda,"Nega-me o pão, o ar | |
Nega-me o pão, o ar, | |
a luz, a primavera, | |
mas nunca o teu riso, | |
porque então morreria." | |
Olavo Bilac,"Um beijo | |
Foste o beijo melhor da minha vida, | |
ou talvez o pior...Glória e tormento, | |
contigo à luz subi do firmamento, | |
contigo fui pela infernal descida! | |
Morreste, e o meu desejo não te olvida: | |
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento, | |
e do teu gosto amargo me alimento, | |
e rolo-te na boca malferida. | |
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo, | |
batismo e extrema-unção, naquele instante | |
por que, feliz, eu não morri contigo? | |
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto, | |
beijo divino! e anseio delirante, | |
na perpétua saudade de um minuto...." | |
Florbela Espanca,"O Nosso Mundo | |
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?... | |
Que importa o mundo seus orgulhos vãos?... | |
O mundo, Amor?... As nossas bocas juntas!..." | |
Eugénio de Andrade,"A boca | |
A boca, | |
onde o fogo | |
de um verão | |
muito antigo | |
cintila, | |
a boca espera | |
(que pode uma boca | |
esperar | |
senão outra boca?) | |
espera o ardor | |
do vento | |
para ser ave, | |
e cantar." | |
António Gedeão,"Gota de Água | |
Eu, quando choro, | |
não choro eu. | |
Chora aquilo que nos homens | |
em todo o tempo sofreu. | |
As lágrimas são as minhas | |
mas o choro não é meu." | |
Eugénio de Andrade,"Levar-te à boca | |
Levar-te à boca, | |
beber a água | |
mais funda do teu ser - | |
se a luz é tanta, | |
como se pode morrer?" | |
Florbela Espanca,"Amiga | |
Beija-mas bem!... Que fantasia louca | |
Guardar assim, fechados, nestas mãos, | |
Os beijos que sonhei pra minha boca!..." | |
Eugénio de Andrade,"Ainda sabemos cantar | |
Ainda sabemos cantar, | |
só a nossa voz é que mudou: | |
somos agora mais lentos, | |
mais amargos, | |
e um novo gesto é igual ao que passou. | |
Um verso já não é a maravilha, | |
um corpo já não é a plenitude." | |
Eugénio de Andrade,"Diz homem, diz criança, diz estrela | |
Diz homem, diz criança, diz estrela. | |
Repete as sílabas | |
onde a luz é feliz e se demora. | |
Volta a dizer: homem, mulher, criança. | |
Onde a beleza é mais nova." | |
Mário Cesariny,"Faz-me o favor | |
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Supor o que dirá Tua boca velada É ouvir-te já. É ouvir-te melhor Do que o dirias. O que és nao vem à flor Das caras e dos dias. Tu és melhor -- muito melhor!-- Do que tu. Não digas nada. Sê Alma do corpo nu Que do espelho se vê." | |
Luís de Camões,"Transforma-se o amador na cousa amada | |
Transforma-se o amador na cousa amada, | |
Por virtude do muito imaginar; | |
Não tenho logo mais que desejar, | |
Pois em mim tenho a parte desejada. | |
Se nela está minha alma transformada, | |
Que mais deseja o corpo de alcançar? | |
Em si somente pode descansar, | |
Pois consigo tal alma está ligada. | |
Mas esta linda e pura semideia, | |
Que, como o acidente em seu sujeito, | |
Assim coa alma minha se conforma, | |
Está no pensamento como ideia; | |
E o vivo e puro amor de que sou feito, | |
Como matéria simples busca a forma." | |
David Mourão-Ferreira,"Nós temos cinco sentidos | |
Nós temos cinco sentidos: | |
são dois pares e meio de asas. | |
- Como quereis o equilíbrio?" | |
Eugénio de Andrade,"Húmido de beijos e de lágrimas | |
Húmido de beijos e de lágrimas, | |
ardor da terra com sabor a mar, | |
o teu corpo perdia-se no meu. | |
(Vontade de ser barco ou de cantar.)" | |
Fernando Pessoa,"Tudo que faço ou medito | |
Tudo que faço ou medito | |
Fica sempre na metade. | |
Querendo, quero o infinito. | |
Fazendo, nada é verdade. | |
Que nojo de mim me fica | |
Ao olhar para o que faço! | |
Minha alma é lúcida e rica, | |
E eu sou um mar de sargaço – | |
Um mar onde bóiam lentos | |
Fragmentos de um mar de além... | |
Vontades ou pensamentos? | |
Não o sei e sei-o bem. | |
13/09/1933" | |
José Gomes Ferreira,"Porque é que este sonho absurdo | |
Porque é que este sonho absurdo | |
a que chamam realidade | |
não me obedece como os outros | |
que trago na cabeça? | |
Eis a grande raiva! | |
Misturem-na com rosas | |
e chamem-lhe vida." | |
Eugénio de Andrade,"Música, levai-me | |
Música, levai-me: | |
Onde estão as barcas? | |
Onde são as ilhas?" | |
Florbela Espanca,"Fumo | |
Longe de ti são ermos os caminhos, | |
Longe de ti não há luar nem rosas; | |
Longe de ti há noites silenciosas, | |
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!" | |
Luís de Camões,"Mas, conquanto não pode haver desgosto | |
Mas, conquanto não pode haver desgosto | |
Onde esperança falta, lá me esconde | |
Amor um mal, que mata e não se vê; | |
Que dias há que na alma me tem posto | |
Um não sei quê, que nasce não sei onde, | |
Vem não sei como, e dói não sei porquê." | |
José Gomes Ferreira,"Viver sempre também cansa | |
Viver sempre também cansa! | |
O sol é sempre o mesmo e o céu azul | |
ora é azul, nitidamente azul, | |
ora é cinza, negro, quase verde... | |
Mas nunca tem a cor inesperada. | |
O Mundo não se modifica. | |
As árvores dão flores, | |
folhas, frutos e pássaros | |
como máquinas verdes. | |
As paisagens não se transformam | |
Não cai neve vermelha | |
Não há flores que voem, | |
A lua não tem olhos | |
Niguém vai pintar olhos à lua | |
Tudo é igual, mecanico e exacto | |
Ainda por cima os homens são os homens | |
Soluçam, bebem riem e digerem | |
sem imaginação. | |
E há bairros miseráveis sempre os mesmos | |
discursos de Mussolini, | |
guerras, orgulhos em transe | |
automóveis de corrida... | |
E obrigam-me a viver até à morte! | |
Pois não era mais humano | |
Morrer por um bocadinho | |
De vez em quando | |
E recomeçar depois | |
Achando tudo mais novo? | |
Ah! Se eu podesse suicidar-me por seis meses | |
Morre em cima dum divã | |
Com a cabeça sobre uma almofada | |
Confiante e sereno por saber | |
Que tu velavas, meu amor do norte. | |
Quando viessem perguntar por mim | |
Havias de dizer com teu sorriso | |
Onde arde um coração em melodia | |
Matou-se esta manhã | |
Agora não o vou ressuscitar | |
Por uma bagatela | |
E virias depois, suavemente, | |
velar por mim, subtil e cuidadosa, | |
pé ante pé, não fosses acordar | |
a Morte ainda menina no meu colo.. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Vai-te, Poesia! | |
Vai-te, Poesia! | |
Deixa-me ver a vida | |
exacta e intolerável | |
neste planeta feito de carne humana a chorar | |
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos | |
com bandeiras de lume nos olhos, | |
para fabricar sonhos | |
carregados de dinamite de lágrimas. | |
Vai-te, Poesia! | |
Não quero cantar. | |
Quero gritar!" | |
Florbela Espanca,"Realidade | |
Em ti o meu olhar fez-se alvorada, | |
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho, | |
E a minha rubra boca apaixonada | |
Teve a frescura do linho" | |
Florbela Espanca,"Sem Remédio | |
Aqueles que me têm muito amor Não sabem o que sinto e o que sou... Não sabem que passou, um dia, a Dor À minha porta e, nesse dia, entrou. E é desde então que eu sinto este pavor, Este frio que anda em mim, e que gelou O que de bom me deu Nosso Senhor! Se eu nem sei por onde ando e onde vou!! Sinto os passos de Dor, essa cadência Que é já tortura infinda, que é demência! Que é já vontade doida de gritar! E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio, A mesma angústia funda, sem remédio, Andando atrás de mim, sem me largar!" | |
Jorge de Sena,"Conheço o Sal | |
Conheço o sal da tua pele seca | |
depois que o estio se volveu inverno | |
da carne repousada em suor nocturno. | |
Conheço o sal do leite que bebemos | |
quando das bocas se estreitavam lábios | |
e o coração no sexo palpitava. | |
Conheço o sal dos teus cabelos negros | |
ou louros ou cinzentos que se enrolam | |
neste dormir de brilhos azulados. | |
Conheço o sal que resta em minha mãos | |
como nas praias o perfume fica | |
quando a maré desceu e se retrai. | |
Conheço o sal da tua boca, o sal | |
da tua língua, o sal de teus mamilos, | |
e o da cintura se encurvando de ancas. | |
A todo o sal conheço que é só teu, | |
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, | |
um cristalino pó de amantes enlaçados." | |
Ruy Belo,"É triste ir pela vida | |
É triste ir pela vida como quem | |
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro" | |
Maria Teresa Horta,"Poema sobre a recusa | |
Como é possível perder-te | |
sem nunca te ter achado | |
nem na polpa dos meus dedos | |
se ter formado o afago | |
sem termos sido a cidade | |
nem termos rasgado pedras | |
sem descobrirmos a cor | |
nem o interior da erva. | |
Como é possível perder-te | |
sem nunca te ter achado | |
minha raiva de ternura | |
meu ódio de conhecer-te | |
minha alegria profunda." | |
Fernando Pessoa,"Sou um evadido. | |
Sou um evadido. | |
Logo que nasci | |
Fecharam-me em mim, | |
Ah, mas eu fugi. | |
Se a gente se cansa | |
Do mesmo lugar, | |
Do mesmo ser | |
Por que não se cansar? | |
Minha alma procura-me | |
Mas eu ando a monte, | |
Oxalá que ela | |
Nunca me encontre. | |
Ser um é cadeia, | |
Ser eu é não ser. | |
Viverei fugindo | |
Mas vivo a valer." | |
Fernando Pessoa,"Prefiro rosas, meu amor, à pátria, | |
Prefiro rosas, meu amor, à pátria, | |
E antes magnólias amo | |
Que a glória e a virtude. | |
Logo que a vida me não canse, deixo | |
Que a vida por mim passe | |
Logo que eu fique o mesmo. | |
Que importa àquele a quem já nada importa | |
Que um perca e outro vença, | |
Se a aurora raia sempre, | |
Se cada ano com a Primavera | |
As folhas aparecem | |
E com o Outono cessam? | |
E o resto, as outras coisas que os humanos | |
Acrescentam à vida, | |
Que me aumentam na alma? | |
Nada, salvo o desejo de indiferença | |
E a confiança mole | |
Na hora fugitiva." | |
Alexandre O'Neill,"A meu favor | |
A meu favor | |
Tenho o verde secreto dos teus olhos | |
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor | |
O tapete que vai partir para o infinito | |
Esta noite ou uma noite qualquer | |
A meu favor | |
As paredes que insultam devagar | |
Certo refúgio acima do murmúrio | |
Que da vida corrente teime em vir | |
O barco escondido pela folhagem | |
O jardim onde a aventura recomeça." | |
José Gomes Ferreira,"Choro! | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro | |
as crianças violadas | |
nos muros da noite | |
úmidos de carne lívida | |
onde as rosas se desgrenham | |
para os cabelos dos charcos. | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro | |
diante desta mulher que ri | |
com um sol de soluços na boca | |
— no exílio dos Rumos Decepados. | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro | |
este seqüestro de ir buscar cadáveres | |
ao peso dos poços | |
— onde já nem sequer há lodo | |
para as estrelas descerem | |
arrependidas de céu. | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro | |
a coragem do último sorriso | |
para o rosto bem-amado | |
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos | |
com as mãos ainda à procura do eterno | |
na carne de despir, | |
suada de ilusão. | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro | |
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica | |
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias | |
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos | |
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do | |
silêncio | |
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas | |
de miséria... | |
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro... | |
Mas não por mim, ouviram? | |
Eu não preciso de lágrimas! | |
Eu não quero lágrimas! | |
Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim! | |
Deixem-me para aqui, seco, | |
senhor de insônias e de cardos, | |
neste òdio enternecido | |
de chorar em segredo pelos outros | |
à espera daquele Dia | |
em que o meu coração | |
estoire de amor a Terra | |
com as lágrimas públicas de pedra incendiada | |
a correrem-me nas faces | |
— num arrepio de Primavera | |
e de Catástrofe!" | |
Florbela Espanca,"Não Ser | |
Ah! arrancar às carnes laceradas Seu mísero segredo de consciência! Ah! poder ser apenas florescência De astros em puras noites deslumbradas! Ser nostálgico choupo ao entardecer, De ramos graves, plácidos, absortos Na mágica tarefa de viver! ... Quem nos deu asas para andar de rastos? Quem nos deu olhos para ver os astros - Sem nos dar braços para os alcançar?!..." | |
Fernando Pessoa,"I. O INFANTE | |
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. | |
... | |
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. | |
Senhor, falta cumprir-se Portugal!" | |
Florbela Espanca,"Languidez | |
Fecho as pálpebras roxas, quase pretas, | |
Que poisam sobre duas violetas, | |
Asas leves cansadas de voar... | |
E a minha boca tem uns beijos mudos... | |
E as minhas mãos, uns pálidos veludos, | |
Traçam gestos de sonho pelo ar..." | |
José Gomes Ferreira,"Entrei no café com um rio na algibeira | |
Entrei no café com um rio na algibeira | |
e pu-lo no chão, | |
a vê-lo correr | |
da imaginação... | |
A seguir, tirei do bolso do colete | |
nuvens e estrelas | |
e estendi um tapete | |
de flores | |
a concebê-las. | |
Depois, encostado à mesa, | |
tirei da boca um pássaro a cantar | |
e enfeitei com ele a Natureza | |
das árvores em torno | |
a cheirarem ao luar | |
que eu imagino. | |
E agora aqui estou a ouvir | |
A melodia sem contorno | |
Deste acaso de existir | |
-onde só procuro a Beleza | |
para me iludir | |
dum destino. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Quer pouco: terás tudo. | |
Quer pouco, terás tudo. | |
Quer nada: serás livre. | |
O mesmo amor que tenham | |
Por nós, quer-nos, oprime-nos." | |
Jorge de Sena,"Génesis | |
De mim não falo mais :não quero nada. | |
De Deus não falo:não tem outro abrigo. | |
Não falarei também do mundo antigo, | |
pois nasce e morre em cada madrugada. | |
Nem de existir,que é a vida atraiçoada, | |
para sentir o tempo andar comigo; | |
nem de viver,que é liberdade errada, | |
e foge todo o Amor quando o persigo. | |
Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos | |
em vâo a esperaram porque nunca a viram! | |
E a eternidade...Ó transfusâo dos povos! | |
Não há verdade:O mundo não a esconde. | |
Tudo se vê: só se não sabe aonde. | |
Mortais ou imortais,todos mentiram." | |
Eugénio de Andrade,"Eram de longe | |
Eram de longe. | |
Do mar traziam | |
o que é do mar: doçura | |
e ardor nos olhos fatigados." | |
Cecília Meireles,"Amém | |
Hoje acabou-se-me a palavra, | |
e nenhuma lágrima vem. | |
Ai, se a vida se me acabara | |
também! | |
A profusão do mundo, imensa, | |
tem tudo, tudo - e nada tem. | |
Onde repousar a cabeça? | |
No além? | |
Fala-se com os homens, com os santos, | |
consigo, com Deus. . . E ninguém | |
entende o que se está contando | |
e a quem. . . | |
Mas terra e sol, luas e estrelas | |
giram de tal maneira bem | |
que a alma desanima de queixas. | |
Amém. | |
(Cecília Meireles)" | |
Leila Mícollis,"Amante das letras | |
Não te importas com os homens que dormem comigo; | |
mas morres de ciúme | |
dos versos que faço pra eles... | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Álcool | |
Guilhotinas, pelouros e castelos | |
Resvalam longemente em procissão; | |
Volteiam-me crepúsculos amarelos, | |
Mordidos, doentios de roxidão. | |
Batem asas de auréola aos meus ouvidos, | |
Grifam-me sons de cor e de perfumes, | |
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes, | |
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos. | |
Respiro-me no ar que ao longe vem, | |
Da luz que me ilumina participo; | |
Quero reunir-me, e todo me dissipo --- | |
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além... | |
Corro em volta de mim sem me encontrar... | |
Tudo oscila e se abate como espuma... | |
Um disco de oiro surge a voltear... | |
Fecho os meus olhos com pavor da bruma... | |
Que droga foi a que me inoculei? | |
Ópio de inferno em vez de paraíso?... | |
Que sortilégio a mim próprio lancei? | |
Como é que em dor genial eu me eternizo? | |
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu, | |
Foi álcool mais raro e penetrante: | |
É só de mim que ando delirante --- | |
Manhã tão forte que me anoiteceu. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Foi um momento | |
Foi um momento | |
O em que pousaste | |
Sobre o meu braço, | |
Num movimento | |
Mais de cansaço | |
Que pensamento, | |
A tua mão | |
E a retiraste. | |
Senti ou não? | |
Não sei. Mas lembro | |
E sinto ainda | |
Qualquer memória | |
Fixa e corpórea | |
Onde pousaste | |
A mão que teve | |
Qualquer sentido | |
Incompreendido, | |
Mas tão de leve!... | |
Tudo isto é nada, | |
Mas numa estrada | |
Como é a vida | |
Há uma coisa | |
Incompreendida... | |
Sei eu se quando | |
A tua mão | |
Senti pousando | |
Sobre o meu braço, | |
E um pouco, um pouco, | |
No coração, | |
Não houve um ritmo | |
Novo no espaço? | |
Como se tu, | |
Sem o querer, | |
Em mim tocasses | |
Para dizer | |
Qualquer mistério, | |
Súbito e etéreo, | |
Que nem soubesses | |
Que tinha ser. | |
Assim a brisa | |
Nos ramos diz | |
Sem o saber | |
Uma imprecisa | |
Coisa feliz." | |
Eugénio de Andrade,"Colhe todo o oiro | |
Colhe | |
todo o oiro do dia | |
na haste mais alta | |
da melancolia." | |
Ruy Belo,"Mesmo que não conheças | |
Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar | |
caminha para o mar pelo verão" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Sete Canções de Declínio | |
1 | |
Um vago tom de opala debelou | |
Prolixos funerais de luto de Astro | |
E pelo espaço, a Oiro se enfolou | |
O estandarte real livre, sem mastro. | |
Fantástica bandeira sem suporte, | |
Incerta, nevoenta, recamada | |
A desdobrar-se como a minha Sorte | |
Predita por ciganos numa estrada ... | |
2 | |
Atapetemos a vida | |
Contra nós e contra o mundo. | |
— Desçamos panos de fundo | |
A cada hora vivida! | |
Desfiles, danças embora | |
Mal sejam uma ilusão... | |
Cenário de mutação | |
Pela minha vida fora! | |
Quero ser Eu plenamente: | |
Eu, o possesso do Pasmo. | |
Todo o meu entusiasmo, | |
Ah! que seja o meu Oriente! | |
O grande doido, o varrido, | |
O perdulário do Instante | |
O amante sem amante, | |
Ora amado, ora traído ... | |
Lançar os barcos ao Mar | |
De névoa, em rumo de incerto... | |
Pra mim o longe é mais perto | |
Do que o presente lugar. | |
...E as minhas unhas polidas | |
Idéia de olhos pintados... | |
Meus sentidos maquilados | |
A tintas conhecidas ... | |
Mistério duma incerteza | |
Que nunca se há de fixar... | |
Sonhador em frente ao mar | |
Duma olvidada riqueza ... | |
Num programa de teatro | |
Suceda-se a minha vida | |
Escada de Oiro descida | |
Aos pinotes, quatro a quatro! ... | |
3 | |
Embora num funeral | |
Desfraldemos as bandeiras | |
Só as cores são verdadeiras | |
Siga sempre o festival! | |
Quermesse — eia! — e ruído! | |
Louça quebrada! Tropel! | |
(Defronte do carrossel, | |
Eu, em ternura esquecido... ) | |
Fitas de cor, vozearia — | |
Os automóveis repletos: | |
Seus chauffeurs — os meus afetos | |
Com librés de fantasia! | |
Ser bom... Gostaria tanto | |
De o ser... Mas como? Afinal | |
Só se me fizesse mal | |
Eu fruiria esse encanto. | |
— Afetos?... Divagações... | |
Amigo dos meus amigos... | |
Amizades são castigos, | |
Não me embaraço em prisões! | |
Fiz deles os meus criados, | |
Com muita pena decerto. | |
Mas quero o Salão aberto, | |
E os meus braços repousados. | |
4 | |
As grandes Horas! — vive-las | |
A preço mesmo dum crime! | |
Só a beleza redime — | |
Sacrifícios são novelas. | |
""Ganhar o pão do seu dia | |
Com o suor do seu rosto..."" | |
— Mas não há maior desgosto | |
Nem há maior vilania! | |
E quem for Grande não venha | |
Dizer-me que passa fome. | |
Nada há que se não dome | |
Quando a Estrela for tamanha! | |
Nem receios nem temores, | |
Mesmo que sofra por nós | |
Quem nos faz bem. Esses dós | |
Impeçam os inferiores. | |
Os Grandes, partam — dominem | |
Sua sorte em suas mãos: | |
— Toldados, inúteis, vãos, | |
Que o seu Destino imaginem! | |
Nada nos pode deter; | |
O nosso caminho é de Astro! | |
Luto — embora! — o nosso rastro, | |
Se pra nós Oiro há de ser! ... | |
5 | |
Vaga lenda facetada | |
A imprevisto e miragens — | |
Um grande livro de imagens, | |
Uma toalha bordada ... | |
Um baile russo a mil cores. | |
Um Domingo de Paris — | |
Cofre de Imperatriz | |
Roubado por malfeitores. | |
Antiga quinta deserta | |
Em que os donos faleceram — | |
Porta de cristal aberta | |
Sobre sonhos que esqueceram ... | |
Um lago à luz do luar | |
Com um barquinho de corda... | |
Saudade que não recorda — | |
Bola de tênis no ar... | |
Um leque que se rasgou — | |
Anel perdido no parque — | |
Lenço que acenou no embarque | |
De Aquela que não voltou ... | |
Praia de banhos do sul | |
Com meninos a brincar | |
Descalços à beira-mar, | |
Em tardes de céu azul... | |
Viagem circulatória | |
Num expresso de vagões-leitos — | |
Balão aceso — defeitos | |
De instalação provisória ... | |
Palace cosmopolita | |
De rastaquoères e cocottes — | |
Audaciosos decotes | |
Duma francesa bonita ... | |
Confusão de music-hall, | |
Aplausos e brou-u-ha — | |
Interminável sofá | |
Dum estofo profundo e mole. . . | |
Pinturas a ""ripolin"", | |
Anúncios pelos telhados — | |
O barulho dos teclados | |
Das Lynotype do Matin... | |
Manchete de sensação | |
Transmitida a todo o mundo — | |
Famoso artigo de fundo | |
Que acende uma revolução ... | |
Um sobrescrito lacrado | |
Que transviou no correio, | |
E nos chega sujo — cheio | |
De carimbos, lado a lado. . . | |
Nobre ponte citadina | |
De intranqüila capital — | |
A umidade outonal | |
De uma manhã de neblina ... | |
Uma bebida gelada — | |
Presentes todos os dias. . . | |
Champanha em taças esguias | |
Ou água ao sol entornada ... | |
Uma gaveta secreta | |
Com segredos de adultérios... | |
Porta falsa de mistérios — | |
Toda uma estante repleta: | |
Seja enfim a minha vida | |
Tarada de ócios e Lua: | |
Vida de Café e rua, | |
Dolorosa, suspendida — | |
Ah! mas de enlevo tão grande | |
Que outra nem sonho ou prevejo... | |
— A eterna mágoa dum beijo, | |
Essa mesma, ela me expande ... | |
6 | |
Um frenesi hialino arrepiou | |
Pra sempre a minha carne e a minha vida. | |
Fui um barco de vela que parou | |
Em súbita baía adormecida ... | |
Baía embandeirada de miragem, | |
Dormente de ópio, de cristal e anil, | |
Na idéia de um país de gaze e Abril, | |
Em duvidosa e tremulante imagem ... | |
Parou ali a barca — e, ou fosse encanto, | |
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento, | |
Não mais aparelhou... — ou fosse o vento | |
Propício que faltasse: ágil e santo ... | |
...Frente ao porto esboçara-se a cidade, | |
Descendo enlanguescida e preciosa: | |
As cúpulas de sombra cor-de-rosa, | |
As torres de platina e de saudade. | |
Avenidas de seda deslizando, | |
Praças de honra libertas sobre o mar | |
Jardins onde as flores fossem luar; | |
Lagos — carícias de âmbar flutuando ... | |
Os palácios de renda e escumalha. | |
De filigrana e cinza as catedrais — | |
Sobre a cidade a luz — esquiva poalha | |
Tingindo-se através longos vitrais ... | |
Vitrais de sonho a debruá-la em volta, | |
A isolá-la em lenda marchetada: | |
Uma Veneza de capricho — solta, | |
Instável, dúbia, pressentida, alada... | |
Exílio branco — a sua atmosfera, | |
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-ha... | |
E na praça mais larga, em frágil cera, | |
Eu — a estátua ""que nunca tombará""... | |
7 | |
Meu alvoroço de oiro e lua | |
Tinha por fim que transbordar... | |
— Caiu-me a Alma ao meio da rua, | |
E não a Posso ir apanhar!" | |
Manuel Bandeira,"Quando estás vestida | |
Quando estás vestida, | |
Ninguém imagina | |
Os mundos que escondes | |
Sob as tuas roupas. | |
(Assim, quando é dia, | |
Não temos noção | |
Dos astros que luzem | |
No profundo céu. | |
Mas a noite é nua, | |
E, nua na noite, | |
Palpitam teus mundos | |
E os mundos da noite" | |
Alexandre O'Neill,"Mesa dos sonhos | |
Ao lado do homem vou crescendo | |
Defendo-me da morte quando dou | |
Meu corpo ao seu desejo violento | |
E lhe devoro o corpo lentamente | |
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem | |
Todas as formas e começam | |
Todas as vidas | |
Ao lado do homem vou crescendo | |
E defendo-me da morte povoando | |
de novos sonhos a vida." | |
Ruy Belo,"e um olhar perdido é tão difícil de encontrar | |
e um olhar perdido é tão difícil de encontrar como o é congregar ventos dispersos pelo mar" | |
Nuno Júdice,"Elegia com uma variação romântica | |
As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem | |
as camas desfeitas, empilham camisas e calças, | |
abotoam os cintos do infinito, prendem os laços | |
da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam | |
agulhas no buraco da vida, cosem as feridas | |
do amor que não tiveram, cantam devagar | |
a canção da idade fria. Dispo essas mulheres | |
no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras | |
do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo | |
os pontos que acabaram de coser. O seu sexo - | |
seco pelos ventos de uma inquietação nocturna | |
- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março | |
enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes, | |
as mulheres loucas abrem a porta da varanda, | |
respiram o perfume das trepadeiras brancas | |
da primavera, desmaiam com o sol." | |
Pablo Neruda,"Walking Around | |
Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas, | |
do meu cabelo e até da minha sombra. | |
Acontece que me canso de ser homem. | |
Todavia, seria delicioso | |
assustar um notário com um lírio cortado | |
ou matar uma freira com um soco na orelha. | |
Seria belo | |
ir pelas ruas com uma faca verde | |
e aos gritos até morrer de frio. | |
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos, | |
com fúria e esquecimento, | |
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas, | |
e pátios onde há roupa pendurada num arame: | |
cuecas, toalhas e camisas que choram | |
lentas lágrimas sórdidas." | |
Nuno Júdice,"Plano | |
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo, como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca. Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez, esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo e veja, através dele, o teu rosto inteiro." | |
Fernando Pessoa,"Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. | |
Acordo de noite subitamente. | |
E o meu relógio ocupa a noite toda. | |
Não sinto a Natureza lá fora, | |
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas. | |
Lá fora há um sossego como se nada existisse. | |
Só o relógio prossegue o seu ruído. | |
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa | |
Abafa toda a existência da terra e do céu... | |
Quase que me perco a pensar o que isto significa, | |
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca, | |
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa | |
É a curiosa sensação de encher a noite enorme | |
Com a sua pequenez..." | |
Ruy Belo,"Tem o amor a arte de tornar eterno | |
Tem o amor a arte de tornar eterno | |
aquele que por amor tem de morrer | |
e até de morrer jovem amiúde pois os deuses amam | |
aquele que perece em plena juventude | |
e assim se fixa petrifica e permanece" | |
Fernando Pessoa,"Ela canta, pobre ceifeira, | |
Ah, poder ser tu, sendo eu! | |
Ter a tua alegre inconsciência, | |
E a consciência disso! Ó céu! | |
Ó campo! Ó canção! A ciência | |
Pesa tanto e a vida é tão breve! | |
Entrai por mim dentro! Tornai | |
Minha alma a vossa sombra leve! | |
Depois, levando-me, passai!" | |
David Mourão-Ferreira,"Penélope | |
Mais do que um sonho: comoção! | |
Sinto-me tonto, enternecido, | |
quando, de noite, as minhas mãos | |
são o teu único vestido. | |
E recompões com essa veste, | |
que eu, sem saber, tinha tecido, | |
todo o pudor que desfizeste | |
como uma teia sem sentido; | |
todo o pudor que desfizeste | |
a meu pedido. | |
Mas nesse manto que desfias, | |
e que depois voltas a pôr, | |
eu reconheço os melhores dias | |
do nosso amor. | |
" | |
Pablo Neruda,"Angela Adonica | |
Hoje deitei-me junto a uma jovem pura | |
como se na margem de um oceano branco, | |
como se no centro de uma ardente estrela | |
de lento espaço. | |
Do seu olhar largamente verde | |
a luz caía como uma água seca, | |
em transparentes e profundos círculos | |
de fresca força. | |
Seu peito como um fogo de duas chamas | |
ardía em duas regiões levantado, | |
e num duplo rio chegava a seus pés, | |
grandes e claros. | |
Um clima de ouro madrugava apenas | |
as diurnas longitudes do seu corpo | |
enchendo-o de frutas extendidas | |
e oculto fogo." | |
Alexandre O'Neill,"Poesia-Cão | |
Com que então,coração, | |
poesia-aflição! | |
Antes poesia-cão | |
que é melhor posição. | |
Já que não és capaz | |
dos efes e dos erres | |
dessa solerte mão | |
que é a que preferes, | |
meu tolo desidério, | |
talvez seja mais sério | |
não te tomares a sério: | |
reduz-te ao impropério. | |
" | |
António Gedeão,"Dez réis de esperança | |
Se não fosse esta certeza | |
que nem sei de onde me vem, | |
não comia, nem bebia, | |
nem falava com ninguém. | |
Acocorava-me a um canto, | |
no mais escuro que houvesse, | |
punha os joelhos á boca | |
e viesse o que viesse. | |
Não fossem os olhos grandes | |
do ingénuo adolescente, | |
a chuva das penas brancas | |
a cair impertinente, | |
aquele incógnito rosto, | |
pintado em tons de aguarela, | |
que sonha no frio encosto | |
da vidraça da janela, | |
não fosse a imensa piedade | |
dos homens que não cresceram, | |
que ouviram, viram, ouviram, | |
viram, e não perceberam, | |
essas máscaras selectas, | |
antologia do espanto, | |
flores sem caule, flutuando | |
no pranto do desencanto, | |
se não fosse a fome e a sede | |
dessa humanidade exangue, | |
roía as unhas e os dedos | |
até os fazer em sangue." | |
Fernando Pessoa,"Nunca a alheia vontade, inda que grata, | |
Nunca a alheia vontade, inda que grata, | |
Cumpras por própria. Manda no que fazes, | |
Nem de ti mesmo servo. | |
Niguém te dá quem és. Nada te mude. | |
Teu íntimo destino involuntário | |
Cumpre alto. Sê teu filho." | |
Fernando Pessoa,"Põe-me as mãos nos ombros... | |
Põe a tua mão | |
Sobre o meu cabelo... | |
Tudo é ilusão. | |
Sonhar é sabê-lo." | |
Eugénio de Andrade,"Nunca o verão se demorara | |
Nunca o verão se demorara | |
assim nos lábios | |
e na água | |
- como podíamos morrer, | |
tão próximos | |
e nus e inocentes?" | |
Alexandre O'Neill,"Nesta curva tão terna e lancinante | |
Nesta curva tão terna e lancinante | |
que vai ser que já é o teu desaparecimento | |
digo-te adeus | |
e como um adolescente | |
tropeço de ternura | |
por ti." | |
Eugénio de Andrade,"É na escura folhagem do sono | |
É na escura folhagem do sono | |
que brilha | |
a pele molhada, | |
a difícil floração da língua." | |
Manuel Bandeira,"A morte absoluta | |
Morrer. | |
Morrer de corpo e de alma. | |
Completamente. | |
Morrer sem deixar o triste despojo da carne, | |
A exangue máscara de cera, | |
Cercada de flores, | |
Que apodrecerão – felizes! – num dia, | |
Banhada de lágrimas | |
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. | |
Morrer sem deixar porventura uma alma errante... | |
A caminho do céu? | |
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? | |
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, | |
A lembrança de uma sombra | |
Em nenhum coração, em nenhum pensamento, | |
Em nenhuma epiderme. | |
Morrer tão completamente | |
Que um dia ao lerem o teu nome num papel | |
Perguntem: ""Quem foi?..."" | |
Morrer mais completamente ainda, | |
Sem deixar sequer esse nome." | |
Jorge de Sena,"O corpo não espera | |
O corpo não espera. Não. Por nós | |
ou pelo amor. Este pousar de mãos, | |
tão reticente e que interroga a sós | |
a tépida secura acetinada, | |
a que palpita por adivinhada | |
em solitários movimentos vãos; | |
este pousar em que não estamos nós, | |
mas uma sêde, uma memória, tudo | |
o que sabemos de tocar desnudo | |
o corpo que não espera; este pousar | |
que não conhece, nada vê, nem nada | |
ousa temer no seu temor agudo... | |
Tem tanta pressa o corpo! E já passou, | |
quando um de nós ou quando o amor chegou." | |
Luís de Camões,"Acha a tenra mocidade | |
Acha a tenra mocidade | |
Prazeres acomodados, | |
E logo a maior idade | |
Já sente por pouquidade | |
Aqueles gostos passados. | |
Um gosto que hoje se alcança, | |
Amanhã já não o vejo; | |
Assim nos traz a mudança | |
De esperança em esperança | |
E de desejo em desejo. | |
Mas em vida tão escassa | |
Que esperança será forte? | |
Fraqueza da humana sorte, | |
Que quanto da vida passa | |
Está receitando a morte!" | |
Fernando Pessoa,"Quinta: D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL | |
Sem a loucura que é o homem | |
Mais que a besta sadia, | |
Cadáver adiado que procria?" | |
Federico García Lorca,"Se as minhas mãos pudessem desfolhar | |
Eu pronuncio teu nome | |
nas noites escuras, | |
quando vêm os astros | |
beber na lua | |
e dormem nas ramagens | |
das frondes ocultas. | |
E eu me sinto oco | |
de paixão e de música. | |
Louco relógio que canta | |
mortas horas antigas. | |
Eu pronuncio teu nome, | |
nesta noite escura, | |
e teu nome me soa | |
mais distante que nunca. | |
Mais distante que todas as estrelas | |
e mais dolente que a mansa chuva. | |
Amar-te-ei como então | |
alguma vez? Que culpa | |
tem meu coração? | |
Se a névoa se esfuma, | |
que outra paixão me espera? | |
Será tranqüila e pura? | |
Se meus dedos pudessem | |
desfolhar a lua!!" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Caranquejola | |
Ah, que me metam entre cobertores, | |
E não me façam mais nada!... | |
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada, | |
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores! | |
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado... | |
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira ... | |
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado | |
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira. | |
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos. | |
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar... | |
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos? | |
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!... | |
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas, | |
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!... | |
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor— | |
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas... | |
Se me doem os pés e não sei andar direito, | |
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord? | |
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde | |
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito... | |
De que me vale sair, se me constipo logo? | |
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?... | |
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo — | |
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza.... | |
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará. | |
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria? | |
Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me prà enfermaria!— | |
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará. | |
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranqüilo; | |
Em Paris, é preferível, por causa da legenda... | |
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda; | |
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo... | |
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras, | |
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou. | |
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras... | |
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou. | |
" | |
Ruy Belo,"Amei a mulher amei a terra amei o mar | |
Amei a mulher amei a terra amei o mar | |
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar | |
De muitas delas de resto falei" | |
Eugénio de Andrade,"À breve, azul cantilena | |
À breve, azul cantilena | |
dos teus olhos quando anoitecem." | |
Ary dos Santos,"Poeta castrado não! | |
Serei tudo o que disserem | |
por inveja ou negação: | |
cabeçudo dromedário | |
fogueira de exibição | |
teorema corolário | |
poema de mão em mão | |
lãzudo publicitário | |
malabarista cabrão. | |
Serei tudo o que disserem: | |
Poeta castrado não! | |
Os que entendem como eu | |
as linhas com que me escrevo | |
reconhecem o que é meu | |
em tudo quanto lhes devo: | |
ternura como já disse | |
sempre que faço um poema; | |
saudade que se partisse | |
me alagaria de pena; | |
e também uma alegria | |
uma coragem serena | |
em renegar a poesia | |
quando ela nos envenena. | |
Os que entendem como eu | |
a força que tem um verso | |
reconhecem o que é seu | |
quando lhes mostro o reverso: | |
Da fome já não se fala | |
- é tão vulgar que nos cansa - | |
mas que dizer de uma bala | |
num esqueleto de criança? | |
Do frio não reza a história | |
- a morte é branda e letal - | |
mas que dizer da memória | |
de uma bomba de napalm? | |
E o resto que pode ser | |
o poema dia a dia? | |
- Um bisturi a crescer | |
nas coxas de uma judia; | |
um filho que vai nascer | |
parido por asfixia?! | |
- Ah não me venham dizer | |
que é fonética a poesia! | |
Serei tudo o que disserem | |
por temor ou negação: | |
Demagogo mau profeta | |
falso médico ladrão | |
prostituta proxeneta | |
espoleta televisão. | |
Serei tudo o que disserem: | |
Poeta castrado não! | |
" | |
David Mourão-Ferreira,"Crespúsculo | |
É quando um espelho, no quarto, | |
se enfastia; | |
Quando a noite se destaca | |
da cortina; | |
Quando a carne tem o travo | |
da saliva, | |
e a saliva sabe a carne | |
dissolvida; | |
Quando a força de vontade | |
ressuscita; | |
Quando o pé sobre o sapato | |
se equilibra... | |
E quando às sete da tarde | |
morre o dia | |
- que dentro de nossas almas | |
se ilumina, | |
com luz lívida, a palavra | |
despedida. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Ontem o pregador de verdades dele | |
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é dele | |
e não se cura de fora. | |
Porque sofrer não é ter falta de tinta | |
ou o caixote não ter aros de ferro!" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Por um olhar, um mundo | |
Por um olhar, um mundo; | |
por um sorriso, um céu; | |
por um beijo...não sei | |
que te daria eu." | |
Eugénio de Andrade,"A raiz do linho | |
A raiz do linho | |
foi meu alimento, | |
foi o meu tormento. | |
Mas então cantava." | |
Clarice Lispector,"A Perfeição | |
O que me tranqüiliza | |
é que tudo o que existe, | |
existe com uma precisão absoluta. | |
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete | |
não transborda nem uma fração de milímetro | |
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. | |
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. | |
Pena é que a maior parte do que existe | |
com essa exatidão | |
nos é tecnicamente invisível. | |
O bom é que a verdade chega a nós | |
como um sentido secreto das coisas. | |
Nós terminamos adivinhando, confusos, | |
a perfeição." | |
Ary dos Santos,"Original é o poeta | |
Original é o poeta | |
que se origina a si mesmo | |
que numa sílaba é seta | |
noutro pasmo ou cataclismo | |
o que se atira ao poema | |
como se fosse um abismo | |
e faz um filho ás palavras | |
na cama do romantismo. | |
Original é o poeta | |
capaz de escrever um sismo. | |
Original é o poeta | |
de origem clara e comum | |
que sendo de toda a parte | |
não é de lugar algum. | |
O que gera a própria arte | |
na força de ser só um | |
por todos a quem a sorte faz | |
devorar um jejum. | |
Original é o poeta | |
que de todos for só um. | |
Original é o poeta | |
expulso do paraíso | |
por saber compreender | |
o que é o choro e o riso; | |
aquele que desce á rua | |
bebe copos quebra nozes | |
e ferra em quem tem juízo | |
versos brancos e ferozes. | |
Original é o poeta | |
que é gato de sete vozes. | |
Original é o poeta | |
que chegar ao despudor | |
de escrever todos os dias | |
como se fizesse amor. | |
Esse que despe a poesia | |
como se fosse uma mulher | |
e nela emprenha a alegria | |
de ser um homem qualquer. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Agora, apodrecer | |
Agora, apodrecer. | |
Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos... | |
desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos... | |
...mas apodrecer. | |
Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo... | |
""como estás, estás bem?"", o telefone não toca! devorador de astros... | |
... mas apodrecer. | |
Sim, apodrecer | |
de pé e mecânico, | |
a rolar pelo mundo | |
nesta bola de vidro, | |
já sem olhos para aguçar peitos | |
e o sol a nascer todos os dias | |
no emprego burocrático de dar razão aos relògios, | |
cada vez mais necessários para as certidões da morte exata, | |
Sim, apodrecer ... | |
""...as mãos, a còlera, o frio, as pálpebras, o cabelo | |
a morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo... | |
... mas apodrecer! | |
Sujar estrelas." | |
António Ramos Rosa,"Poema dum Funcionário Cansado | |
A noite trocou-me os sonhos e as mãos | |
dispersou-me os amigos | |
tenho o coração confundido e a rua é estreita | |
estreita em cada passo | |
as casas engolem-nos | |
sumimo-nos | |
estou num quarto só num quarto só | |
com os sonhos trocados | |
com toda a vida às avessas a arder num quarto só | |
Sou um funcionário apagado | |
um funcionário triste | |
a minha alma não acompanha a minha mão | |
Débito e Crédito Débito e Crédito | |
a minha alma não dança com os números | |
tento escondê-la envergonhado | |
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente | |
e debitou-me na minha conta de empregado | |
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar | |
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? | |
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? | |
Soletro velhas palavras generosas | |
Flor rapariga amigo menino | |
irmão beijo namorada | |
mãe estrela música | |
São as palavras cruzadas do meu sonho | |
palavras soterradas na prisão da minha vida | |
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida | |
num quarto só" | |
Mário Cesariny,"Ao longo da muralha | |
Ao longo da muralha que habitamos | |
Há palavras de vida há palavras de morte | |
Há palavras imensas,que esperam por nós | |
E outras frágeis,que deixaram de esperar | |
Há palavras acesas como barcos | |
E há palavras homens,palavras que guardam | |
O seu segredo e a sua posição | |
Entre nós e as palavras,surdamente, | |
As mãos e as paredes de Elsenor | |
E há palavras e nocturnas palavras gemidos | |
Palavras que nos sobem ilegíveis À boca | |
Palavras diamantes palavras nunca escritas | |
Palavras impossíveis de escrever | |
Por não termos connosco cordas de violinos | |
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar | |
E os braços dos amantes escrevem muito alto | |
Muito além da azul onde oxidados morrem | |
Palavras maternais só sombra só soluço | |
Só espasmos só amor só solidão desfeita | |
Entre nós e as palavras, os emparedados | |
E entre nós e as palavras, o nosso dever falar." | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Enquanto houver uns olhos que reflectem | |
Enquanto houver uns olhos que reflectem | |
outros olhos que os fitam, | |
enquanto a boca responda a suspirar | |
aos lábios que suspiram, | |
enquanto sentir-se possam ao beijar-se | |
duas almas confundidas, | |
enquanto exista uma mulher formosa, | |
haverá poesia!" | |
Federico García Lorca,"O poeta pede a seu amor que lhe escreva | |
Amor de minhas entranhas, morte viva, | |
em vão espero tua palavra escrita | |
e penso, com a flor que se murcha, | |
que se vivo sem mim quero perder-te. | |
O ar é imortal. A pedra inerte | |
nem conhece a sombra nem a evita. | |
Coração interior não necessita | |
o mel gelado que a lua verte. | |
Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias, | |
tigre e pomba, sobre tua cintura | |
em duelo de mordiscos e açucenas. | |
Enche, pois, de palavras minha loucura | |
ou deixa-me viver em minha serena | |
noite da alma para sempre escura." | |
Cesário Verde,"E, enorme, nesta massa irregular | |
E, enorme, nesta massa irregular | |
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, | |
A Dor humana busca os amplos horizontes, | |
E tem marés de fel como um sinistro mar!" | |
Nuno Júdice,"Amor | |
Bêbedo da luz pálida dos teus olhos,esvazio ainda o teu copo; e voltas a enchê-lo,sabendo que é inesgotável esta sede!Nuno Júdice | ""A pura inscrição do amor"", pág. 41 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018" | |
António Ramos Rosa,"Este homem que pensou | |
Este homem que pensou | |
com uma pedra na mão | |
transformá-la num pão | |
transformá-la num beijo | |
Este homem que parou | |
no meio da sua vida | |
e se sentiu mais leve | |
que a sua própria sombra" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"É um sonho esta vida | |
É um sonho esta vida, | |
mas um sonho febril de um instante único. | |
Quando dele se acorda, | |
vê-se que tudo é só vaidade e fumo... | |
Oxalá fosse um sonho | |
bem profundo e bem longo, | |
um sonho que durasse até á morte!... | |
Eu sonharia com o meu e teu amor." | |
Juan Ramón Jiménez,"Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama | |
Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama; | |
que o meu coração seja igual a ti, poente! | |
descobre em mim o eterno, o que arde, o que ama, | |
...e o vento do esquecimento arraste o que é doente!" | |
Luís de Camões,"A dor que a minha alma sente | |
A dor que a minha alma sente... | |
Não a saiba toda a gente... | |
Que estranho caso de amor... | |
Que desejado tormento... | |
Que venha a ser avarento, | |
Das dores da minha dor! | |
Por me não tratar pior, | |
Se sabe ou se sente, não a digo a toda a gente! | |
Minha dor e a causa dela. | |
A ninguém ouso falar. | |
Que seria aventurar, | |
A perder-me ou perde-la, | |
Pois só em padece-la a minha alma está contente. | |
Viva no peito escondida... Dentro da alma sepultada... | |
Ou me mate... Ou me dê vida... | |
Ou viva eu triste ou contente, | |
Não quero que saiba a gente! | |
" | |
Alberto de Oliveira,"Vaso Grego | |
Esta de áureos relevos, trabalhada | |
De divas mãos, brilhante copa, um dia, | |
Já de aos deuses servir como cansada, | |
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia. | |
Era o poeta de Teos que o suspendia | |
Então, e, ora repleta ora esvasada, | |
A taça amiga aos dedos seus tinia, | |
Toda de roxas pétalas colmada. | |
Depois... Mas, o lavor da taça admira, | |
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas | |
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce, | |
Ignota voz, qual se da antiga lira | |
Fosse a encantada música das cordas, | |
Qual se essa voz de Anacreonte fosse. | |
" | |
Gonçalves Dias,"O Canto do Guerreiro | |
I | |
Aqui na floresta | |
Dos ventos batida, | |
Façanhas de bravos | |
Não geram escravos, | |
Que estimem a vida | |
Sem guerra e lidar. | |
— Ouvi-me, Guerreiros, | |
— Ouvi meu cantar. | |
II | |
Valente na guerra, | |
Quem há, como eu sou? | |
Quem vibra o tacape | |
Com mais valentia? | |
Quem golpes daria | |
Fatais, como eu dou? | |
— Guerreiros, ouvi-me; | |
— Quem há, como eu sou? | |
III | |
Quem guia nos ares | |
A frecha emplumada, | |
Ferindo uma presa, | |
Com tanta certeza, | |
Na altura arrojada | |
onde eu a mandar? | |
— Guerreiros, ouvi-me, | |
— Ouvi meu cantar. | |
IV | |
Quem tantos imigos | |
Em guerras preou? | |
Quem canta seus feitos | |
Com mais energia? | |
Quem golpes daria | |
Fatais, como eu dou? | |
— Guerreiros, ouvi-me: | |
— Quem há, como eu sou? | |
V | |
Na caça ou na lide, | |
Quem há que me afronte?! | |
A onça raivosa | |
Meus passos conhece, | |
O imigo estremece, | |
E a ave medrosa | |
Se esconde no céu. | |
— Quem há mais valente, | |
— Mais destro que eu? | |
VI | |
Se as matas estrujo | |
Co’os sons do Boré, | |
Mil arcos se encurvam, | |
Mil setas lá voam, | |
Mil gritos reboam, | |
Mil homens de pé | |
Eis surgem, respondem | |
Aos sons do Boré! | |
— Quem é mais valente, | |
— Mais forte quem é? | |
VII | |
Lá vão pelas matas; | |
Não fazem ruído: | |
O vento gemendo | |
E as matas tremendo | |
E o triste carpido | |
Duma ave a cantar, | |
São eles — guerreiros, | |
Que faço avançar. | |
VIII | |
E o Piaga se ruge | |
No seu Maracá, | |
A morte lá paira | |
Nos ares frechados, | |
Os campos juncados | |
De mortos são já: | |
Mil homens viveram, | |
Mil homens são lá. | |
IX | |
E então se de novo | |
Eu toco o Boré; | |
Qual fonte que salta | |
De rocha empinada, | |
Que vai marulhosa, | |
Fremente e queixosa, | |
Que a raiva apagada | |
De todo não é, | |
Tal eles se escoam | |
Aos sons do Boré. | |
— Guerreiros, dizei-me, | |
— Tão forte quem é? | |
" | |
Fernando Pessoa,"As lentas nuvens fazem sono | |
As lentas nuvens fazem sono, O céu azul faz bom dormir. Bóio, num íntimo abandono, À tona de me não sentir. E é suave, como um correr de água, O sentir que não sou alguém, Não sou capaz de peso ou mágoa. Minha alma é aquilo que não tem. Que bom, à margem do ribeiro Saber que é ele que vai indo... E só em sono eu vou primeiro. E só em sonho eu vou seguindo." | |
Carlos Drummond de Andrade,"O Seu Santo Nome | |
Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão. Não se inebrie com o seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie." | |
Vinicius de Moraes,"A Vida Vivida | |
Quem sou eu senão um grande sonho obscuro em face do Sonho | |
Senão uma grande angústia obscura em face da Angústia | |
Quem sou eu senão a imponderável árvore dentro da | |
noite imóvel | |
E cujas presas remontam ao mais triste fundo da terra? | |
De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra | |
Que se destrói à presença das fortes claridades | |
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério | |
E cuja forma é prodigiosa treva informe? | |
Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino | |
Rio que sou em busca do mar que me apavora | |
Alma que sou clamando o desfalecimento | |
Carne que sou no âmago inútil da prece? | |
O que é a mulher em mim senão o Túmulo | |
O branco marco da minha rota peregrina | |
Aquela em cujos abraços vou caminhando para a morte | |
Mas em cujos braços somente tenho vida? | |
O que é o meu Amor, ai de mim! senão a luz impossível | |
Senão a estrela parada num oceano de melancolia | |
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra | |
Que não repousa no seio trágico do abismo? | |
O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado | |
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo | |
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar | |
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes | |
A quem repondo senão a ecos, a soluços, a lamentos | |
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio | |
Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a | |
Língua | |
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo | |
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los | |
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva? | |
O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível | |
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo | |
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontra-lo | |
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer? | |
O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento | |
o temor imperceptível na voz portentosa do vento | |
O bater invisível de um coração no descampado ... | |
que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?" | |
Augusto dos Anjos,"Versos Íntimos | |
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável | |
Enterro de tua última quimera. | |
Somente a Ingratidão — esta pantera — | |
Foi tua companheira inseparável! | |
Acostuma-te à lama que te espera! | |
O Homem, que, nesta terra miserável, | |
Mora, entre feras, sente inevitável | |
Necessidade de também ser fera. | |
Toma um fósforo. Acende teu cigarro! | |
O beijo, amigo, é a véspera do escarro, | |
A mão que afaga é a mesma que apedreja. | |
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga, | |
Apedreja essa mão vil que te afaga, | |
Escarra nessa boca que te beija! | |
Pau d'Arco, 1906 | |
Publicado no livro Eu (1912). | |
In: REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Ática, 1977. p.129-130. (Ensaios, 32" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poema | |
É sempre nos meus pulos o limite. | |
É sempre nos meus lábios a estampilha | |
É sempre no meu não aquele trauma. | |
Sempre no meu amor a noite rompe. | |
Sempre dentro de mim meu inimigo. | |
E sempre no meu sempre a mesma ausência. | |
" | |
Clarice Lispector,"Dá-me a tua mão | |
Dá-me a tua mão: | |
Vou agora te contar | |
como entrei no inexpressivo | |
que sempre foi a minha busca cega e secreta. | |
De como entrei | |
naquilo que existe entre o número um e o número dois, | |
de como vi a linha de mistério e fogo, | |
e que é linha sub-reptícia. | |
Entre duas notas de música existe uma nota, | |
entre dois fatos existe um fato, | |
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam | |
existe um intervalo de espaço, | |
existe um sentir que é entre o sentir | |
- nos interstícios da matéria primordial | |
está a linha de mistério e fogo | |
que é a respiração do mundo, | |
e a respiração contínua do mundo | |
é aquilo que ouvimos | |
e chamamos de silêncio. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"A Um Passarinho | |
Para que vieste | |
Na minha janela | |
Meter o nariz? | |
Se foi por um verso | |
Não sou mais poeta | |
Ando tão feliz! | |
Se é para uma prosa | |
Não sou Anchieta | |
Nem venho de Assis. | |
Deixa-te de histórias | |
Some-te daqui! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"A Casa | |
Era uma casa | |
Muito engraçada | |
Não tinha teto | |
Não tinha nada | |
Ninguém podia | |
Entrar nela não | |
Porque na casa | |
Não tinha chão | |
Ninguém podia | |
Dormir na rede | |
Porque na casa | |
Não tinha parede | |
Ninguém podia | |
Fazer pipi | |
Porque penico | |
Não tinha ali | |
Mas era feita | |
Com muito esmero | |
Na Rua dos Bobos | |
Número Zero. | |
" | |
Cecília Meireles,"Nadador | |
O que me encanta é a linha alada | |
das tuas espáduas, e a curva | |
que descreves, passáro da água! | |
É a tua fina, ágil cintura, | |
e esse adeus da tua garganta | |
para cemitérios de espuma! | |
É a despedida, que me encanta, | |
quando te desprendes ao vento, | |
fiel à queda, rápida e branda | |
E apenas por estar prevendo, | |
longe, na eternidade da água, | |
sobreviver teu movimento... | |
" | |
Agostinho Neto,"Havemos de voltar | |
Às casas, às nossas lavras | |
às praias, aos nossos campos | |
havemos de voltar | |
ÀS nossas terras | |
vermelhas do café | |
brancas de algodão | |
verdes dos milharais | |
havemos de voltar | |
Às nossas minas de diamantes | |
ouro, cobre, de petróleo | |
havemos de voltar | |
Aos nossos rios, nossos lagos | |
às montanhas, às florestas | |
havemos de voltar | |
À frescura da mulemba | |
às nossas tradições | |
aos ritmos e às fogueiras | |
havemos de voltar | |
À marimba e ao quissange | |
ao nosso carnaval | |
havemos de voltar | |
À bela pátria angolana | |
nossa terra, nossa mãe | |
havemos de voltar | |
Havemos de voltar | |
À Angola libertada | |
Angola independente" | |
Cecília Meireles,"Pescaria | |
Cesto de peixes no chão. | |
Cheio de peixes, o mar. | |
Cheiro de peixe pelo ar. | |
E peixes no chão. | |
Chora a espuma pela areia, | |
na maré cheia. | |
As mãos do mar vêm e vão, | |
as mãos do mar pela areia | |
onde os peixes estão. | |
As mãos do mar vêm e vão, | |
em vão. | |
Não chegarão | |
aos peixes do chão. | |
Por isso chora, na areia, | |
a espuma da maré cheia. | |
" | |
Camilo Pessanha,"Na cadeia | |
na cadeia os bandidos presos! | |
o seu ar de contemplativos! | |
que é das feras de olhos acesos?! | |
pobres dos seus olhos cativos | |
passeiam mudos entre as grades, | |
parecem peixes num aquário. | |
- campo florido das saudades, | |
porque rebentas tumultuário? | |
serenos... serenos... serenos... | |
trouxe-os algemados a escolta. | |
- estranha taça de venenos | |
meu coração sempre em revolta. | |
coração, quietinho... quietinho... | |
porque te insurges e blasfemas? | |
pschiu... não batas... devagarinho... | |
olha os soldados, as algemas!" | |
Marina Colasanti,"Eu Sou uma Mulher | |
Eu sou uma mulher | |
que sempre achou bonito | |
menstruar. | |
Os homens vertem sangue | |
por doença | |
sangria | |
ou por punhal cravado, | |
rubra urgência | |
a estancar | |
trancar | |
no escuro emaranhado | |
das artérias. | |
Em nós | |
o sangue aflora | |
como fonte | |
no côncavo do corpo | |
olho-d'água escarlate | |
encharcado cetim | |
que escorre | |
em fio. | |
Nosso sangue se dá | |
de mão beijada | |
se entrega ao tempo | |
como chuva ou vento. | |
O sangue masculino | |
tinge as armas e | |
o mar | |
empapa o chão | |
dos campos de batalha | |
respinga nas bandeiras | |
mancha a história. | |
O nosso vai colhido | |
em brancos panos | |
escorre sobre as coxas | |
benze o leito | |
manso sangrar sem grito | |
que anuncia | |
a ciranda da fêmea. | |
Eu sou uma mulher | |
que sempre achou bonito | |
menstruar. | |
Pois há um sangue | |
que corre para a Morte. | |
E o nosso | |
que se entrega para a Lua. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Gonçalves Dias,"Olhos Verdes | |
Eles verdes são: | |
E têm por usança, | |
Na cor esperança, | |
E nas obras não. | |
CAM., Rim. | |
São uns olhos verdes, verdes, | |
Uns olhos de verde-mar, | |
Quando o tempo vai bonança; | |
Uns olhos cor de esperança, | |
Uns olhos por que morri; | |
Que ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
Como duas esmeraldas, | |
Iguais na forma e na cor, | |
Têm luz mais branda e mais forte, | |
Diz uma — vida, outra — morte; | |
Uma — loucura, outra — amor. | |
Mas ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
São verdes da cor do prado, | |
Exprimem qualquer paixão, | |
Tão facilmente se inflamam, | |
Tão meigamente derramam | |
Fogo e luz do coração; | |
Mas ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
São uns olhos verdes, verdes, | |
Que podem também brilhar; | |
Não são de um verde embaçado, | |
Mas verdes da cor do prado, | |
Mas verdes da cor do mar. | |
Mas ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
Como se lê num espelho, | |
Pude ler nos olhos seus! | |
Os olhos mostram a alma, | |
Que as ondas postas em calma | |
Também refletem os céus; | |
Mas ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
Dizei vós, ó meus amigos, | |
Se vos perguntam por mi, | |
Que eu vivo só da lembrança | |
De uns olhos cor de esperança, | |
De uns olhos verdes que vi! | |
Que ai de mi! | |
Nem já sei qual fiquei sendo | |
Depois que os vi! | |
Dizei vós: Triste do bardo! | |
Deixou-se de amor finar! | |
Viu uns olhos verdes, verdes, | |
Uns olhos da cor do mar: | |
Eram verdes sem esp'rança, | |
Davam amor sem amar! | |
Dizei-o vós, meus amigos, | |
Que ai de mi! | |
Não pertenço mais à vida | |
Depois que os vi! | |
Imagem - 00250001 | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Clarice Lispector,"A Lucidez Perigosa | |
Estou sentindo uma clareza tão grande | |
que me anula como pessoa atual e comum: | |
é uma lucidez vazia, como explicar? | |
assim como um cálculo matemático perfeito | |
do qual, no entanto, não se precise. | |
Estou por assim dizer | |
vendo claramente o vazio. | |
E nem entendo aquilo que entendo: | |
pois estou infinitamente maior que eu mesma, | |
e não me alcanço. | |
Além do que: | |
que faço dessa lucidez? | |
Sei também que esta minha lucidez | |
pode-se tornar o inferno humano | |
- já me aconteceu antes. | |
Pois sei que | |
- em termos de nossa diária | |
e permanente acomodação | |
resignada à irrealidade - | |
essa clareza de realidade | |
é um risco. | |
Apagai, pois, minha flama, Deus, | |
porque ela não me serve | |
para viver os dias. | |
Ajudai-me a de novo consistir | |
dos modos possíveis. | |
Eu consisto, | |
eu consisto, | |
amém. | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"O Dia 7 de Setembro, em Paris | |
Longe do belo céu da Pátria minha, | |
Que a mente me acendia, | |
Em tempo mais feliz, em qu'eu cantava | |
Das palmeiras à sombra os pátrios feitos; | |
Sem mais ouvir o vago som dos bosques, | |
Nem o bramido fúnebre das ondas, | |
Que n'alma me excitavam | |
Altos, sublimes turbilhões de idéias; | |
Com que cântico novo | |
O Dia saudarei da Liberdade? | |
Ausente do saudoso, pátrio ninho, | |
Em regiões tão mortas, | |
Para mim sem encantos, e atrativos, | |
Gela-se o estro ao peregrino vate. | |
Tu também, que nos trópicos te ostentas | |
Fulgurante de luz, e rei dos astros, | |
Tu, oh sol, neste céu teu brilho perdes. | |
(...) | |
Dia da Liberdade! | |
Tu só dissipas hoje esta tristeza | |
Que a vida me angustia. | |
Tu só me acordas hoje do letargo | |
Em que esta alma se abisma, | |
De resistir cansada a tantas dores. | |
Ah! talvez que de ti poucos se lembrem | |
Neste estranho país, onde tu passas | |
Sem culto, sem fulgor, como em deserto | |
Caminha o viajor silencioso. | |
Mas rápidos os dias se devolvem; | |
E tu, oh sol, que pálido me aclaras | |
Nestas longínquas plagas, | |
Brilhante ainda raiarás na Pátria, | |
E ouvirás meus hinos | |
Em honra deste Dia, não magoados | |
Co'os fúnebres acentos da saudade. | |
Publicado no livro Suspiros Poéticos e Saudades (1836). Poema integrante da série Saudades. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Clarice Lispector,"ALMA LUZ | |
MINHA ALMA TEM O PESO DA LUZ | |
TEM O PESO DA MÚSICA | |
TEM O PESO DA PALAVRA NUNCA DITA, | |
PRESTES QUEM SABE A SER DITA | |
TEM O PESO DE UMA LEMBRANÇA | |
TEM O PESO DE UMA SAUDADE | |
TEM O PESO DE UM OLHAR | |
PESA COMO PESA UMA AUSÊNCIA | |
E A LÁGRIMA QUE NÃO CHOROU | |
TEM O IMATERIAL PESO DE UMA SOLIDÃO | |
NO MEIO DE OUTROS | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Também já fui brasileiro | |
Eu também já fui brasileiro | |
moreno como vocês. | |
Ponteei viola, guiei forde | |
e aprendi na mesa dos bares | |
que o nacionalismo é uma virtude. | |
Mas há uma hora em que os bares se fecham | |
e todas as virtudes se negam. | |
Eu também já fui poeta. | |
Bastava olhar para mulher, | |
pensava logo nas estrelas | |
e outros substantivos celestes. | |
Mas eram tantas, o céu tamanho, | |
minha poesia perturbou-se. | |
Eu também já tive meu ritmo. | |
Fazia isso, dizia aquilo. | |
E meus amigos me queriam, | |
meus inimigos me odiavam. | |
Eu irônico deslizava | |
satisfeito de ter meu ritmo. | |
Mas acabei confundindo tudo. | |
Hoje não deslizo mais não, | |
não sou irônico mais não, | |
não tenho ritmo mais não. | |
" | |
Cecília Meireles,"A chuva chove | |
A chuva chove mansamente... como um sono | |
Que tranqüilize, pacifique, resserene... | |
A chuva chove mansamente... Que abandono! | |
A chuva é a música de um poema de Verlaine... | |
E vem-me o sonho de uma véspera solene, | |
Em certo paço, já sem data e já sem dono... | |
Véspera triste como a noite, que envenene | |
... Num velho paço, muito longe, em terra estranha, | |
Com muita névoa pelos ombros da montanha... | |
Paço de imensos corredores espectrais, | |
Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas, | |
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas, | |
Revira in-fólios, cancioneiros e missais... | |
" | |
Miguel Torga,"De tanto olhar o sol | |
De tanto olhar o sol, | |
queimei os olhos, | |
De tanto amar a vida enlouqueci. | |
Agora sou no mundo esta negrura. | |
À procura | |
Da luz e do juízo que perdi." | |
Cesário Verde,"De tarde | |
Naquele «pic-nic» de burguesas, | |
Houve uma coisa simplesmente bela, | |
E que, sem ter história nem grandezas, | |
Em todo o caso dava uma aguarela. | |
Foi quando tu, descendo do burrico, | |
Foste colher, sem imposturas tolas, | |
A um granzoal azul de grão-de-bico | |
Um ramalhete rubro de papoulas. | |
Pouco depois, em cima duns penhascos, | |
Nós acampámos, inda o sol se via; | |
E houve talhadas de melão, damascos, | |
E pão de ló molhado em malvasia. | |
Mas, todo púrpuro, a sair da renda | |
Dos teus dois seios como duas rolas, | |
Era o supremo encanto da merenda | |
O ramalhete rubro das papoulas. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Marabá | |
Eu vivo sozinha; ninguém me procura! | |
Acaso feitura | |
Não sou de Tupá? | |
Se algum dentre os homens de mim não se esconde, | |
— Tu és, me responde, | |
— Tu és Marabá! | |
— Meus olhos são garços, são cor das safiras, | |
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar; | |
— Imitam as nuvens de um céu anilado, | |
— As cores imitam das vagas do mar! | |
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos: | |
""Teus olhos são garços, | |
Responde anojado; ""mas és Marabá: | |
""Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes, | |
""Uns olhos fulgentes, | |
""Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"" | |
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios, | |
— Da cor das areias batidas do mar; | |
— As aves mais brancas, as conchas mais puras | |
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. — | |
Se ainda me escuta meus agros delírios: | |
""És alva de lírios"", | |
Sorrindo responde; ""mas és Marabá: | |
""Quero antes um rosto de jambo corado, | |
""Um rosto crestado | |
""Do sol do deserto, não flor de cajá."" | |
— Meu colo de leve se encurva engraçado, | |
— Como hástea pendente do cáctus em flor; | |
— Mimosa, indolente, resvalo no prado, | |
— Como um soluçado suspiro de amor! — | |
""Eu amo a estatura flexível, ligeira, | |
""Qual duma palmeira, | |
Então me responde; ""tu és Marabá: | |
""Quero antes o colo da ema orgulhosa, | |
""Que pisa vaidosa, | |
""Que as flóreas campinas governa, onde está."" | |
— Meus loiros cabelos em ondas se anelam, | |
— O oiro mais puro não tem seu fulgor; | |
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram, | |
— De os ver tão formosos como um beija-flor! | |
Mas eles respondem: ""Teus longos cabelos, | |
""São loiros, são belos, | |
""Mas são anelados; tu és Marabá: | |
""Quero antes cabelos, bem lisos, corridos, | |
""Cabelos compridos, | |
""Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá."" | |
E as doces palavras que eu tinha cá dentro | |
A quem nas direi? | |
O ramo d'acácia na fronte de um homem | |
Jamais cingirei: | |
Jamais um guerreiro da minha arazóia | |
Me desprenderá: | |
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, | |
Que sou Marabá! | |
Imagem - 00250006 | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Americanas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Cecília Meireles,"Sonhos da Menina | |
A flor com que a menina sonha | |
está no sonho? | |
ou na fronha? | |
Sonho | |
risonho: | |
O vento sozinho | |
no seu carrinho. | |
De que tamanho | |
seria o rebanho? | |
A vizinha | |
apanha | |
a sombrinha | |
de teia de aranha . . . | |
Na lua há um ninho | |
de passarinho. | |
A lua com que a menina sonha | |
é o linho do sonho | |
ou a lua da fronha? | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Passagem do Ano | |
Passagem do AnoO último dia do ano | |
não é o último dia do tempo. | |
Outros dias virão | |
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida. | |
Beijarás bocas, rasgarás papéis, | |
farás viagens e tantas celebrações | |
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia | |
e coral, | |
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, | |
os irreparáveis uivos | |
do lobo, na solidão. | |
O último dia do tempo | |
não é o último dia de tudo. | |
Fica sempre uma franja de vida | |
onde se sentam dois homens. | |
Um homem e seu contrário, | |
uma mulher e seu pé, | |
um corpo e sua memória, | |
um olho e seu brilho, | |
uma voz e seu eco, | |
e quem sabe até se Deus... | |
Recebe com simplicidade este presente do acaso. | |
Mereceste viver mais um ano. | |
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos. | |
Teu pai morreu, teu avô também. | |
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, | |
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, | |
e de copo na mão | |
esperas amanhecer. | |
O recurso de se embriagar. | |
O recurso da dança e do grito, | |
o recurso da bola colorida, | |
o recurso de kant e da poesia, | |
todos eles... e nenhum resolve. | |
Surge a manhã de um novo ano. | |
As coisas estão limpas, ordenadas. | |
O corpo gesto renova-se em espuma. | |
Todos os sentidos alerta funcionam. | |
A boca está comendo vida. | |
A boca está entupida de vida. | |
A vida escorre da boca, | |
lambuza as mãos, a calçada. | |
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia. | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Que País É Este? | |
1 | |
Uma coisa é um país, | |
outra um ajuntamento. | |
Uma coisa é um país, | |
outra um regimento. | |
Uma coisa é um país, | |
outra o confinamento. | |
Mas já soube datas, guerras, estátuas | |
usei caderno ""Avante"" | |
— e desfilei de tênis para o ditador. | |
Vinha de um ""berço esplêndido"" para um ""futuro radioso"" | |
e éramos maiores em tudo | |
— discursando rios e pretensão. | |
Uma coisa é um país, | |
outra um fingimento. | |
Uma coisa é um país, | |
outra um monumento. | |
Uma coisa é um país, | |
outra o aviltamento. | |
(...) | |
2 | |
Há 500 anos caçamos índios e operários, | |
há 500 anos queimamos árvores e hereges, | |
há 500 anos estupramos livros e mulheres, | |
há 500 anos sugamos negras e aluguéis. | |
Há 500 anos dizemos: | |
que o futuro a Deus pertence, | |
que Deus nasceu na Bahia, | |
que São Jorge é que é guerreiro, | |
que do amanhã ninguém sabe, | |
que conosco ninguém pode, | |
que quem não pode sacode. | |
Há 500 anos somos pretos de alma branca, | |
não somos nada violentos, | |
quem espera sempre alcança | |
e quem não chora não mama | |
ou quem tem padrinho vivo | |
não morre nunca pagão. | |
Há 500 anos propalamos: | |
este é o país do futuro, | |
antes tarde do que nunca, | |
mais vale quem Deus ajuda | |
e a Europa ainda se curva. | |
Há 500 anos | |
somos raposas verdes | |
colhendo uvas com os olhos, | |
semeamos promessa e vento | |
com tempestades na boca, | |
sonhamos a paz da Suécia | |
com suíças militares, | |
vendemos siris na estrada | |
e papagaios em Haia, | |
senzalamos casas-grandes | |
e sobradamos mocambos, | |
bebemos cachaça e brahma | |
joaquim silvério e derrama, | |
a polícia nos dispersa | |
e o futebol nos conclama, | |
cantamos salve-rainhas | |
e salve-se quem puder, | |
pois Jesus Cristo nos mata | |
num carnaval de mulatas. | |
(...) | |
Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980). | |
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198" | |
Manuel Bandeira,"SATÉLITE | |
Fim de tarde. | |
No céu plúmbeo | |
A Lua baça | |
Paira | |
Muito cosmograficamente | |
Satélite. | |
Desmetaforizada, | |
Desmitificada, | |
Despojada do velho segredo de melancolia, | |
Não é agora o golfão de cismas, | |
O astro dos loucos e dos enamorados. | |
Mas tão-somente | |
Satélite. | |
Ah Lua deste fim de tarde, | |
Demissionária de atribuições românticas, | |
Sem show para as disponibilidades sentimentais! | |
Fatigado de mais-valia, | |
Gosto de ti assim: | |
Coisa em si, | |
- Satélite. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Árvore verde, | |
Árvore verde, | |
Meu pensamento | |
Em ti se perde. | |
Ver é dormir | |
Neste momento. | |
Que bom não ser | |
'Stando acordado ! | |
Também em mim enverdecer | |
Em folhas dado ! | |
Tremulamente | |
Sentir no corpo | |
Brisa na alma ! | |
Não ser quem sente, | |
Mas tem a calma. | |
Eu tinha um sonho | |
Que me encantava. | |
Se a manhã vinha, | |
Como eu a odiava ! | |
Volvia a noite, | |
E o sonho a mim. | |
Era o meu lar, | |
Minha alma afim. | |
Depois perdi-o. | |
Lembro ? Quem dera ! | |
Se eu nunca soube | |
O que ele era. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A falta que ama | |
Entre areia, sol e grama | |
o que se esquiva se dá, | |
enquanto a falta que ama | |
procura alguém que não há. | |
Está coberto de terra, | |
forrado de esquecimento. | |
Onde a vista mais se aferra, | |
a dália é toda cimento. | |
A transparência da hora | |
corrói ângulos obscuros: | |
cantiga que não implora | |
nem ri, patinando muros. | |
Já nem se escuta a poeira | |
que o gesto espalha no chão. | |
A vida conta-se, inteira, | |
em letras de conclusão. | |
Por que é que revoa à toa | |
o pensamento, na luz? | |
E por que nunca se escoa | |
o tempo, chaga sem pus? | |
O inseto petrificado | |
na concha ardente do dia | |
une o tédio do passado | |
a uma futura energia. | |
No solo vira semente? | |
Vai tudo recomeçar? | |
É a falta ou ele que sente | |
o sonho do verbo amar? | |
" | |
Cruz e Sousa,"Acrobata da Dor | |
Gargalha, ri, num riso de tormenta, | |
como um palhaço, que desengonçado, | |
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado | |
de uma ironia e de uma dor violenta. | |
Da gargalhada atroz, sanguinolenta, | |
agita os guizos, e convulsionado | |
Salta, gavroche, salta clown, varado | |
pelo estertor dessa agonia lenta... | |
Pedem-te bis e um bis não se despreza! | |
Vamos! reteza os músculos, reteza | |
nessas macabras piruetas d'aço... | |
E embora caias sobre o chão, fremente, | |
afogado em teu sangue estuoso e quente, | |
ri! Coração, tristíssimo palhaço. | |
Publicado no livro Broquéis (1893). | |
In: SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Introd. Maria Helena Camargo Régis. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 198" | |
Luís de Camões,"Perdigão perdeu a pena | |
Perdigão perdeu a pena | |
Não há mal que lhe não venha. | |
Perdigão que o pensamento | |
Subiu a um alto lugar, | |
Perde a pena do voar, | |
Ganha a pena do tormento. | |
Não tem no ar nem no vento | |
Asas com que se sustenha: | |
Não há mal que lhe não venha. | |
Quis voar a u~a alta torre, | |
Mas achou-se desasado; | |
E, vendo-se depenado, | |
De puro penado morre. | |
Se a queixumes se socorre, | |
Lança no fogo mais lenha: | |
Não há mal que lhe não venha. | |
" | |
António Gedeão,"Impressão digital | |
Os meus olhos são uns olhos. | |
E é com esses olhos uns | |
que eu vejo no mundo escolhos | |
onde outros, com outros olhos, | |
não vêem escolhos nenhuns. | |
Quem diz escolhos diz flores. | |
De tudo o mesmo se diz. | |
Onde uns vêem luto e dores, | |
uns outros descobrem cores | |
do mais formoso matiz. | |
Nas ruas ou nas estradas | |
onde passa tanta gente, | |
uns vêem pedras pisadas, | |
mas outros gnomos e fadas | |
num halo resplandescente. | |
Inútil seguir vizinhos, | |
que ser depois ou ser antes. | |
Cada um é seus caminhos. | |
Onde Sancho vê moinhos | |
D. Quixote vê gigantes. | |
Vê moinhos? São moinhos. | |
Vê gigantes? São gigantes. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Diante de uma criança | |
Como fazer feliz meu filho? | |
Não há receitas para tal. | |
Todo o saber, todo o meu brilho | |
de vaidoso intelectual | |
vacila ante a interrogação | |
gravada em mim, impressa no ar. | |
Bola, bombons, patinação | |
talvez bastem para encantar? | |
Imprevistas, fartas mesadas, | |
louvores, prêmios, complacências, | |
milhões de coisas desejadas, | |
concedidas sem reticências? | |
Liberdade alheia a limites, | |
perdão de erros, sem julgamento, | |
e dizer-lhe que estamos quites, | |
conforme a lei do esquecimento? | |
Submeter-se à sua vontade | |
sem ponderar, sem discutir? | |
Dar-lhe tudo aquilo que há | |
de entontecer um grão-vizir? | |
E se depois de tanto mimo | |
que o atraia, ele se sente | |
pobre, sem paz e sem arrimo, | |
alma vazia, amargamente? | |
Não é feliz. Mas que fazer | |
para consolo desta criança? | |
Como em seu íntimo acender | |
uma fagulha de confiança? | |
Eis que acode meu coração | |
e oferece, como uma flor, | |
a doçura desta lição: | |
dar a meu filho meu amor. | |
Pois o amor resgata a pobreza, | |
vence o tédio, ilumina o dia | |
e instaura em nossa natureza | |
a imperecível alegria. | |
" | |
Clarice Lispector,"Tentação | |
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos. Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos. No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás. (""Felicidade Clandestina"" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998) | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"Tecendo a Manhã | |
Um galo sozinho não tece uma manhã: | |
ele precisará sempre de outros galos. | |
De um que apanhe esse grito que ele | |
e o lance a outro; de um outro galo | |
que apanhe o grito que um galo antes | |
e o lance a outro; e de outros galos | |
que com muitos outros galos se cruzem | |
os fios de sol de seus gritos de galo, | |
para que a manhã, desde uma teia tênue, | |
se vá tecendo, entre todos os galos. | |
2. | |
E se encorpando em tela, entre todos, | |
se erguendo tenda, onde entrem todos, | |
se entretendendo para todos, no toldo | |
(a manhã) que plana livre de armação. | |
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo | |
que, tecido, se eleva por si: luz balão. | |
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Herberto Helder,"Não sei como dizer-te | |
Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideiias, dentro de mim te procuram. | |
Quando as | |
folhas da melancolia arrefecem com astros | |
ao lado do espaço | |
e o coração é uma semente inventada | |
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, | |
tu arrebatas os caminhos da minha solidão | |
como se toda a casa ardesse pousada na noite. | |
- E então não sei o que dizer | |
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. | |
Quando as crianças acordam nas luas espantadas | |
que às vezes se despenham no meio do tempo | |
- não sei como dizer-te que a pureza, | |
dentro de mim, te procura. | |
Durante a | |
primavera inteira aprendo | |
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto | |
correr do espaço – | |
e penso que vou dizer algo cheio de razão, | |
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, | |
sinto que me faltam | |
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer | |
coisa extraordinária. | |
Porque não sei como dizer-te sem milgares | |
que dentro de mim é o sol, o fruto, | |
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, | |
que te procuram. | |
" | |
Gonçalves Dias,"A Tempestade | |
Quem porfiar contigo... ousara | |
Da glória o poderio; | |
Tu que fazes gemer pendido o cedro, | |
Turbar-se o claro rio? | |
A. HERCULANO | |
Um raio | |
Fulgura | |
No espaço | |
Esparso, | |
De luz; | |
E trêmulo | |
E puro | |
Se aviva, | |
S’esquiva | |
Rutila, | |
Seduz! | |
Vem a aurora | |
Pressurosa, | |
Cor de rosa, | |
Que se cora | |
De carmim; | |
A seus raios | |
As estrelas, | |
Que eram belas, | |
Tem desmaios, | |
Já por fim. | |
O sol desponta | |
Lá no horizonte, | |
Doirando a fonte, | |
E o prado e o monte | |
E o céu e o mar; | |
E um manto belo | |
De vivas cores | |
Adorna as flores, | |
Que entre verdores | |
Se vê brilhar. | |
Um ponto aparece, | |
Que o dia entristece, | |
O céu, onde cresce, | |
De negro a tingir; | |
Oh! vede a procela | |
Infrene, mas bela, | |
No ar s’encapela | |
Já pronta a rugir! | |
Não solta a voz canora | |
No bosque o vate alado, | |
Que um canto d’inspirado | |
Tem sempre a cada aurora; | |
É mudo quanto habita | |
Da terra n’amplidão. | |
A coma então luzente | |
Se agita do arvoredo, | |
E o vate um canto a medo | |
Desfere lentamente, | |
Sentindo opresso o peito | |
De tanta inspiração. | |
Fogem do vento que ruge | |
As nuvens aurinevadas, | |
Como ovelhas assustadas | |
Dum fero lobo cerval; | |
Estilham-se como as velas | |
Que no alto mar apanha, | |
Ardendo na usada sanha, | |
Subitâneo vendaval. | |
Bem como serpentes que o frio | |
Em nós emaranha, — salgadas | |
As ondas s’estanham, pesadas | |
Batendo no frouxo areal. | |
Disseras que viras vagando | |
Nas furnas do céu entreabertas | |
Que mudas fuzilam, — incertas | |
Fantasmas do gênio do mal! | |
E no túrgido ocaso se avista | |
Entre a cinza que o céu apolvilha, | |
Um clarão momentâneo que brilha, | |
Sem das nuvens o seio rasgar; | |
Logo um raio cintila e mais outro, | |
Ainda outro veloz, fascinante, | |
Qual centelha que em rápido instante | |
Se converte d’incêndios em mar. | |
Um som longínquo cavernoso e ouco | |
Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre; | |
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco, | |
Que alpestres cimos mais veloz percorre, | |
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco | |
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre: | |
Devorador incêndio alastra os ares, | |
Enquanto a noite pesa sobre os mares. | |
Nos últimos cimos dos montes erguidos | |
Já silva, já ruge do vento o pegão; | |
Estorcem-se os leques dos verdes palmares, | |
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares, | |
Até que lascados baqueiam no chão. | |
Remexe-se a copa dos troncos altivos, | |
Transtorna-se, tolda, baqueia também; | |
E o vento, que as rochas abala no cerro, | |
Os troncos enlaça nas asas de ferro, | |
E atira-os raivoso dos montes além. | |
Da nuvem densa, que no espaço ondeia, | |
Rasga-se o negro bojo carregado, | |
E enquanto a luz do raio o sol roxeia, | |
Onde parece à terra estar colado, | |
Da chuva, que os sentidos nos enleia, | |
O forte peso em turbilhão mudado, | |
Das ruínas completa o grande estrago, | |
Parecendo mudar a terra em lago. | |
Inda ronca o trovão retumbante, | |
Inda o raio fuzila no espaço, | |
E o corisco num rápido instante | |
Brilha, fulge, rutila, e fugiu. | |
Mas se à terra desceu, mirra o tronco, | |
Cega o triste que iroso ameaça, | |
E o penedo, que as nuvens devassa, | |
Como tronco sem viço partiu. | |
Deixando a palhoça singela, | |
Humilde labor da pobreza, | |
Da nossa vaidosa grandeza, | |
Nivela os fastígios sem dó; | |
E os templos e as grimpas soberbas, | |
Palácio ou mesquita preclara, | |
Que a foice do tempo poupara, | |
Em breves momentos é pó. | |
Cresce a chuva, os rios crescem, | |
Pobres regatos s’empolam, | |
E nas turvam ondas rolam | |
Grossos troncos a boiar! | |
O córrego, qu’inda há pouco | |
No torrado leito ardia, | |
É já torrente bravia, | |
Que da praia arreda o mar. | |
Mas ai do desditoso, | |
Que viu crescer a enchente | |
E desce descuidoso | |
Ao vale, quando sente | |
Crescer dum lado e d’outro | |
O mar da aluvião! | |
Os troncos arrancados | |
Sem rumo vão boiantes; | |
E os tetos arrasados, | |
Inteiros, flutuantes, | |
Dão antes crua morte, | |
Que asilo e proteção! | |
Porém no ocidente | |
S’ergue de repente | |
O arco luzente, | |
De Deus o farol; | |
Sucedem-se as cores, | |
Qu’imitam as flores | |
Que sembram primores | |
Dum novo arrebol. | |
Nas águas pousa; | |
E a base viva | |
De luz esquiva, | |
E a curva altiva | |
Sublima ao céu; | |
Inda outro arqueia, | |
Mais desbotado, | |
Quase apagado, | |
Como embotado | |
De tênue véu. | |
Tal a chuva | |
Transparece, | |
Quando desce | |
E ainda vê-se | |
O sol luzir; | |
Como a virgem, | |
Que numa hora | |
Ri-se e cora, | |
Depois chora | |
E torna a rir. | |
A folha | |
Luzente | |
Do orvalho | |
Nitente | |
A gota | |
Retrai: | |
Vacila, | |
Palpita; | |
Mais grossa | |
Hesita, | |
E treme | |
E cai. | |
Publicado no livro Últimos cantos (1851). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biográficas por | |
Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas por Frederico José da Silva | |
Ramos. São Paulo: LEP, 1949. p.522-524" | |
Gonçalves Dias,"I-Juca-Pirama | |
Meu canto de morte, | |
Guerreiros, ouvi: | |
Sou filho das selvas, | |
Nas selvas cresci; | |
Guerreiros, descendo | |
Da tribo tupi. | |
Da tribo pujante, | |
Que agora anda errante | |
Por fado inconstante, | |
Guerreiros, nasci: | |
Sou bravo, sou forte, | |
Sou filho do Norte; | |
Meu canto de morte, | |
Guerreiros, ouvi. | |
(...) | |
Andei longes terras, | |
Lidei cruas guerras, | |
Vaguei pelas serras | |
Dos vis Aimorés; | |
Vi lutas de bravos, | |
Vi fortes — escravos! | |
De estranhos ignavos | |
Calcados aos pés. | |
E os campos talados, | |
E os arcos quebrados, | |
E os piagas coitados | |
Já sem maracás; | |
E os meigos cantores, | |
Servindo a senhores, | |
Que vinham traidores, | |
Com mostras de paz. | |
Aos golpes do imigo | |
Meu último amigo, | |
Sem lar, sem abrigo | |
Caiu junto a mi! | |
Com plácido rosto, | |
Sereno e composto, | |
O acerbo desgosto | |
Comigo sofri. | |
Meu pai a meu lado | |
Já cego e quebrado, | |
De penas ralado, | |
Firmava-se em mi: | |
Nós ambos, mesquinhos, | |
Por ínvios caminhos, | |
Cobertos d'espinhos | |
Chegamos aqui! | |
(...) | |
Então, forasteiro, | |
Caí prisioneiro | |
De um troço guerreiro | |
Com que me encontrei: | |
O cru dessossego | |
Do pai fraco e cego, | |
Enquanto não chego, | |
Qual seja, — dizei! | |
Eu era o seu guia | |
Na noite sombria, | |
A só alegria | |
Que Deus lhe deixou: | |
Em mim se apoiava, | |
Em mim se firmava, | |
Em mim descansava, | |
Que filho lhe sou. | |
Ao velho coitado | |
De penas ralado, | |
Já cego e quebrado, | |
Que resta? — Morrer. | |
Enquanto descreve | |
O giro tão breve | |
Da vida que teve, | |
Deixai-me viver! | |
Não vil, não ignavo, | |
Mas forte, mas bravo, | |
Serei vosso escravo: | |
Aqui virei ter. | |
Guerreiros, não coro | |
Do pranto que choro; | |
Se a vida deploro, | |
Também sei morrer. | |
(...) | |
Imagem - 00250001 | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Americanas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Natália Correia,"Creio nos anjos que andam pelo mundo | |
Creio nos | |
anjos que andam pelo mundo, | |
Creio na Deusa com olhos de diamantes, | |
Creio em amores lunares com piano ao fundo, | |
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, | |
Creio num engenho que falta mais fecundo | |
De harmonizar as partes dissonantes, | |
Creio que tudo eterno num segundo, | |
Creio num céu futuro que houve dantes, | |
Creio nos deuses de um astral mais puro, | |
Na flor humilde que se encosta ao muro, | |
Creio na carne que enfeitiça o além, | |
Creio no incrível, nas coisas assombrosas, | |
Na ocupação do mundo pelas rosas, | |
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen." | |
Gonçalves Dias,"Meu Anjo, Escuta | |
Le mal dont j'ai souffert s'est enfui comme un rêve, | |
Je n'en puis comparer le lontain souvenir | |
Qu'à ces brouillards légers que l'aurore soulève | |
Et qu'avec la rosée on voit s'évanouir. | |
MUSSET | |
Meu anjo, escuta: quando junto à noite | |
Perpassa a brisa pelo rosto teu, | |
Como suspiro que um menino exala; | |
Na voz da brisa quem murmura e fala | |
Brando queixume, que tão triste cala | |
No peito teu? | |
Sou eu, sou eu, sou eu! | |
Quando tu sentes lutuosa imagem | |
D'aflito pranto com sombrio véu, | |
Rasgado o peito por acerbas dores; | |
Quem murcha as flores | |
Do brando sonho? — Quem te pinta amores | |
Dum puro céu? | |
Sou eu, sou eu, sou eu! | |
Se alguém te acorda do celeste arroubo, | |
Na amenidade do silêncio teu, | |
Quando tua alma noutros mundos erra, | |
Se alguém descerra | |
Ao lado teu | |
Fraco suspiro que no peito encerra; | |
Sou eu, sou eu, sou eu! | |
Se alguém se aflige de te ver chorosa, | |
Se alguém se alegra co'um sorriso teu, | |
Se alguém suspira de te ver formosa | |
O mar e a terra a enamorar e o céu; | |
Se alguém definha | |
Por amor teu, | |
Sou eu, sou eu, sou eu! | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Luís de Camões,"Sete anos de pastor Jacob servia | |
Sete anos de pastor Jacob servia | |
Labão, pai de Raquel, serrana bela; | |
mas não servia ao pai, servia a ela, | |
e a ela só por prémio pretendia. | |
Os dias, na esperança de um só dia, | |
passava, contentando se com vê la; | |
porém o pai, usando de cautela, | |
em lugar de Raquel lhe dava Lia. | |
Vendo o triste pastor que com enganos | |
lhe fora assi negada a sua pastora, | |
como se a não tivera merecida; | |
começa de servir outros sete anos, | |
dizendo:-Mais servira, se não fora | |
para tão longo amor tão curta a vida. | |
" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Espreitava em seus olhos uma lágrima | |
Espreitava em seus olhos uma lágrima, | |
e em meus lábios uma frase a perdoar; | |
falou o orgulho, o seu pranto secou, | |
senti nos lábios essa frase expirar. | |
Eu vou por um caminho, ela por outro; | |
mas, ao pensar no amor que nos prendeu, | |
digo ainda: porque me calei aquele dia? | |
E ela dirá: porque não chorei eu?" | |
Augusto dos Anjos,"Psicologia de um Vencido | |
Eu, filho do carbono e do amoníaco, | |
Monstro de escuridão e rutilância, | |
Sofro, desde a epigénesis da infância, | |
A influência má dos signos do zodíaco. | |
Profundissimamente hipocondríaco, | |
Este ambiente me causa repugnância... | |
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia, | |
Que se escapa da boca de um cardíaco. | |
Já o verme — este operário de ruínas — | |
Que o sangue podre das carnificinas | |
Come, e à vida, em geral, declara guerra, | |
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, | |
E há de deixar-me apenas os cabelos, | |
Na frialdade inorgânica da terra! | |
Paraíba, 1909 | |
Publicado no livro Eu (1912). | |
In: REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Ática, 1977. p.64. (Ensaios, 32" | |
Cecília Meireles,"Rua dos rostos perdidos | |
Este vento não leva apenas os chapéus, | |
estas plumas, estas sedas: | |
este vento leva todos os rostos, | |
muito mais depressa. | |
Nossas vozes já estao longe, | |
e como se pode conversar, | |
como podem conversar estes passantes | |
decapitados pelo vento? | |
Não, não podemos segurar o nosso rosto: | |
as mãos encontram o ar, | |
a sucessão das datas, | |
a sombra das fugas, impalpável. | |
Quando voltares por aqui, | |
saberás que teus olhos | |
não se fundiram em lagrimas, não, | |
mas em tempo. | |
De muito longe avisto a nossa passagem | |
nesta rua, nesta tarde, neste outono, | |
nesta cidade, neste mundo, neste dia. | |
(Não leias o nome da rua, - não leias!) | |
Conta as tuas historias de amor | |
como quem estivesse gravando, | |
vagaroso, um fiel diamante. | |
E tudo fosse eterno e imóvel. | |
(Cecília Meireles)" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A rua diferente | |
Na minha rua estão cortando árvores | |
botando trilhos | |
construindo casas. | |
Minha rua acordou mudada. | |
Os vizinhos não se conformam. | |
Eles não sabem que a vida | |
tem dessas exigências brutas. | |
Só minha filha goza o espetáculo | |
e se diverte com os andaimes, | |
a luz da solda autógena | |
e o cimento escorrendo nas formas. | |
" | |
Alberto de Oliveira,"Vaso Chinês | |
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, | |
Casualmente, uma vez, de um perfumado | |
Contador sobre o mármor luzidio, | |
Entre um leque e o começo de um bordado. | |
Fino artista chinês, enamorado, | |
Nele pusera o coração doentio | |
Em rubras flores de um sutil lavrado, | |
Na tinta ardente, de um calor sombrio. | |
Mas, talvez por contraste à desventura, | |
Quem o sabe?... de um velho mandarim | |
Também lá estava a singular figura; | |
Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a, | |
Sentia um não sei quê com aquele chim | |
De olhos cortados à feição de amêndoa. | |
Publicado no livro Sonetos e poemas (1886). | |
In: OLIVEIRA, Alberto de. Poesias completas. Ed. crít. Marco Aurélio Mello Reis. Rio de Janeiro: Núcleo Ed. da UERJ, 1978. v.1. (Fluminense" | |
Manuel Bandeira,"RECIFE | |
Há que tempo que não te vejo! | |
Não foi por querer, não pude. | |
Nesse ponto a vida me foi madastra, | |
Recife. | |
Mas não houve dia em que te não sentisse dentro de mim: | |
Nos ossos, os olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne, | |
Recife. | |
Não como és hoje, | |
Mas como eras na minha infância, | |
Quando as crianças brincavam no meio da rua | |
(Não havia ainda automóveis) | |
E os adultos conversavam de cadeira nas calçadas | |
(Continuavas província, | |
Recife). | |
Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas | |
Sem Arraes, e com arroz, | |
Muito arroz, | |
De água e sal, | |
Recife. | |
Um Recife ainda do tempo em que o meu avô materno | |
Alforriava espontaneamente | |
A moça preta Tomásia, sua escrava, | |
Que depois foi a nossa cozinheira | |
Até morrer, | |
Recife. | |
Ainda existirá a velha casa senhorial do Monteiro? | |
Meu sonho era acabar morando e morrendo | |
Na velha casa do Monteiro. | |
Já que não pode ser, | |
Quero, na hora da morte, estar lúcido | |
Para mandar a ti o meu último pensamento, | |
Recife. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Amar-amaro | |
porque amou por que amou | |
se sabia | |
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s | |
ternos ou desesperados | |
nesse museu do pardo indiferente | |
me diga: mas por que | |
amar sofrer talvez como se morre | |
de varíola voluntária vágula evidente? | |
ah PORQUE AMOU | |
e se queimou | |
todo por dentro por fora nos cantos ecos | |
lúgubres de você mesm(o,a) | |
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou? | |
se era para | |
ou era por | |
como se entretanto todavia | |
toda via mas toda vida | |
é indignação do achado e aguda espotejação | |
da carne do conhecimento, ora veja | |
permita cavalheir(o,a) | |
amig(o,a) me releve | |
este malestar | |
cantarino escarninho piedoso | |
este querer consolar sem muita convicção | |
o que é inconsolável de ofício | |
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima | |
a vida também | |
tudo também | |
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de nuncarás. | |
" | |
Mário Quintana,"A Rua dos Cataventos | |
Da vez primeira em que me assassinaram, | |
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. | |
Depois, a cada vez que me mataram, | |
Foram levando qualquer coisa minha. | |
Hoje, dos meu cadáveres eu sou | |
O mais desnudo, o que não tem mais nada. | |
Arde um toco de Vela amarelada, | |
Como único bem que me ficou. | |
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! | |
Pois dessa mão avaramente adunca | |
Não haverão de arracar a luz sagrada! | |
Aves da noite! Asas do horror! Voejai! | |
Que a luz trêmula e triste como um ai, | |
A luz de um morto não se apaga nunca! | |
" | |
Juan Ramón Jiménez,"Todas as rosas são a mesma rosa | |
Todas as rosas são a mesma rosa, | |
amor!, a única rosa; | |
e tudo está contido nela, | |
breve imagem do mundo, | |
amor!, a única rosa." | |
Carlos Drummond de Andrade,"A Bruxa | |
A Bruxa | |
Nesta cidade do Rio | |
De dois milhões de habitantes | |
Estou sozinho no quarto | |
Estou sozinho na América. | |
Estarei mesmo sozinho? | |
Ainda há pouco um ruído | |
Anunciou vida a meu lado. | |
Certo não é vida humana, | |
Mas é vida. E sinto a Bruxa | |
Presa na zona de luz. | |
De dois milhões de habitantes! | |
E nem precisava tanto... | |
Precisava de um amigo, | |
Desses calados, distantes, | |
Que lêem verso de Horácio | |
Mas secretamente influem | |
Na vida, no amor, na carne. | |
Estou só, não tenho amigo, | |
E a essa hora tardia | |
Como procurar amigo? | |
E nem precisava tanto. | |
Precisava de mulher | |
Que entrasse nesse minuto, | |
Recebesse esse carinho | |
Salvasse do aniquilamento | |
Um minuto e um carinho loucos | |
Que tenho para oferecer. | |
Em dois milhões de habitantes | |
Quantas mulheres prováveis | |
Interrogam-se no espelho | |
Medindo o tempo perdido | |
Até que venha a manhã | |
Trazer leite, jornal, calma. | |
Porém a essa hora vazia | |
Como descobrir mulher? | |
Esta cidade do Rio! | |
Tenho tanta palavra meiga, | |
Conheço vozes de bichos, | |
Sei os beijos mais violentos, | |
Viajei, briguei, aprendi | |
Estou cercado de olhos, | |
de mãos, afetos, procuras | |
Mas se tento comunicar-me, | |
O que há é apenas a noite | |
E uma espantosa solidão | |
Companheiros, escutai-me! | |
Essa presença agitada | |
Querendo romper a noite | |
Não é simplesmente a Bruxa. | |
É antes a confidência | |
Exalando-se de um homem. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Ausência | |
Por muito tempo achei que a ausência é falta. | |
E lastimava, ignorante, a falta. | |
Hoje não a lastimo. | |
Não há falta na ausência. | |
A ausência é um estar em mim. | |
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, | |
que rio e danço e invento exclamações alegres, | |
porque a ausência, essa ausência assimilada, | |
ninguém a rouba mais de mim." | |
Tobias Barreto,"A Escravidão | |
Se Deus é quem deixa o mundo | |
Sob o peso que o oprime, | |
Se ele consente esse crime, | |
Que se chama a escravidão, | |
Para fazer homens livres, | |
Para arrancá-los do abismo, | |
Existe um patriotismo | |
Maior que a religião. | |
Se não lhe importa o escravo | |
Que a seus pés queixas deponha, | |
Cobrindo assim de vergonha | |
A face dos anjos seus, | |
Em seu delírio inefável, | |
Praticando a caridade, | |
Nesta hora a mocidade | |
Corrige o erro de Deus!... | |
1868 | |
Publicado no livro Dias e Noites (1893). Poema integrante da série Parte I - Gerais e Naturalistas. | |
In: BARRETO, Tobias. Dias e noites. Org. Luiz Antonio Barreto. Introd. e notas Jackson da Silva Lima. 7.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1989. p.122. (Obras completas" | |
Vinicius de Moraes,"O Mosquito | |
O mundo é tão esquisito: | |
Tem mosquito. | |
Por que, mosquito, por que | |
Eu . . . e você? | |
Você é o inseto | |
Mais indiscreto | |
Da Criação | |
Tocando fino | |
Seu violino | |
Na escuridão. | |
Tudo de mau | |
Você reúne | |
Mosquito pau | |
Que morde e zune. | |
Você gostaria | |
De passar o dia | |
Numa serraria — | |
Gostaria? | |
Pois você parece uma serraria! | |
" | |
Cecília Meireles,"Mar absoluto | |
Foi desde sempre o mar, | |
E multidões passadas me empurravam | |
como o barco esquecido. | |
Agora recordo que falavam | |
da revolta dos ventos, | |
de linhos, de cordas, de ferros, | |
de sereias dadas à costa. | |
E o rosto de meus avós estava caído | |
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas, | |
e pelos mares do Norte, duros de gelo. | |
Então, é comigo que falam, | |
sou eu que devo ir. | |
Porque não há ninguém, | |
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos. | |
E tenho de procurar meus tios remotos afogados. | |
Tenho de levar-lhes redes de rezas, | |
campos convertidos em velas, | |
barcas sobrenaturais | |
com peixes mensageiros | |
e cantos náuticos. | |
E fico tonta. | |
acordada de repente nas praias tumultuosas. | |
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos. | |
""Para adiante! Pelo mar largo! | |
Livrando o corpo da lição da areia! | |
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"" | |
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas. | |
A solidez da terra, monótona, | |
parece-mos fraca ilusão. | |
Queremos a ilusão grande do mar, | |
multiplicada em suas malhas de perigo. | |
Queremos a sua solidão robusta, | |
uma solidão para todos os lados, | |
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo, | |
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia. | |
O alento heróico do mar tem seu pólo secreto, | |
que os homens sentem, seduzidos e medrosos. | |
O mar é só mar, desprovido de apegos, | |
matando-se e recuperando-se, | |
correndo como um touro azul por sua própria sombra, | |
e arremetendo com bravura contra ninguém, | |
e sendo depois a pura sombra de si mesmo, | |
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício. | |
Não precisa do destino fixo da terra, | |
ele que, ao mesmo tempo, | |
é o dançarino e a sua dança. | |
Tem um reino de metamorfose, para experiência: | |
seu corpo é o seu próprio jogo, | |
e sua eternidade lúdica | |
não apenas gratuita: mas perfeita. | |
Baralha seus altos contrastes: | |
cavalo, épico, anêmona suave, | |
entrega-se todos, despreza ritmo | |
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si, | |
da sua terminante grandeza despojada. | |
Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões: | |
água de todas as possibilidades, | |
mas sem fraqueza nenhuma. | |
E assim como água fala-me. | |
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz, | |
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino. | |
Não me chama para que siga por cima dele, | |
nem por dentro de si: | |
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom. | |
Não me quer arrastar como meus tios outrora, | |
nem lentamente conduzida. | |
como meus avós, de serenos olhos certeiros. | |
Aceita-me apenas convertida em sua natureza: | |
plástica, fluida, disponível, | |
igual a ele, em constante solilóquio, | |
sem exigências de princípio e fim, | |
desprendida de terra e céu. | |
E eu, que viera cautelosa, | |
por procurar gente passada, | |
suspeito que me enganei, | |
que há outras ordens, que não foram ouvidas; | |
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos, | |
e o mar a que me mandam não é apenas este mar. | |
Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças, | |
mas outro, que se parece com ele | |
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos. | |
E entre água e estrela estudo a solidão. | |
E recordo minha herança de cordas e âncoras, | |
e encontro tudo sobre-humano. | |
E este mar visível levanta para mim | |
uma face espantosa. | |
E retrai-se, ao dizer-me o que preciso. | |
E é logo uma pequena concha fervilhante, | |
nódoa líquida e instável, | |
célula azul sumindo-se | |
no reino de um outro mar: | |
ah! do Mar Absoluto. | |
" | |
Miguel Torga,"A Terra | |
Também eu quero abrir-te e semear | |
Um grão de poesia no teu seio! | |
Anda tudo a lavrar, | |
Tudo a enterrar centeio, | |
E são horas de eu pôr a germinar | |
A semente dos versos que granjeio. | |
Na seara madura de amanhã | |
Sem fronteiras nem dono, | |
Há de existir a praga da milhã, | |
A volúpia do sono | |
Da papoula vermelha e temporã, | |
E o alegre abandono | |
De uma cigarra vã. | |
Mas das asas que agite, | |
O poema que cante | |
Será graça e limite | |
Do pendão que levante | |
A fé que a tua força ressuscite! | |
Casou-nos Deus, o mito! | |
E cada imagem que me vem | |
É um gomo teu, ou um grito | |
Que eu apenas repito | |
Na melodia que o poema tem. | |
Terra, minha aliada | |
Na criação! | |
Seja fecunda a vessada, | |
Seja à tona do chão, | |
Nada fecundas, nada, | |
Que eu não fermente também de inspiração! | |
E por isso te rasgo de magia | |
E te lanço nos braços a colheita | |
Que hás de parir depois... | |
Poesia desfeita, | |
Fruto maduro de nós dois. | |
Terra, minha mulher! | |
Um amor é o aceno, | |
Outro a quentura que se quer | |
Dentro dum corpo nu, moreno! | |
A charrua das leivas não concebe | |
Uma bolota que não dê carvalhos; | |
A minha, planta orvalhos... | |
Água que a manhã bebe | |
No pudor dos atalhos. | |
Terra, minha canção! | |
Ode de pólo a pólo erguida | |
Pela beleza que não sabe a pão | |
Mas ao gosto da vida! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O amor antigo | |
O amor antigo vive de si mesmo, | |
não de cultivo alheio ou de presença. | |
Nada exige nem pede. Nada espera, | |
mas do destino vão nega a sentença. | |
O amor antigo tem raízes fundas, | |
feitas de sofrimento e de beleza. | |
por aquelas mergulha no infinito, | |
e por estas suplanta a natureza. | |
Se em toda parte o tempo desmorona | |
aquilo que foi grande e deslumbrante, | |
o amor antigo, porém, nunca fenece | |
e a cada dia surge mais amante. | |
Mais ardente, mas pobre de esperança. | |
Mais triste? Não. Ele venceu a dor, | |
e resplandece no seu canto obscuro, | |
tanto mais velho quanto mais amor." | |
Vinicius de Moraes,"Desalento | |
Sim, | |
vai e diz | |
Diz assim | |
Que eu chorei | |
Que eu morri | |
De arrependimento | |
Que o meu desalento | |
Já não tem mais fim | |
Vai e diz | |
Diz assim | |
Como sou | |
Infeliz | |
No meu descaminho | |
Diz que estou sozinho | |
E sem saber de mim | |
Diz que eu estive por pouco | |
Diz a ela que estou louco | |
Pra perdoar | |
Que seja lá como for | |
Por amor | |
Por favor | |
É pra ela voltar | |
Sim, vai e diz | |
Diz assim | |
Que eu rodei | |
Que eu bebi | |
Que eu caí | |
Que eu não sei | |
Que eu só sei | |
Que cansei, enfim | |
Dos meus desencontros | |
Corre e diz a ela | |
Que eu entrego os pontos | |
" | |
Manuel Bandeira,"Os Sapos | |
Enfunando os papos, | |
Saem da penumbra, | |
Aos pulos, os sapos. | |
A luz os deslumbra. | |
Em ronco que aterra, | |
Berra o sapo-boi: | |
— ""Meu pai foi à guerra!"" | |
— ""Não foi!"" — ""Foi!"" — ""Não foi!"". | |
O sapo-tanoeiro, | |
Parnasiano aguado, | |
Diz: — ""Meu cancioneiro | |
É bem martelado. | |
Vede como primo | |
Em comer os hiatos! | |
Que arte! E nunca rimo | |
Os termos cognatos! | |
O meu verso é bom | |
Frumento sem joio | |
Faço rimas com | |
Consoantes de apoio. | |
Vai por cinqüenta anos | |
Que lhes dei a norma: | |
Reduzi sem danos | |
A formas a forma. | |
Clame a saparia | |
Em críticas céticas: | |
Não há mais poesia, | |
Mas há artes poéticas . . ."" | |
Urra o sapo-boi: | |
— ""Meu pai foi rei"" — ""Foi!"" | |
— ""Não foi!"" — ""Foi!"" — ""Não foi!"" | |
Brada em um assomo | |
O sapo-tanoeiro: | |
— ""A grande arte é como | |
Lavor de joalheiro. | |
Ou bem de estatuário. | |
Tudo quanto é belo, | |
Tudo quanto é vário, | |
Canta no martelo."" | |
Outros, sapos-pipas | |
(Um mal em si cabe), | |
Falam pelas tripas: | |
— ""Sei!"" — ""Não sabe!"" — ""Sabe!"". | |
Longe dessa grita, | |
Lá onde mais densa | |
A noite infinita | |
Verte a sombra imensa; | |
Lá, fugindo ao mundo, | |
Sem glória, sem fé, | |
No perau profundo | |
E solitário, é | |
Que soluças tu, | |
Transido de frio, | |
Sapo-cururu | |
Da beira do rio | |
1918 | |
" | |
Manuel Bandeira,"VELHA CHÁCARA | |
A casa era por aqui... | |
Onde? Procuro-a e não acho. | |
Ouço uma voz que esqueci: | |
É a voz deste mesmo riacho. | |
Ah quanto tempo passou! | |
(Foram mais de cinqüenta anos.) | |
Tantos que a morte levou! | |
(E a vida... nos desenganos...) | |
A usura fez tábua rasa | |
Da velha chácara triste: | |
Não existe mais a casa... | |
- Mas o menino ainda existe. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Amizade | |
Um amigo íntimo - de si mesmo. | |
O amigo que se torna inimigo fica incompreensível; o inimigo que se torna amigo é um cofre aberto. | |
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas. | |
É preciso regar as flores sobre o jazigo de amizades extintas. | |
Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada. | |
Certas amizades comprometem a idéia de amizade. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Leito de Folhas Verdes | |
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo | |
À voz do meu amor moves teus passos? | |
Da noite a viração, movendo as folhas, | |
Já nos cimos do bosque rumoreja. | |
Eu, sob a copa da mangueira altiva | |
Nosso leito gentil cobri zelosa | |
Com mimoso tapiz de folhas brandas, | |
Onde o frouxo luar brinca entre flores. | |
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, | |
Já solta o bogari mais doce aroma! | |
Como prece de amor, como estas preces, | |
No silêncio da noite o bosque exala. | |
Brilha a lua no céu, brilham estrelas, | |
Correm perfumes no correr da brisa, | |
A cujo influxo mágico respira-se | |
Um quebranto de amor, melhor que a vida! | |
A flor que desabrocha ao romper d`alva | |
Um só giro do sol, não mais, vegeta: | |
Eu sou aquela flor que espero ainda | |
Doce raio do sol que me dê vida. | |
Sejam vales ou montes, lago ou terra, | |
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, | |
Vai seguindo após ti meu pensamento; | |
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua! | |
Meus olhos outros olhos nunca viram, | |
Não sentiram meus lábios outros lábios, | |
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas | |
A arazóia na cinta me apertaram | |
Do tamarindo a flor jaz entreaberta, | |
Já solta o bogari mais doce aroma; | |
Também meu coração, como estas flores, | |
Melhor perfume ao pé da noite exala! | |
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes | |
À voz do meu amor, que em vão te chama! | |
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil | |
A brisa da manhã sacuda as folhas! | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Americanas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.1" | |
Pablo Neruda,"O Teu Riso | |
Tira-me o pão, se quiseres, | |
tira-me o ar, mas não | |
me tires o teu riso. | |
Não me tires a rosa, | |
a lança que desfolhas, | |
a água que de súbito | |
brota da tua alegria, | |
a repentina onda | |
de prata que em ti nasce. | |
A minha luta é dura e regresso | |
com os olhos cansados | |
às vezes por ver | |
que a terra não muda, | |
mas ao entrar teu riso | |
sobe ao céu a procurar-me | |
e abre-me todas | |
as portas da vida. | |
Meu amor, nos momentos | |
mais escuros solta | |
o teu riso e se de súbito | |
vires que o meu sangue mancha | |
as pedras da rua, | |
ri, porque o teu riso | |
será para as minhas mãos | |
como uma espada fresca. | |
À beira do mar, no outono, | |
teu riso deve erguer | |
sua cascata de espuma, | |
e na primavera, amor, | |
quero teu riso como | |
a flor que esperava, | |
a flor azul, a rosa | |
da minha pátria sonora. | |
Ri-te da noite, | |
do dia, da lua, | |
ri-te das ruas | |
tortas da ilha, | |
ri-te deste grosseiro | |
rapaz que te ama, | |
mas quando abro | |
os olhos e os fecho, | |
quando meus passos vão, | |
quando voltam meus passos, | |
nega-me o pão, o ar, | |
a luz, a primavera, | |
mas nunca o teu riso, | |
porque então morreria." | |
Cecília Meireles,"Leilão de Jardim | |
Quem me compra um jardim | |
com flores? | |
borboletas de muitas | |
cores, | |
lavadeiras e pas- | |
sarinhos, | |
ovos verdes e azuis | |
nos ninhos? | |
Quem me compra este ca- | |
racol? | |
Quem me compra um raio | |
de sol? | |
Um lagarto entre o muro | |
e a hera, | |
uma estátua da Pri- | |
mavera? | |
Quem me compra este for- | |
migueiro? | |
E este sapo, que é jar- | |
dineiro? | |
E a cigarra e a sua | |
canção? | |
E o grilinho dentro | |
do chão? | |
(Este é meu leilão!) | |
" | |
Manoel de Barros,"Bernardo é quase uma árvore | |
Bernardo é quase árvore. | |
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem | |
de longe | |
E vêm pousar em seu ombro. | |
Seu olho renova as tardes. | |
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho; | |
1 abridor de amanhecer | |
1 prego que farfalha | |
1 encolhedor de rios - e | |
1 esticador de horizontes. | |
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três | |
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.) | |
Bernardo desregula a natureza: | |
Seu olho aumenta o poente. | |
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua | |
Incompletude?) | |
" | |
José Craveirinha,"Quero Ser Tambor | |
Tambor está velho de gritar | |
Oh velho Deus dos homens | |
deixa-me ser tambor | |
corpo e alma só tambor | |
só tambor gritando na noite quente dos trópicos. | |
Nem flor nascida no mato do desespero | |
Nem rio correndo para o mar do desespero | |
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero | |
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. | |
Nem nada! | |
Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra | |
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra | |
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. | |
Eu | |
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala | |
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra | |
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. | |
Oh velho Deus dos homens | |
eu quero ser tambor | |
e nem rio | |
e nem flor | |
e nem zagaia por enquanto | |
e nem mesmo poesia. | |
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida | |
Só tambor noite e dia | |
dia e noite só tambor | |
até à consumação da grande festa do batuque! | |
Oh velho Deus dos homens | |
deixa-me ser tambor | |
só tambor! | |
" | |
Ulisses Tavares,"Conteúdo | |
No toque, a troca. | |
No ato, o salto. | |
No esfrega, a entrega. | |
Na mão, o coração. | |
No rir, o repartir. | |
No sangue, o bumerangue. | |
Na ida, a vida. | |
In: TAVARES, Ulisses. Pega gente. 2.ed. São Paulo: Núcleo Pindaíba Edições e Debates, 1978. p.71. (Coleção PF" | |
Olavo Bilac,"Satânia | |
.......................................... | |
Nua, de pé, solto o cabelo às costas, | |
Sorri. Na alcova perfumada e quente, | |
Pela janela, como um rio enorme | |
De áureas ondas tranqüilas e impalpáveis, | |
Profusamente a luz do meio-dia | |
Entra e se espalha palpitante e viva. | |
Entra, parte-se em feixes rutilantes, | |
Aviva as cores das tapeçarias, | |
Doura os espelhos e os cristais inflama. | |
Depois, tremendo, como a arfar, desliza | |
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve, | |
Como uma vaga preguiçosa e lenta, | |
Vem lhe beijar a pequenina ponta | |
Do pequenino pé macio e branco. | |
Sobe... cinge-lhe a perna longamente; | |
Sobe... — e que volta sensual descreve | |
Para abranger todo o quadril! — prossegue. | |
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, | |
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, | |
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo | |
Da axila, acende-lhe o coral da boca | |
E antes de se ir perder na escura noite, | |
Na densa noite dos cabelos negros, | |
Pára confusa, a palpitar, diante | |
Da luz mais bela dos seus grandes olhos. | |
E aos mornos beijos, às carícias ternas | |
Da luz, cerrando levemente os cílios, | |
Satânia os lábios úmidos encurva, | |
E da boca na púrpura sangrenta | |
Abre um curto sorriso de volúpia... | |
Corre-lhe à flor da pele um calefrio; | |
Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso | |
Apressa; e os olhos, pela fenda estreita | |
Das abaixadas pálpebras radiando, | |
Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam, | |
Fitos no vácuo, uma visão querida... | |
(...) | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). Poema integrante da série Sarças de Fogo. | |
In: BILAC, Olavo. Obra reunida. Org. e introd. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 138-139. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Receita de Ano Novo | |
Para você ganhar belíssimo Ano Novo | |
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz, | |
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido | |
(mal vivido talvez ou sem sentido) | |
para você ganhar um ano | |
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, | |
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, | |
novo | |
até no coração das coisas menos percebidas | |
(a começar pelo seu interior) | |
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, | |
mas com ele se come, se passeia, | |
se ama, se compreende, se trabalha, | |
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, | |
não precisa expedir nem receber mensagens | |
(planta recebe mensagens? | |
passa telegrama?). | |
Não precisa fazer lista de boas intenções | |
para arquivá-las na gaveta. | |
Não precisa chorar de arrependido | |
pelas besteiras consumadas | |
nem parvamente acreditar | |
que por decreto da esperança | |
a partir de janeiro as coisas mudem | |
e seja tudo claridade, recompensa, | |
justiça entre os homens e as nações, | |
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, | |
direitos respeitados, começando | |
pelo direito augusto de viver. | |
Para ganhar um ano-novo | |
que mereça este nome, | |
você, meu caro, tem de merecê-lo, | |
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, | |
mas tente, experimente, consciente. | |
É dentro de você que o Ano Novo | |
cochila e espera desde sempre. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poema Patético | |
Que barulho é esse na escada? | |
É o amor que está acabando, | |
é o homem que fechou a porta | |
e se enforcou na cortina. | |
Que barulho é esse na escada? | |
É Guiomar que tapou os olhos | |
e se assoou com estrondo. | |
É a lua imóvel sobre os pratos | |
e os metais que brilham na copa. | |
Que barulho é esse na escada? | |
É a torneira pingando água, | |
e o lamento imperceptível | |
de alguém que perdeu no jogo | |
enquanto a banda de música | |
vai baixando, baixando de tom. | |
Que barulho é esse na escada? | |
É a virgem com um trombone, | |
a criança com um tambor, | |
o bispo com uma campainha | |
e alguém abafando o rumor | |
que salta de meu coração. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A puta | |
Quero conhecer a puta. | |
A puta da cidade. A única. | |
A fornecedora. | |
Na rua de Baixo | |
Onde é proibido passar. | |
Onde o ar é vidro ardendo | |
E labaredas torram a língua | |
De quem disser: Eu quero | |
A puta | |
Quero a puta quero a puta. | |
Ela arreganha dentes largos | |
De longe. Na mata do cabelo | |
Se abre toda, chupante | |
Boca de mina amanteigada | |
Quente. A puta quente. | |
É preciso crescer esta noite inteira sem parar | |
De crescer e querer | |
A puta que não sabe | |
O gosto do desejo do menino | |
O gosto menino | |
Que nem o menino | |
Sabe, e quer saber, querendo a puta. | |
" | |
Mário Quintana,"Bilhete | |
Se tu me amas, ama-me baixinho | |
Não o grites de cima dos telhados | |
Deixa em paz os passarinhos | |
Deixa em paz a mim! | |
Se me queres, | |
enfim, | |
tem de ser bem devagarinho, Amada, | |
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda... | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Filho do Homem | |
O mundo parou | |
A estrela morreu | |
No fundo da treva | |
O infante nasceu. | |
Nasceu num estábulo | |
Pequeno e singelo | |
Com boi e charrua | |
Com foice e martelo | |
Ao lado do infante | |
O homem e a mulher | |
Uma tal Maria | |
Um José qualquer. | |
A noite o fez negro | |
Fogo o avermelhou | |
A aurora nascente | |
Todo o amarelou. | |
O dia o fez branco | |
Branco como a luz | |
À falta de um nome | |
Chamou-se Jesus. | |
Jesus pequenino | |
Filho natural | |
Ergue-te, menino | |
É triste o Natal." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Segredo | |
A poesia é incomunicável. | |
Fique torto no seu canto. | |
Não ame. | |
Ouço dizer que há tiroteio | |
ao alcance do nosso corpo. | |
É a revolução? o amor? | |
Não diga nada. | |
Tudo é possível, só eu impossível. | |
O mar transborda de peixes. | |
Há homens que andam no mar | |
como se andassem na rua. | |
Não conte. | |
Suponha que um anjo de fogo | |
varresse a face da terra | |
e os homens sacrificados | |
pedissem perdão. | |
Não peça. | |
" | |
Clarice Lispector,"Estrela Perigosa | |
Estrela perigosa | |
Rosto ao vento | |
Marulho e silêncio | |
leve porcelana | |
templo submerso | |
trigo e vinho | |
tristeza de coisa vivida | |
árvores já floresceram | |
o sal trazido pelo vento | |
conhecimento por encantação | |
esqueleto de idéias | |
ora pro nobis | |
Decompor a luz | |
mistério de estrelas | |
paixão pela exatidão | |
caça aos vagalumes. | |
Vagalume é como orvalho | |
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir | |
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é. | |
No obscuro erotismo de vida cheia | |
nodosas raízes. | |
Missa negra, feiticeiros. | |
Na proximidade de fontes, | |
lagos e cachoeiras | |
braços e pernas e olhos, | |
todos mortos se misturam e clamam por vida. | |
Sinto a falta dele | |
como se me faltasse um dente na frente: | |
excrucitante. | |
Que medo alegre, | |
o de te esperar. | |
" | |
Álvares de Azevedo,"Se Eu Morresse Amanhã | |
Se eu morresse amanhã, viria ao menos | |
Fechar meus olhos minha triste irmã; | |
Minha mãe de saudades morreria | |
Se eu morresse amanhã! | |
Quanta glória pressinto em meu futuro! | |
Que aurora de porvir e que manhã! | |
Eu perdera chorando essas coroas | |
Se eu morresse amanhã! | |
Que sol! que céu azul! que doce n'alva | |
Acorda a natureza mais louçã! | |
Não me batera tanto amor no peito | |
Se eu morresse amanhã! | |
Mas essa dor da vida que devora | |
A ânsia de glória, o dolorido afã... | |
A dor no peito emudecera ao menos | |
Se eu morresse amanhã! | |
Publicado no livro Poesias de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1853). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Bocage,"Pena de Talião | |
Ao Padre José Agostinho de Macedo | |
Tu nihil invita dices, faciesve Minerva. | |
Horácio, Arte Poética, V, 385 | |
Invidia rumpantur ut ilia Codro. | |
Virgílio, Écloga VII | |
(. . .) | |
Refalsado animal, das trevas sócio, | |
Depõe, não vistas de cordeiro a pele. | |
Da razão, da moral o tom que arrogas, | |
Jamais purificou teus lábios torpes, | |
Torpes do lodaçal, donde zunindo | |
(Nuvens de insetos vis) te sobem trovas | |
À mente erma de idéias, nua de arte. | |
(. . .) | |
Sanguessuga de pútridos autores, | |
Que vais com cobre vil remir das tendas, | |
Enquanto palavroso impõe aos néscios | |
E a crédulo tropel, roncando, afirmas | |
Que resolveste o que roçaste apenas | |
(Falo das Artes, das Ciências falo); | |
Enquanto a estátua da Ignorância elevas, | |
Os dias eu consumo, eu velo as noites | |
Nos desornados, indigentes lares; | |
Submisso aos fados meus ali componho | |
À pesada existência honesto arrimo, | |
Coa mão, que Febo estende aos seus, a | |
poucos. | |
Ali deveres, que não tens, nem prezas, | |
Com fraternal piedade acato, exerço; | |
Cultivo afetos à tua alma estranhos, | |
Dando à virtude quanto dás ao vício. | |
Não me envilece ali de um frade o soldo, | |
Ali me esforça ao gênio as ígneas asas | |
Coração benfazejo, e tanto e tanto | |
Que a ti, seu depressor, protege, acolhe; | |
Que em redondo caráter te propaga | |
A rapsódia servil, poema intruso, | |
Pilhagem que fizeste em mil volumes, | |
Atulhado armazém de alheios fardos, | |
Onde a Monotonia os mexe, os volve, | |
E onde teimosa Apóstrofe se esfalfa, | |
Já coos Céus intendendo e já coa Terra. | |
(. . .) | |
Prossegue em detrair-me, em praguejar-me, | |
Porque Délio dos prólogos te exclui: | |
Pregoa, espalha em sátiras, em lojas | |
Que Zoilos não mereço, e sê meu Zoilo: | |
Chama-me de Tisífone enteado, | |
Porque em fêmeo-belmírico falsete | |
Não pinto os zelos, não descrevo a morte; | |
Erra versos, e versos sentencia; | |
Condena-me a cantar de Ulina e danos. | |
Agrega o magro Elmano ao fulho Esbarra; | |
Ignora o baquear, que é verbo antigo, | |
Dos Sousas, dos Arrais somente usado; | |
Metonímias, sinédoques dispensa; | |
Dá-me as pueris antíteses, que odeio; | |
De estafador de anáforas me encoima; | |
Faze (entre insânias) um prodígio, faze | |
Qual anda o caranguejo andar meus versos; | |
Supõe-me entre barris, entre marujos | |
(De alguns talvez teu sangue as veias honre): | |
Mas não desmaies na sua carreira; avante, | |
Eia, ardor, coração . . . vaidade, ao menos! | |
As oitavas ao Gama esconde embora, | |
Nisso não perdes tu nem perde o mundo; | |
Mas venha o mais: epístolas, sonetos, | |
Odes, canções, metamorfoses, tudo . . . | |
Na frente põe teu nome, e estou vingado. | |
" | |
Frederico Barbosa,"Severina | |
Severina | |
Morte e Vida Severina | |
(1956) | |
Análise da Obra: | |
Frederico Barbosa | |
Literatura para a Fuvest 97 - Editora do Anglo Vestibulares | |
São Paulo, 1996 | |
O Autor | |
Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra. Essas palavras do diplomata, poeta e crítico mexicano Octavio Paz ecoam no depoimento pessoal do poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto: Eu não tenho biografia. Minha biografia é: em tanto de tanto foi para tal lugar. Em tanto de tanto foi para tal lugar, essa é a biografia que tenho. | |
Nascido no dia 9 de janeiro de 1920 em Recife, Pernambuco, de tradicional família de senhores de engenho, João Cabral de Melo Neto passou a primeira infância em engenhos de cana-de-açúcar, entre ""curumbas"", indivíduos que descem do sertão à procura de trabalho nos engenhos, usinas e estradas, e ""romances de barbante"", os folhetos de cordel, que tanto o influenciariam, décadas depois, na composição de sua obra mais conhecida, Morte e Vida Severina. No poema ""Descoberta da Literatura"", integrante do livro A Escola das Facas (1980), João Cabral retoma o ambiente da sua infância: | |
""João Cabral de Melo Neto"". Revista 34 Letras; Rio de Janeiro; março de 1989. p. 34 | |
No dia-a-dia do engenho, | |
toda a semana, durante, | |
cochichavam-me em segredo: | |
saiu um novo romance. | |
E da feira do domingo | |
me traziam conspirantes | |
para que os lesse e explicasse | |
um romance de barbante. | |
Sentados na roda morta | |
de um carro de boi, sem jante, | |
ouviam o folheto guenzo , | |
a seu leitor semelhante, | |
com as peripécias de espanto | |
preditas pelos feirantes. | |
Embora as coisas contadas | |
e todo o mirabolante, | |
em nada ou pouco variassem | |
nos crimes, no amor, nos lances, | |
e soassem como sabidas | |
de outros folhetos migrantes, | |
a tensão era tão densa, | |
subia tão alarmante, | |
que o leitor que lia aquilo | |
como puro alto-falante, | |
e, sem querer, imantara | |
todos ali, circunstantes, | |
receava que confundissem | |
o de perto com o distante, | |
o ali com o espaço mágico, | |
seu franzino com o gigante, | |
e que o acabassem tomando | |
pelo autor imaginante | |
ou tivesse que afrontar | |
as brabezas do brigante. | |
(E acabaria, não fossem | |
contar tudo à Casa-grande: | |
na moita morta do engenho, | |
um filho-engenho, perante | |
cassacos do eito e de tudo, | |
se estava dando ao desplante | |
de ler letra analfabeta | |
de curumba, no caçanje | |
próprio dos cegos de feira, | |
muitas vezes meliantes. ) | |
Muito magro; adoentado; fraco; inseguro.Trabalhador de engenhos de açúcar.Trabalho com enxadas em plantação, roça.Português mal falado ou mal escrito. | |
O menino ""semelhante"" (embora superior, por ser alfabetizado) aos trabalhadores analfabetos do eito, que é repreendido pela família aristocrática por ler com (e para) os cassacos os folhetos de cordel, transfere-se aos 10 anos de idade para Recife, onde joga futebol no Santa Cruz Futebol Clube, torna-se um dos poucos fanáticos torcedores do América de Recife, e cursa o primário no Colégio Marista. No livro Agrestes (1985), o poeta ateu - que afirmara em ""Antiode"" (1947): Poesia, te escrevo / agora: fezes, as / fezes vivas que és. - recorda com acidez o atraso moralista da educação religiosa marista, associando-o à falta de higiene nos banheiros do colégio, no poema ""As Latrinas do Colégio Marista do Recife"": | |
Nos Colégios Marista (Recife), | |
se a ciência parou na Escolástica, | |
a malvada estrutura da carne | |
era ensinada em todas as aulas, | |
com os vários creosotos morais | |
com que lavar gestos, olhos, língua; | |
à alma davam a água sanitária | |
que nunca usavam nas latrinas. | |
Lavar, na teologia marista, | |
é coisa da alma, o corpo é do diabo; | |
a castidade dispensa a higiene | |
do corpo, e de onde ir defecá-lo. | |
A partir dos dezessete anos, João Cabral de Melo Neto emprega-se no serviço público. Ocupa, entre 1937 e 1945, diversos cargos burocráticos em órgãos públicos, inicialmente em Recife e, a partir de 1943, no Rio de Janeiro, então Capital Federal. Data deste período a sua iniciação literária. Conhece, no Recife, Willy Lewin, intelectual que, segundo Cabral, teria tanta importância na sua formação intelectual quanto um curso universitário. Publica, em 1942, seu primeiro livro de poemas, Pedra do Sono, de nítida influência surrealista, mas que já apresentava, como o percebeu o crítico Antonio Candido em resenha da época, um rigor construtivo herdado do cubismo. Conhece, a partir de 1940, no Rio de Janeiro, alguns dos mais importantes poetas brasileiros da geração de 30, como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, a quem já dedicara o seu primeiro livro e dedicaria o seu livro seguinte, O Engenheiro (1945). Em carta a Drummond, datada de 29 de setembro de 1943, João Cabral expõe seus sentimentos em relação ao serviço burocrático. Este poema, que não trazia título, ficou inédito por 53 anos, até ser publicado recentemente: | |
João Cabral de Melo Neto: Cadernos de Literatura Brasileira, Número 1; São Paulo; Instituto Moreira Salles; Março de 1996. pp. 60 e 61. | |
Difícil ser funcionário | |
Nesta segunda-feira. | |
Eu te telefono, Carlos, | |
Pedindo conselho. | |
Não é lá fora o dia | |
Que me deixa assim, | |
Cinemas, avenidas | |
E outros não-fazeres. | |
É a dor das coisas, | |
O luto desta mesa; | |
É o regimento proibindo | |
Assovios, versos, flores. | |
Eu nunca suspeitara | |
Tanta roupa preta; | |
Tão pouco essas palavras | |
Funcionárias, sem amor. | |
Carlos, há uma máquina | |
Que nunca escreve cartas; | |
Há uma garrafa de tinta | |
Que nunca bebeu álcool. | |
E os arquivos, Carlos, | |
As caixas de papéis: | |
Túmulos para todos | |
Os tamanhos de meu corpo. | |
Não me sinto correto | |
De gravata de cor, | |
E na cabeça uma moça | |
Em forma de lembrança. | |
Não encontro a palavra | |
Que diga a esses móveis, | |
Se os pudesse encarar... | |
Fazer seu nojo meu... | |
Carlos, dessa náusea | |
Como colher a flor? | |
Eu te telefono, Carlos, | |
Pedindo conselho. | |
Manuscrito em papel timbrado do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), órgão da Presidência da República em que trabalhava o poeta pernambucano, o poema deixa clara a influência de Drummond, autor de ""A Flor e a Náusea"" e também funcionário público, sobre o jovem João Cabral. Além de ter-lhe dedicado seus dois primeiros livros, João Cabral de Melo Neto também publicou, na Revista do Brasil, em 1943, a peça em prosa poética Os Três Mal-Amados, até hoje não encenada, que toma como mote o conhecido poema ""Quadrilha"", de Drummond. | |
O anos de 1945-46 serão decisivos para o poeta e para o homem. Em 1945, sob grande influência do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, publica O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios da poesia do rigor, da clareza e da objetividade que marcariam toda a sua obra. Passaria, então, a ser conhecido como o ""poeta-engenheiro"", embora estivesse longe de abraçar tal profissão. Influenciado pelas idéias do arquiteto Le Corbusier, cujas palavras relacionadas à arquitetura, ""...machine à émouvoir..."" (""máquina de comover""), estampa como epígrafe do livro, e que, como bem o lembrou João Alexandre Barbosa , são correlatas à definição de poesia dada por Paul Valéry como ""machine du language"" (""máquina da linguagem""), João Cabral de Melo Neto busca, a partir de então, uma poesia que não deixa de emocionar ou revelar o sonho, mas o faz com o equilíbrio e o rigor matemático e construtivo da engenharia: | |
A luz, o sol, o ar livre | |
envolvem o sonho do engenheiro. | |
O eng" | |
Cecília Meireles,"Este é o lenço | |
Este é o lenço de Marília, | |
pelas suas mãos lavrado, | |
nem a ouro nem a prata, | |
somente a ponto cruzado. | |
Este é o lenço de Marília | |
para o Amado. | |
Em cada ponta, um raminho, | |
preso num laço encarnado; | |
no meio, um cesto de flores, | |
por dois pombos transportado. | |
Não flores de amor-perfeito, | |
mas de malogrado! | |
Este é o lenço de Marília: | |
bem vereis que está manchado: | |
será do tempo perdido? | |
será do tempo passado? | |
Pela ferrugem das horas? | |
ou por molhado | |
em águas de algum arroio | |
singularmente salgado? | |
Finos azuis e vermelhos | |
do largo lenço quadrado, | |
- quem pintou nuvens tão negras | |
neste pano delicado, | |
sem dó de flores e de asas | |
nem do seu recado? | |
Este é o lenço de Marília, | |
por vento de amor mandado. | |
Para viver de suspiros | |
foi pela sorte fadado: | |
breves suspiros de amante, | |
- longos, de degredado! | |
Este é o lenço de Marília | |
nele vereis retratado | |
o destino dos amores | |
por um lenço atravessado: | |
que o lenço para os adeuses | |
e o pranto foi inventado. | |
Olhai os ramos de flores | |
de cada lado! | |
E os tristes pombos, no meio, | |
com o seu cestinho parado | |
sobre o tempo, sobre as nuvens | |
do mau fado! | |
Onde está Marília, a bela? | |
E Dirceu, com a lira e o gado? | |
As altas montanhas duras, | |
letra a letra, têm contado | |
sua história aos ternos rios, | |
que em ouro a têm soletrado... | |
E as fontes de longe miram | |
as janelas do sobrado. | |
Este é o lenço de Marília | |
para o Amado. | |
Eis o que resta dos sonhos: | |
um lenço deixado. | |
Pombos e flores, presentes. | |
Mas o resto, arrebatado. | |
Caiu a folha das árvores, | |
muita chuva tem gastado | |
pedras onde houvera lágrimas. | |
Tudo está mudado. | |
Este é o lenço de Marília | |
como foi bordado. | |
Só nuvens, só muitas nuvens | |
vêm pousando, têm pousado | |
entre os desenhos tão finos | |
de azul e encarnado. | |
Conta já século e meio | |
de guardado. | |
Que amores como este lenço | |
têm durado, | |
se este mesmo está durando? | |
mais que o amor representado? | |
" | |
Cecília Meireles,"Modinha | |
Tuas palavras antigas | |
Deixei-as todas, deixeia-as, | |
Junto com as minhas cantigas, | |
Desenhadas nas areias. | |
Tantos sóis e tantas luas | |
Brilharam sobre essas linhas, | |
Das cantigas - que eram tuas - | |
Das palavras - que eram minhas! | |
O mar, de língua sonora, | |
Sabe o presente e o passado. | |
Canta o que é meu, vai-se embora: | |
Que o resto é pouco e apagado. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Teresa | |
A primeira vez que vi Teresa | |
Achei que ela tinha pernas estúpidas | |
Achei também que a cara parecia uma perna | |
Quando vi Teresa de novo | |
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo | |
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) | |
Da terceira vez não vi mais nada | |
Os céus se misturaram com a terra | |
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Profundamente | |
Quando ontem adormeci | |
Na noite de São João | |
Havia alegria e rumor | |
Vozes cantigas e risos | |
Ao pé das fogueiras acesas. | |
No meio da noite despertei | |
Não ouvi mais vozes nem risos | |
Apenas balões | |
Passavam errantes | |
Silenciosamente | |
Apenas de vez em quando | |
O ruído de um bonde | |
Cortava o silêncio | |
Como um túnel. | |
Onde estavam os que há pouco | |
Dançavam | |
Cantavam | |
E riam | |
Ao pé das fogueiras acesas? | |
— Estavam todos dormindo | |
Estavam todos deitados | |
Dormindo | |
Profundamente. | |
Quando eu tinha seis anos | |
Não pude ver o fim da festa de São João | |
Porque adormeci. | |
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo | |
Minha avó | |
Meu avô | |
Totônio Rodrigues | |
Tomásia | |
Rosa | |
Onde estão todos eles? | |
— Estão todos dormindo | |
Estão todos deitados | |
Dormindo | |
Profundamente. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A mão suja | |
Minha mão está suja. | |
Preciso cortá-la. | |
Não adianta lavar. | |
A água está podre. | |
Nem ensaboar. | |
O sabão é ruim. | |
A mão está suja, | |
suja há muitos anos. | |
A princípio oculta | |
no bolso da calça, | |
quem o saberia? | |
Gente me chamava | |
na ponta do gesto. | |
Eu seguia, duro. | |
A mão escondida | |
no corpo espalhava | |
seu escuro rastro. | |
E vi que era igual | |
usá-la ou guardá-la. | |
O nojo era um só. | |
Ai, quantas noites | |
no fundo de casa | |
lavei essa mão, | |
poli-a, escovei-a. | |
Cristal ou diamante, | |
por maior contraste, | |
quisera torná-la, | |
ou mesmo, por fim, | |
uma simples mão branca, | |
não limpa de homem, | |
que se pode pegar | |
e levar à boca | |
ou prender à nossa | |
num desses momentos | |
em que dois se confessam | |
sem dizer palavra... | |
A mão incurável | |
abre dedos sujos. | |
Eu era um sujo vil, | |
não sujo de terra, | |
sujo de carvão, | |
casca de ferida, | |
suor na camisa | |
de quem trabalhou. | |
Era um triste sujo | |
feito de doença | |
e de mortal desgosto | |
na pele enfarada. | |
Não era sujo preto | |
- o preto tão puro | |
numa coisa branca. | |
Era sujo pardo, | |
pardo, tardo, cardo. | |
Inútil reter | |
a ignóbil mão suja | |
posta sobre a mesa. | |
Depressa, cortá-la, | |
fazê-la em pedaços | |
e jogá-la ao mar! | |
Com o tempo, a esperança | |
e seus maquinismos, | |
outra mão virá | |
pura - transparente - | |
colar-se a meu braço. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Vinícius | |
De repente do riso fez-se o pranto | |
Silencioso e branco como a bruma | |
E das bocas unidas fez-se a espuma | |
E das mãos espalmadas fez-se o espanto | |
De repente da calma fez-se o vento | |
Que dos olhos desfez a última chama | |
E da paixão fez-se o pressentimento | |
E do momento imóvel fez-se o drama | |
De repente, não mais que de repente | |
Fez-se de triste o que se fez amante | |
E de sozinho o que se fez contente | |
Fez-se do amor próximo distante | |
Fez-se da vida uma aventura errante | |
De repente, não mais que de repente." | |
Manuel Bandeira,"A ESTRELA | |
Vi uma estrela tão alta, | |
Vi uma estrela tão fria! | |
Vi uma estrela luzindo | |
Na minha vida vazia. | |
Era uma estrela tão alta! | |
Era uma estrela tão fria! | |
Era uma estrela sozinha | |
Luzindo no fim do dia. | |
Por que da sua distância | |
Para a minha companhia | |
Não baixava aquela estrela? | |
Por que tão alta luzia? | |
E ouvi-a na sombra funda | |
Responder que assim fazia | |
Para dar uma esperança | |
Mais triste ao fim do meu dia. | |
" | |
Cecília Meireles,"Canção a caminho do Céu | |
Foram montanhas? foram mares? | |
foram os números...? - não sei. | |
Por muitas coisas singulares, | |
não te encontrei | |
E te esperava, e te chamava, | |
e entre os caminhos me perdi. | |
Foi nuvem negra? maré brava? | |
E era por ti! | |
As mãos que trago, as mãos são estas. | |
Elas sozinhas te dirão | |
se vem de mortes ou de festas | |
meu coração. | |
Tal como sou, não te convido | |
a ires para onde eu for. | |
Tudo que tenho é haver sofrido | |
pelo meu sonho, alto e perdido, | |
- e o encantamento arrependido | |
do meu amor. | |
" | |
José Craveirinha,"Um homem não chora | |
Acreditava naquela historia | |
do homem que nunca chora. | |
Eu julgava-me um homem. | |
Na adolescência | |
meus filmes de aventuras | |
punham-me muito longe de ser cobarde | |
na arrogante criancice do herói de ferro. | |
Agora tremo. | |
E agora choro. | |
Como um homem treme. | |
Como chora um homem!" | |
Bocage,"Arrimado às duas portas | |
Arrimado às duas portas | |
Pingue boticário estava, | |
E brandamente acenou | |
A um doutor que passava. | |
Mal que chega o bom Galeno, | |
Diz o outro com ar jocundo: | |
""Unamo-nos, meu doutor, | |
E demos cabo do Mundo!"" | |
" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Quando mo vieram contar, senti o frio | |
Quando mo vieram contar, senti o frio | |
de uma lâmina de aço nas entranhas; | |
apoiei-me no muro e um momento | |
perdi a consciência de onde estava. | |
A noite abateu-se em meu espírito; | |
em ira e piedade afogou-se-me a alma; | |
e então compreendi porque se chora, | |
e então compreendi porque se mata! | |
Passou a noite de sofrimento...a custo; | |
pude balbuciar breves palavras... | |
Quem me deu a notícia?...Um bom amigo... | |
Fazia-me um favor. Rendi-lhe graças." | |
Juan Ramón Jiménez,"Encontro de duas mãos | |
Encontro de duas mãos | |
que procuram estrelas, | |
nas entranhas da noite!" | |
Juan Ramón Jiménez,"A rosa: | |
A rosa: | |
tua nudez feita graça. | |
A fonte: | |
tua nudez feita água. | |
A estrela: | |
tua nudez feita alma." | |
Juan Ramón Jiménez,"Eu não voltarei | |
Eu não voltarei. E a noite | |
morna, serena, calada, | |
adormecerá tudo, sob | |
sua lua solitária. | |
Meu corpo estará ausente, | |
e pela janela alta | |
entrará a brisa fresca | |
a perguntar por minha alma. | |
Ignoro se alguém me aguarda | |
de ausência tão prolongada, | |
ou beija a minha lembrança | |
entre carícias e lágrimas. | |
Mas haverá estrelas, flores | |
e suspiros e esperanças, | |
e amor nas alamedas, | |
sob a sombra das ramagens. | |
E tocará esse piano | |
como nesta noite plácida, | |
não havendo quem o escute, | |
a pensar, nesta varanda." | |
Juan Ramón Jiménez,"A solidão era eterna | |
A solidão era eterna | |
e o silêncio inacabável. | |
Detive-me com uma árvore | |
e ouvi falar as árvores." | |
Reinaldo Ferreira,"O Futuro | |
Aos Domingos, iremos ao jardim. | |
Entediados, em grupos familiares, | |
Aos pares, | |
Dando-nos ares | |
De pessoas invulgares, | |
Aos Domingos iremos ao jardim. | |
Diremos nos encontros casuais | |
Com outros clãs iguais, | |
Banalidades rituais | |
Fundamentais. | |
Autómatos afins, | |
Misto de serafins | |
Sociais | |
E de standardizados mandarins, | |
Teremos preconceitos e pruridos, | |
Produtos recebidos na herança | |
De certos caracteres adquiridos. | |
Falaremos do tempo, | |
Do que foi, do que já houve... | |
E sendo já então | |
Por tradição | |
E formação | |
Antiburgueses | |
- Solidamente antiburgueses-, | |
Inquietos falaremos | |
Da tormenta que passa | |
E seus desvarios. | |
Seremos aos domingos, no jardim, | |
Reaccionários" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Deixei a luz a um lado | |
Deixei a luz a um lado e numa beira | |
da cama em desalinho me sentei, | |
sombrio, mudo, os olhos imóveis | |
cravados na parade. | |
Que tempo estive assim? Não sei; ao deixar-me | |
a horrível embriaguez da dor | |
já expirava a luz, e na varanda | |
ria o sol. | |
Não sei tão-pouco em tão terríveis horas | |
em que pensava ou que passou por mim; | |
recordo só que chorei e blasfemei | |
e que naquela noite envelheci." | |
Juan Ramón Jiménez,"Quando eu estiver com as raízes | |
Quando eu estiver com as raízes | |
chama-me com tua voz. | |
Irá parecer-me que entra | |
a tremer a luz do sol." | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Hoje sorriem-me a terra e os céus | |
Hoje sorriem-me a terra e os céus; | |
sinto no fundo da minha alma o sol; | |
eu hoje vi-a..., vi-a e ela olhou-me... | |
Creio hoje em Deus!" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Deus meu, tão sozinhos | |
Deus meu, tão sozinhos | |
que ficam os mortos!" | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Se receoso se turba na alta noite | |
Se receoso se turba na alta noite | |
teu peito em flor, | |
ao sentires um hálito em teus lábios, | |
abrasador, | |
lembra-te que invisível ao teu lado | |
respiro eu." | |
Luís Filipe Castro Mendes,"Era o último amor | |
Era o último amor. A casa fria, | |
os pés molhados no escuro chão. | |
Era o último amor e não sabia | |
esconder o rosto em tanta solidão. | |
Era o último amor. Quem advinha | |
o sabor pela escuridão? | |
Quem oferece frutos nessa neve? | |
Quem rasga com ternura o que foi verão? | |
Era o último amor, o mais perfeito | |
fulgor do que viveu sem as palavras. | |
Era o último amor, perfil desfeito | |
entre lumes e vozes passadas. | |
Era o último amor e não sabia | |
que os pés à terra nua oferecia." | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Sobre o regaço | |
Sobre o regaço tinha | |
o livro bem aberto; | |
tocavam em meu rosto | |
seus caracóis negros. | |
Não víamos as letras | |
nem um nem outro, creio; | |
mas guardávamos ambos | |
fundo silêncio. | |
Por quanto tempo? Nem então | |
pude sabê-lo. | |
Sei só que não se ouvia mais que o alento, | |
que apressado escapava | |
dos lábios secos. | |
Só sei que nos voltámos | |
os dois ao mesmo tempo, | |
os olhos encontraram-se | |
e ressoou um beijo." | |
Charles Baudelaire,"Se alguma vez, nos salões de um palácio | |
Se alguma vez, nos salões de um palacio, sobre a erva de uma vala ou na solidão morna do vosso quarto, acordardes de uma embriaguez evanescente ou desaparecida, perguntai ao vento, a vaga, ao passaro, ao relogio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento a vaga, a estrela, o passaro, o relogio, vos responderão: São horas de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos! Deslumbrai-vos!" | |
Juan Ramón Jiménez,"Está tão puro já meu coração | |
Está tão puro já meu coração, | |
que é o mesmo que morra | |
ou cante." | |
Gustavo Adolfo Bécquer,"Levai-me por piedade onde a vertigem | |
Levai-me por piedade onde a vertigem | |
com a razão me arranque a memória. | |
Por piedade! Tenho medo de ficar | |
com a minha dor a sós!" | |
Juan Ramón Jiménez,"A terra leva-nos por terra | |
A terra leva-nos por terra; | |
mas tu, mar, | |
levas-nos pelo céu." | |
Juan Ramón Jiménez,"Que acontece a uma música | |
Que acontece a uma música, | |
quando deixa de soar; | |
e a uma brisa que deixa | |
de voar, | |
e a uma luz que se apaga? | |
Morte, diz: que és tu, senão silêncio, | |
calma e sombra?" | |
Fernando Pessoa,"Todas as cartas de amor são | |
Todas as cartas de amor são | |
Ridículas. | |
Não seriam cartas de amor se não fossem | |
Ridículas. | |
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, | |
Como as outras, | |
Ridículas. | |
As cartas de amor, se há amor, | |
Têm de ser | |
Ridículas. | |
Mas, afinal, | |
Só as criaturas que nunca escreveram | |
Cartas de amor | |
É que são | |
Ridículas. | |
Quem me dera no tempo em que escrevia | |
Sem dar por isso | |
Cartas de amor | |
Ridículas. | |
A verdade é que hoje | |
As minhas memórias | |
Dessas cartas de amor | |
É que são | |
Ridículas. | |
(Todas as palavras esdrúxulas, | |
Como os sentimentos esdrúxulos, | |
São naturalmente | |
Ridículas). | |
" | |
Fernando Pessoa,"07 - Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo… | |
Da minha aldeia | |
vejo quanto da terra se pode ver o Universo.... | |
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer | |
Porque eu sou do tamanho do que vejo | |
E não do tamanho da minha altura... | |
Nas cidades a vida | |
é mais pequena | |
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. | |
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave, | |
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu, | |
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, | |
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver." | |
Fernando Pessoa,"433 | |
Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser família. | |
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho. | |
Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim. | |
Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que os outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros. | |
Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida. | |
Saber bem que quem somos não é connosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis - saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações? | |
Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara - dominó sem graça - caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida." | |
Juan Gelman,"Madrugada | |
Sucos do céu molham a madrugada da cidade violenta. | |
Ela respira por nós. | |
Somos os que acendemos o amor para que dure, | |
para que sobreviva a toda a solidão. | |
Queimamos o medo, olhamos frente a frente a dor | |
antes de merecer esta esperança. | |
Abrimos as janelas para lhes dar mil rostos." | |
Carlos Drummond de Andrade,"As sem razões do amor | |
Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor." | |
Pablo Neruda,"Não te quero senão porque te quero | |
Não te quero senão porque te queroe de querer-te a não querer-te chegoe de esperar-te quando não te esperopassa meu coração do frio ao fogo.Quero-te apenas porque a ti eu quero,a ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,e a medida do meu amor viajanteé não ver-te e amar-te como um cego.Consumirá talvez a luz de Janeiro,o seu raio cruel, meu coração inteiro,roubando-me a chave do sossego.Nesta história apenas eu morroe morrerei de amor porque te quero,porque te quero, amor, a sangue e fogo." | |
José Gomes Ferreira,"Chove! | |
Chove... Mas isso que importa!, se estou aqui abrigado nesta porta a ouvir na chuva que cai do céu uma melodia de silêncio que ninguém mais ouve senão eu? Chove... Mas é do destino de quem ama ouvir um violino até na lama." | |
Pablo Neruda,"Os teus pés | |
Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo os teus pés. Teus pés de osso arqueado, teus pequenos pés duros. Eu sei que te sustentam e que teu doce peso sobre eles se ergue. Tua cintura e teus seios, a duplicada purpura dos teus mamilos, a caixa dos teus olhos que há pouco levantaram voo, a larga boca de fruta, tua rubra cabeleira, pequena torre minha. Mas se amo os teus pés é só porque andaram sobre a terra e sobre o vento e sobre a água, até me encontrarem." | |
Marina Colasanti,"Às seis da tarde | |
Ás seis da tarde as mulheres choravam no banheiro. Não choravam por isso ou por aquilo choravam porque o pranto subia garganta acima mesmo se os filhos cresciam com boa saúde se havia comida no fogo e se o marido lhes dava do bom e do melhor choravam porque no céu além do basculante o dia se punha porque uma ânsia uma dor uma gastura era só o que sobrava dos seus sonhos. Agora às seis da tarde as mulheres regressam do trabalho o dia se põe os filhos crescem o fogo espera e elas não podem não querem chorar na condução" | |
Fernando Pessoa,"27 - Só a Natureza é divina, e ela não é divina... | |
Só a natureza é divina, e ela não é divina... Se falo dela como de um ente É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens Que dá personalidade às coisas, E impõe nome às coisas. Mas as coisas não têm nome nem personalidade: Existem, e o céu é grande e a terra larga, E o nosso coração do tamanho de um punho fechado... Bendito seja eu por tudo quanto não sei. Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol." | |
Herberto Helder,"Não toques nos objectos imediatos | |
Não toques nos objectos imediatos. A harmonia queima. Por mais leve que seja um bule ou uma chávena, são loucos todos os objectos. Uma jarra com um crisântemo transparente tem um tremor oculto. É terrível no escuro. Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer a boca fica em chaga." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Sentimental | |
Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! - Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências um cartaz amarelo: ""Neste país é proibido sonhar.""" | |
Cecília Meireles,"Ou isto ou aquilo | |
Ou se tem chuva e não se tem sol, | |
ou se tem sol e não se tem chuva! | |
Ou se calça a luva e não se põe o anel, | |
ou se põe o anel e não se calça a luva! | |
Quem sobe nos ares não fica no chão , | |
Quem fica no chão não sobe nos ares. | |
É uma grande pena que não se possa | |
estar ao mesmo tempo em dois lugares! | |
Ou guardo dinheiro e não compro o doce, | |
ou compro o doce e não guardo o dinheiro. | |
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... | |
e vivo escolhendo o dia inteiro! | |
Não sei se brinco, não sei se estudo, | |
se saio correndo ou fico tranqüilo. | |
Mas não consegui entender ainda | |
qual é melhor: se é isto ou aquilo." | |
Eugénio de Andrade,"Ah, falemos da brisa | |
Eu dizia:""Nenhuma brisa é triste""e procurava água,lábios,um corpoonde a solidão fosse impossível. Mas quem sabe dessa músicacativa nos meus dedos?E depois, como guardar um beijo.mar doirado ou sombradesolada? Recordava um rio,álamos,o sabor nupcial da chuva,tropeçava em lágrimas e soluçose lágrimas, e procurava. Como quem se despepara amar a madrugada nas areias,eu dizia: "" Nenhuma brisa é triste,triste"", e procurava. E procurava." | |
Eugénio de Andrade,"ARTE DE NAVEGAR | |
Vê como o verão subitamente se faz água no teu peito, e a noite se faz barco, e a minha mão marinheiro. de Obscuro Domínio" | |
Olavo Bilac,"Profissão de Fé | |
Le poete est ciseleur, | |
Le ciseleur est poete. | |
VICTOR HUGO | |
Não quero o Zeus Capitolino, | |
Hercúleo e belo, | |
Talhar no mármore divino | |
Com o camartelo. | |
(...) | |
Invejo o ourives quando escrevo: | |
Imito o amor | |
Com que ele, em ouro, o alto relevo | |
Faz de uma flor. | |
(...) | |
Quero que a estrofe cristalina, | |
Dobrada ao jeito | |
Do ourives, saia da oficina | |
Sem um defeito: | |
(...) | |
Porque o escrever — tanta perícia, | |
Tanta requer, | |
Que ofício tal... nem há notícia | |
De outro qualquer. | |
Assim procedo. Minha pena | |
Segue esta norma, | |
Por te servir, Deusa serena, | |
Serena Forma! | |
Deusa! A onda vil, que se avoluma | |
De um torvo mar, | |
Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma | |
Deixa-a rolar! | |
(...) | |
Não morrerás, Deusa sublime! | |
Do trono egrégio | |
Assistirás intacta ao crime | |
Do sacrilégio. | |
E, se morreres porventura, | |
Possa eu morrer | |
Contigo, e a mesma noite escura | |
Nos envolver! | |
(...) | |
Vive! que eu viverei servindo | |
Teu culto, e, obscuro, | |
Tuas custódias esculpindo | |
No ouro mais puro. | |
Celebrarei o teu ofício | |
No altar: porém, | |
Se inda é pequeno o sacrifício, | |
Morra eu também! | |
Caia eu também, sem esperança, | |
Porém tranquilo, | |
Inda, ao cair, vibrando a lança, | |
Em prol do Estilo! | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1978 | |
NOTA: Estilização de imagens do poema ""L'Art"", do livro ÉMAUX ET CAMMÉES (1852), de Théophile Gautier. Observe a tradução desse poema, por Onestaldo de Pennafort, no livro ESPELHO D'ÁGUA (1931" | |
Vinicius de Moraes,"As Borboletas | |
Brancas | |
Azuis | |
Amarelas | |
E pretas | |
Brincam | |
Na luz | |
As belas | |
Borboletas | |
Borboletas brancas | |
São alegres e francas. | |
Borboletas azuis | |
Gostam muito de luz. | |
As amarelinhas | |
São tão bonitinhas! | |
E as pretas, então . . . | |
Oh, que escuridão! | |
" | |
Manuel Bandeira,"TRAGÉDIA BRASILEIRA | |
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, | |
Conheceu Maria Elvira na Lapa, - prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, | |
uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria. | |
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou | |
médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria. | |
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. | |
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez | |
nada disso: mudou de casa. | |
Viveram três anos assim. | |
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. | |
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, | |
Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua | |
Clapp, | |
outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, | |
Inválidos... | |
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de | |
inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em | |
decúbito dorsal, vestida de organdi azul. | |
" | |
Miguel Torga,"Confiança | |
O que é bonito neste mundo, e anima, | |
É ver que na vindima | |
De cada sonho | |
Fica a cepa a sonhar outra aventura... | |
E que a doçura | |
Que se não prova | |
Se transfigura | |
Numa doçura | |
Muito mais pura | |
E muito mais nova... | |
" | |
Manuel Bandeira,"Pneumotorax | |
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. | |
A vida inteira que podia ter sido e que não foi. | |
Tosse, tosse, tosse. | |
Mandou chamar o médico: | |
— Diga trinta e três. | |
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . . | |
— Respire. | |
................................................................................................... | |
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. | |
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? | |
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino." | |
Manuel Bandeira,"O Bicho | |
Vi ontem um bicho | |
Na imundície do pátio | |
Catando comida entre os detritos. | |
Quando achava alguma coisa, | |
Não examinava nem cheirava: | |
Engolia com voracidade. | |
O bicho não era um cão, | |
Não era um gato, | |
Não era um rato. | |
O bicho, meu Deus, era um homem. | |
Rio, 27 de dezembro de 1947 | |
" | |
Gonçalves Dias,"Não me deixes! | |
Debruçada nas águas dum regato | |
A flor dizia em vão | |
À corrente, onde bela se mirava: | |
""Ai, não me deixes, não! | |
""Comigo fica ou leva-me contigo | |
""Dos mares à amplidão; | |
""Límpido ou turvo, te amarei constante; | |
""Mas não me deixes, não!"" | |
E a corrente passava; novas águas | |
Após as outras vão; | |
E a flor sempre a dizer curva na fonte: | |
""Ai, não me deixes, não!"" | |
E das águas que fogem incessantes | |
À eterna sucessão | |
Dizia sempre a flor, e sempre embalde: | |
""Ai, não me deixes, não!"" | |
Por fim desfalecida e a cor murchada, | |
Quase a lamber o chão, | |
Buscava inda a corrente por dizer-lhe | |
Que a não deixasse, não. | |
A corrente impiedosa a flor enleia, | |
Leva-a do seu torrão; | |
A afundar-se dizia a pobrezinha: | |
""Não me deixaste, não!""" | |
António Gedeão,"Poema épico | |
O rapagão da camisola vermelha sacode a melena da testa | |
e retesa os braços num bocejo como um jovem leão voluptuoso. | |
Dorme a sesta | |
o involuntário ocioso. | |
A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela janela | |
e sumiu-se na noite escura do mundo. | |
Quis respirar mais fundo | |
e isso de ser coitada é lá com ela. | |
O homem da barba por fazer conta os filhos e as moedas | |
e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufelho. | |
Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas; | |
- Eu já venho! | |
O da face doente, | |
o que sofre por tudo e por nada, sem querer, | |
abana a cabeça negativamente: | |
- Isto não pode ser! Isto não pode ser! | |
Sentados às soleiras das portas, | |
mordendo a língua na tarefa inglória, | |
com letras gordas e por linhas tortas | |
vão redigindo a História. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Quero | |
Quero que todos os dias do ano | |
todos os dias da vida | |
de meia em meia hora | |
de 5 em 5 minutos | |
me digas: Eu te amo. | |
Ouvindo-te dizer: Eu te amo, | |
creio, no momento, que sou amado. | |
No momento anterior | |
e no seguinte, | |
como sabê-lo? | |
Quero que me repitas até a exaustão | |
que me amas que me amas que me amas. | |
Do contrário evapora-se a amação | |
pois ao dizer: Eu te amo, | |
dementes | |
apagas | |
teu amor por mim. | |
Exijo de ti o perene comunicado. | |
Não exijo senão isto, | |
isto sempre, isto cada vez mais. | |
Quero ser amado por e em tua palavra | |
nem sei de outra maneira a não ser esta | |
de reconhecer o dom amoroso, | |
a perfeita maneira de saber-se amado: | |
amor na raiz da palavra | |
e na sua emissão, | |
amor | |
saltando da língua nacional, | |
amor | |
feito som | |
vibração espacial. | |
No momento em que não me dizes: | |
Eu te amo, | |
inexoravelmente sei | |
que deixaste de ama-me, | |
que nunca me amaste antes. | |
Se não me disseres urgente repetido | |
Eu te amoamoamoamoamo, | |
verdade fulminante que acabas de desentranhar, | |
eu me precipito no caos, | |
essa coleção de objetos de não-amor. | |
" | |
Alphonsus de Guimaraens,"XXXIII - Ismália | |
Quando Ismália enlouqueceu, | |
Pôs-se na torre a sonhar... | |
Viu uma lua no céu, | |
Viu outra lua no mar. | |
No sonho em que se perdeu, | |
Banhou-se toda em luar... | |
Queria subir ao céu, | |
Queria descer ao mar... | |
E, no desvario seu, | |
Na torre pôs-se a cantar... | |
Estava perto do céu, | |
Estava longe do mar... | |
E como um anjo pendeu | |
As asas para voar... | |
Queria a lua do céu, | |
Queria a lua do mar... | |
As asas que Deus lhe deu | |
Ruflaram de par em par... | |
Sua alma subiu ao céu, | |
Seu corpo desceu ao mar... | |
Publicado no livro Pastoral aos crentes do amor e da morte: livro lírico do poeta Alphonsus de Guimaraens (1923). Poema integrante da série As Canções. | |
In: GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho. Introdução de Eduardo Portella. Notas biográficas de João Alphonsus. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. p. 231-232. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira, 20)" | |
Cecília Meireles,"Motivo | |
Eu canto porque o instante existe | |
e a minha vida está completa. | |
Não sou alegre nem sou triste: | |
sou poeta. | |
Irmão das coisas fugidias, | |
não sinto gozo nem tormento. | |
Atravesso noites e dias | |
no vento. | |
Se desmorono ou se edifico, | |
se permaneço ou me desfaço, | |
- não sei, não sei. Não sei se fico | |
> ou passo. | |
Sei que canto. E a canção é tudo. | |
Tem sangue eterno a asa ritmada. | |
E um dia sei que estarei mudo: | |
- mais nada." | |
Fernando Pessoa,"Meu ser vive na Noite e no Desejo. | |
POEMAS CURTOS | |
Meu ser vive na Noite e no Desejo. | |
Minha alma é uma lembrança que há em mim; | |
12/12/1919 | |
Longe de mim em mim existo | |
À parte de quem sou, | |
A sombra e o movimento em que consisto. | |
1920 | |
Não haver deus é um deus também | |
1926 | |
Saudade eterna, que pouco duras! | |
26/04/1926 | |
... Vaga história comezinha | |
Que, pela voz das vozes, era a minha... | |
Quem sou eu? Eles sabem e passaram. | |
1928 | |
E a extensa e vária natureza é triste | |
Quando no vau da luz as nuvens passam. | |
1928 | |
O meu coração quebrou-se | |
Como um bocado de vidro | |
Quis viver e enganou-se... | |
01/10/1928 | |
O abismo é o muro que tenho | |
Ser eu não tem um tamanho. | |
1929 | |
Mas eu, alheio sempre, sempre entrando | |
O mais íntimo ser da minha vida, | |
Vou dentro em mim a sombra procurando. | |
1929 | |
Tenho pena até... nem sei... | |
Do próprio mal que passei | |
Pois passei quando passou. | |
1929 | |
Teu corpo real que dorme | |
É um frio no meu ser. | |
1930 | |
Deus não tem unidade, | |
Como a terei eu? | |
24/08/193 | |
Quando nas pausas solenes | |
Da natureza | |
Os galos cantam solenes. | |
1930 | |
Tão linda e finda a memoro! | |
Tão pequena a enterrarão! | |
Quem me entalou este choro | |
Nas goelas do coração? | |
25/12/1931 | |
Entre o sossego e o arvoredo, | |
Entre a clareira e a solidão, | |
Meu devaneio passa a medo | |
Levando-me a alma pela mão. | |
É tarde já, e ainda é cedo. | |
(...) | |
1932 | |
CEIFEIRA | |
Mas não, é abstracta, é uma ave | |
De som volteando no ar do ar, | |
E a alma canta sem entrave | |
Pois que o canto é que faz cantar. | |
1932 | |
Eu tenho ideias e razões, | |
Conheço a cor dos argumentos | |
E nunca chego aos corações. | |
1932 | |
Aquele peso em mim – meu coração. | |
1932 | |
O sol doirava-te a cabeça loura. | |
És morta. Eu vivo. Ainda há mundo e aurora. | |
1932 | |
Tenho principalmente não ter nada, | |
Dormir seria sono se o tivesse. | |
26/04/1932 | |
Minhas mesmas emoções | |
São coisas que me acontecem. | |
31/08/1932 | |
Quase anónima sorris | |
E o sol doura o teu cabelo. | |
Porque é que, pra ser feliz, | |
É preciso não sabê-lo? | |
25/09/1932 | |
Quero, terei – | |
Se não aqui, | |
Noutro lugar que inda não sei. | |
Nada perdi. | |
Tudo serei. | |
09/01/1933 | |
Teu inútil dever | |
Quanta obra faça cobrirá a terra | |
Como ao que a fez, nem haverá de ti | |
Mais que a breve memória. | |
1934 | |
O som continuo da chuva | |
A se ouvir lá fora bem | |
Deixa-nos a alma viúva | |
Daquilo que já não tem. | |
(...) | |
1934 | |
Exígua lâmpada tranquila, | |
Quem te alumia e me dá luz, | |
Entre quem és e eu sou oscila. | |
30/11/1934 | |
O meu sentimento é cinza | |
Da minha imaginação, | |
E eu deixo cair a cinza | |
No cinzeiro da Razão. | |
12/06/1935 | |
Já estou tranquilo. Já não espero nada. | |
Já sobre meu vazio coração | |
Desceu a inconsciência abençoada | |
De nem querer uma ilusão. | |
20/07/1935 | |
Criança, era outro... | |
Naquele em que me tornei | |
Cresci e esqueci. | |
Tenho de meu, agora, um silêncio, uma lei. | |
Ganhei ou perdi? | |
Onde, em jardins exaustos | |
Nada já tenha fim, | |
Forma teus fúteis faustos | |
De tédio e de cetim. | |
Meus sonhos são exaustos, | |
Dorme comigo e em mim. | |
Não combati: ninguém mo mereceu. | |
A natureza e depois a arte, amei. | |
As mãos à chama que me a vida deu | |
Aqueci. Ela cessa. Cessarei." | |
Castro Alves,"Vozes d'África | |
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? | |
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes | |
Embuçado nos céus? | |
Há dois mil anos te mandei meu grito, | |
Que embalde desde então corre o infinito... | |
Onde estás, Senhor Deus?... | |
(...) | |
Minhas irmãs são belas, são ditosas... | |
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas | |
Dos haréns do Sultão. | |
Ou no dorso dos brancos elefantes | |
Embala-se coberta de brilhantes | |
Nas plagas do Hindustão. | |
(...) | |
A Europa é sempre Europa, a gloriosa!... | |
A mulher deslumbrante e caprichosa, | |
Rainha e cortesã. | |
Artista — corta o mármor de Carrara; | |
Poetisa — tange os hinos de Ferrara, | |
No glorioso afã!... | |
Sempre a láurea lhe cabe no litígio... | |
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio | |
Enflora-lhe a cerviz. | |
O Universo após ela — doudo amante — | |
Segue cativo o passo delirante | |
Da grande meretriz. | |
....................................... | |
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada | |
Em meio das areias esgarrada, | |
Perdida marcho em vão! | |
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; | |
Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente! | |
Não descubras no chão... | |
(...) | |
Como o profeta em cinza a fronte envolve, | |
Velo a cabeça no areal que volve | |
O siroco feroz... | |
Quando eu passo no Saara amortalhada... | |
Ai! dizem: ""La vai África embuçada | |
No seu branco albornoz..."" | |
(...) | |
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! | |
É, pois, teu peito eterno, inexaurível | |
De vingança e rancor?... | |
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime | |
Eu cometi jamais que assim me oprime | |
Teu gládio vingador?!... | |
........................................... | |
(...) | |
Vi a ciência desertar do Egito... | |
Vi meu povo seguir — Judeu maldito — | |
Trilho de perdição. | |
Depois vi minha prole desgraçada | |
Pelas garras d'Europa — arrebatada — | |
Amestrado falcão!... | |
Cristo! embalde morreste sobre um monte... | |
Teu sangue não lavou de minha fronte | |
A mancha original. | |
Ainda hoje são, por fado adverso, | |
Meus filhos — alimária do universo, | |
Eu — pasto universal... | |
Hoje em meu sangue a América se nutre | |
— Condor que transformara-se em abutre, | |
Ave da escravidão, | |
Ela juntou-se às mais... irmã traidora | |
Qual de José os vis irmãos outrora | |
Venderam seu irmão. | |
......................................... | |
Basta, Senhor! De teu potente braço | |
Role através dos astros e do espaço | |
Perdão p'ra os crimes meus!... | |
Há dois mil anos... eu soluço um grito... | |
Escuta o brado meu lá no infinito, | |
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... | |
São Paulo, 11 de junho de 1868. | |
Imagem - 00290008 | |
Publicado no livro A cachoeira de Paulo Afonso: poema original brasileiro (1876). | |
In: ALVES, Castro. Obra completa. Org. e notas Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 198" | |
Chacal,"Relógio | |
com deus mi deito com deus mi levanto | |
comigo eu calo comigo eu canto | |
eu bato um papo eu bato um ponto | |
eu tomo um drink eu fico tonto. | |
Publicado em Olhos vermelhos (1979). | |
In: CHACAL. Drops de abril. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.63. (Cantadas literárias, 16) | |
NOTA: Citação de ""uma das mais antigas e mais populares"" orações para antes de deitar: ""Com Deus me deito,/Com Deus me levanto,/Com a graça de Deus/E do Espírito Santo!/(...)" | |
Raimundo Correia,"Mal Secreto | |
Se a cólera que espuma, a dor que mora | |
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce | |
Tudo o que punge, tudo o que devora | |
O coração, no rosto se estampasse; | |
Se se pudesse, o espírito que chora, | |
Ver através da máscara da face, | |
Quanta gente, talvez, que inveja agora | |
Nos causa, então piedade nos causasse! | |
Quanta gente que ri, talvez, consigo | |
Guarda um atroz, recôndito inimigo | |
Como invisível chaga cancerosa! | |
Quanta gente que ri, talvez existe, | |
Cuja ventura única consiste | |
Em parecer aos outros venturosa! | |
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.16" | |
Vinicius de Moraes,"Mar | |
Na melancolia de teus olhos | |
Eu sinto a noite se inclinar | |
E ouço as cantigas antigas | |
Do mar. | |
Nos frios espaços de teus braços | |
Eu me perco em carícias de água | |
E durmo escutando em vão | |
O silêncio. | |
E anseio em teu misterioso seio | |
Na atonia das ondas redondas | |
Náufrago entregue ao fluxo forte | |
Da morte." | |
Alphonsus de Guimaraens,"A Catedral | |
Entre brumas, ao longe, surge a aurora. | |
O hialino orvalho aos poucos se evapora, | |
Agoniza o arrebol. | |
A catedral ebúrnea do meu sonho | |
Aparece, na paz do céu risonho, | |
Toda branca de sol. | |
E o sino canta em lúgubres responsos: | |
""Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"" | |
O astro glorioso segue a eterna estrada. | |
Uma áurea seta lhe cintila em cada | |
Refulgente raio de luz. | |
A catedral ebúrnea do meu sonho, | |
Onde os meus olhos tão cansados ponho, | |
Recebe a bênção de Jesus. | |
E o sino clama em lúgubres responsos: | |
""Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"" | |
Por entre lírios e lilases desce | |
A tarde esquiva: amargurada prece | |
Põe-se a lua a rezar. | |
A catedral ebúrnea do meu sonho | |
Aparece, na paz do céu tristonho, | |
Toda branca de luar. | |
E o sino chora em lúgubres responsos: | |
""Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"" | |
O céu é todo trevas: o vento uiva. | |
Do relâmpago a cabeleira ruiva | |
Vem açoitar o rosto meu. | |
E a catedral ebúrnea do meu sonho | |
Afunda-se no caos do céu medonho | |
Como um astro que já morreu. | |
E o sino geme em lúgubres responsos: | |
""Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"" | |
Publicado no periódico Vida de Minas (Belo Horizonte, 30 set. 1915). | |
In: GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho. Introdução de Eduardo Portella. Notas biográficas de João Alphonsus. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. p. 289. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira, 20). | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"A Beleza | |
Oh Beleza! Oh potência invencível, | |
Que na terra despótica imperas; | |
Se vibras teus olhos | |
Quais duas esferas, | |
Quem resiste a teu fogo terrível? | |
Oh Beleza! Oh celeste harmonia, | |
Doce aroma, que as almas fascina; | |
Se exalas suave | |
Tua voz divina, | |
Tudo, tudo a teus pés se extasia. | |
A velhice, do mundo cansada, | |
A teu mando resiste somente; | |
Porém que te importa | |
A voz impotente, | |
Que se perde, sem ser escutada? | |
Diga embora que o teu juramento | |
Não merece a menor confiança; | |
Que a tua firmeza | |
Está só na mudança; | |
Que os teus votos são folhas ao vento. | |
Tudo sei; mas se tu te mostrares | |
Ante mim como um astro radiante, | |
De tudo esquecido, | |
Nesse mesmo instante, | |
Farei tudo o que tu me ordenares. | |
Se até hoje remisso não arde | |
Em teu fogo amoroso meu peito, | |
De estóica dureza | |
Não é isto efeito; | |
Teu vassalo serei cedo ou tarde. | |
Infeliz tenho sido até agora, | |
Que a meus olhos te mostras severa; | |
Nem gozo a ventura, | |
Que goza uma fera; | |
Entretanto ninguém mais te adora. | |
Eu te adoro como o anjo celeste, | |
Que da vida os tormentos acalma; | |
Oh vida da vida, | |
Oh alma desta alma, | |
Um teu riso sequer me não deste! | |
Minha lira que triste ressoa, | |
Minha lira por ti desprezada, | |
Assim mesmo triste, | |
Assim malfadada, | |
Teu poder, teus encantos pregoa. | |
Oh Beleza, meus dias bafeja, | |
Em teu fogo minha alma devora; | |
Verás de que modo | |
Meu peito te adora, | |
E que incenso ofertar-te deseja. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Toada do Amor | |
E o amor sempre nessa toada! | |
briga perdoa perdoa briga. | |
Não se deve xingar a vida, | |
a gente vive, depois esquece. | |
Só o amor volta para brigar, | |
para perdoar, | |
amor cachorro bandido trem. | |
Mas, se não fosse ele, também | |
que graça que a vida tinha? | |
Mariquita, dá cá o pito, | |
no teu pito está o infinito. | |
" | |
Miguel Torga,"Sísifo | |
Recomeça.... | |
Se puderes | |
Sem angústia | |
E sem pressa. | |
E os passos que deres, | |
Nesse caminho duro | |
Do futuro | |
Dá-os em liberdade. | |
Enquanto não alcances | |
Não descanses. | |
De nenhum fruto queiras só metade. | |
E, nunca saciado, | |
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. | |
Sempre a sonhar e vendo | |
O logro da aventura. | |
És homem, não te esqueças! | |
Só é tua a loucura | |
Onde, com lucidez, te reconheças... | |
" | |
Manuel Bandeira,"TREM DE FERRO | |
Café com pão | |
Café com pão | |
Café com pão | |
Virge Maria o que foi isto maquinista? | |
Agora sim | |
Café com pão | |
Agora sim | |
Voa fumaça | |
corre, cerca | |
Ai seu foguista | |
Bota fogo na fornalha | |
que preciso | |
Muito força | |
Muita força | |
Muita força | |
Aô ... | |
Foge, bicho | |
Foge, povo | |
Passa ponte | |
Passa poste | |
Passa pasto | |
Passa boi | |
Passa boiada | |
Passa galho | |
De inagaseira | |
Debruçada | |
No riacho | |
Que vontade de cantar | |
Aô ... | |
Quando me prendera | |
No canaviá | |
Cada pé de cana | |
Era um ofício | |
Aô ... | |
Menina bonita | |
Do vestido verde | |
Me da sua boca | |
Pra mata minha sede | |
Aô ... | |
Vou mimbara vou mimbara | |
Não gosto daqui | |
Nasci no Sertão | |
Sou de Ouricirri | |
Vou depressa | |
Vou correndo | |
Vou na toda | |
Que só levo | |
Pouca gente | |
Pouca gente | |
Pouca gente . | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Memória | |
Amar o perdido | |
deixa confundido | |
este coração. | |
Nada pode o olvido | |
contra o sem sentido | |
apelo do Não. | |
As coisas tangíveis | |
tornam-se insensíveis | |
à palma da mão. | |
Mas as coisas findas, | |
muito mais que lindas, | |
essas ficarão. | |
" | |
Cecília Meireles,"Venturosa de sonhar-te | |
Venturosa de sonhar-te, | |
à minha sombra me deito. | |
(Teu rosto, por toda parte, | |
mas, amor, só no meu peito!) | |
-Barqueiro, que céu tão leve! | |
Barqueiro, que mar parado! | |
Barqueiro, que enigma breve, | |
o sonho de ter amado! | |
Em barca de nuvem sigo: | |
e o que vou pagando ao vento | |
para levar-te comigo | |
é suspiro e pensamento. | |
-Barqueiro, que doce instante! | |
Barqueiro, que instante imenso, | |
não do amado nem do amante: | |
mas de amar o amor que penso!" | |
Olavo Bilac,"A Pátria | |
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! | |
Criança! não verás nenhum país como este! | |
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! | |
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, | |
É um seio de mãe a transbordar carinhos. | |
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos, | |
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos! | |
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos! | |
Vê que grande extensão de matas, onde impera | |
Fecunda e luminosa, a eterna primavera! | |
Boa terra! jamais negou a quem trabalha | |
O pão que mata a fome, o teto que agasalha... | |
Quem com o seu suor a fecunda e umedece, | |
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece! | |
Criança! não verás país nenhum como este: | |
Imita na grandeza a terra em que nasceste! | |
In: BILAC, Olavo. Poesias infantis. 18.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 195" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Para Sempre | |
Por que Deus permite | |
que as mães vão se embora? | |
Mãe não tem limite, | |
é tempo sem hora, | |
luz que não se apaga | |
quando sopra o vento | |
e chuva desaba, | |
veludo escondido | |
na pele enrugada, | |
água pura, ar puro, | |
puro pensamento. | |
Morrer acontece | |
com o que é breve e passa | |
sem deixar vestígio. | |
Mãe, na sua graça, | |
é eternidade. | |
Por que Deus se lembra | |
- mistério profundo - | |
de tirá-la um dia? | |
Fosse eu Rei do Mundo, | |
baixava uma lei: | |
Mãe não morre nunca, | |
mãe ficará sempre | |
junto de seu filho | |
e ele, velho embora, | |
será pequenino | |
feito grão de milho. | |
" | |
Clarice Lispector,"Mas há a vida | |
Mas há a vida | |
que é para ser | |
intensamente vivida, há o amor. | |
Que tem que ser vivido | |
até a última gota. | |
Sem nenhum medo. | |
Não mata. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Soneto de Fidelidade | |
De tudo, ao meu amor serei atento | |
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto | |
que mesmo em face do maior encanto | |
Dele se encante mais meu pensamento. | |
Quero vivê-lo em cada vão momento | |
E em seu louvor hei de espalhar meu canto | |
E rir meu riso e derramar meu pranto | |
Ao seu pesar ou seu contentamento. | |
E assim, quando mais tarde me procure | |
Quem sabe a morte, angústia de quem vive | |
Quem sabe a solidão, fim de quem ama | |
Eu possa me dizer do amor (que tive): | |
Que não seja imortal, posto que é chama | |
Mas que seja infinito enquanto dure." | |
Gonçalves Dias,"O Canto do Piaga | |
I | |
O' Guerreiros da Taba sagrada, | |
O' Guerreiros da Tribo Tupi, | |
Falam Deuses nos cantos do Piaga, | |
O' Guerreiros, meus cantos ouvi. | |
Esta noite — era a lua já morta — | |
Anhangá me vedava sonhar; | |
Eis na horrível caverna, que habito, | |
Rouca voz começou-me a chamar. | |
Abro os olhos, inquieto, medroso, | |
Manitôs! que prodígios que vi! | |
Arde o pau de resina fumosa, | |
Não fui eu, não fui eu, que o acendi! | |
Eis rebenta a meus pés um fantasma, | |
Um fantasma d'imensa extensão; | |
Liso crânio repousa a meu lado, | |
Feia cobra se enrosca no chão. | |
O meu sangue gelou-se nas veias, | |
Todo inteiro — ossos, carnes — tremi, | |
Frio horror me coou pelos membros, | |
Frio vento no rosto senti. | |
Era feio, medonho, tremendo, | |
O' Guerreiros, o espectro que eu vi. | |
Falam Deuses nos cantos do Piaga, | |
O' Guerreiros, meus cantos ouvi! | |
II | |
Porque dormes, ó Piaga divino? | |
Começou-me a Visão a falar, | |
Porque dormes? O sacro instrumento | |
De per si já começa a vibrar. | |
Tu não viste nos céus um negrume | |
Toda a face do sol ofuscar; | |
Não ouviste a coruja, de dia, | |
Seus estrídulos torva soltar? | |
Tu não viste dos bosques a coma | |
Sem aragem – vergar-se a gemer, | |
Nem a lua de fogo entre nuvens, | |
Qual em vestes de sangue, nascer? | |
E tu dormes, ó Piaga divino! | |
E Anhangá te proíbe sonhar! | |
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes, | |
E não podes augúrios cantar?! | |
Ouve o anúncio do horrendo fantasma, | |
Ouve os sons do fiel Maracá; | |
Manitôs já fugiram da Taba! | |
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá! | |
III | |
Pelas ondas do mar sem limites | |
Basta selva, sem folhas, i vem; | |
Hartos troncos, robustos, gigantes; | |
Vossas matas tais monstros contêm. | |
Traz embira dos cimos pendente | |
– Brenha espessa de vário cipó – | |
Dessas brenhas contêm vossas matas, | |
Tais e quais, mas com folhas; e só! | |
Negro monstro os sustenta por baixo, | |
Brancas asas abrindo ao tufão, | |
Como um bando de cândidas garças, | |
Que nos ares pairando – lá vão. | |
Oh! quem foi das entranhas das águas, | |
O marinho arcabouço arrancar? | |
Nossas terras demanda, fareja... | |
Esse monstro... – o que vem cá buscar? | |
Não sabeis o que o monstro procura? | |
Não sabeis a que vem, o que quer? | |
Vem matar vossos bravos guerreiros, | |
Vem roubar-vos a filha, a mulher! | |
Vem trazer-vos crueza, impiedade — | |
Dons cruéis do cruel Anhangá; | |
Vem quebrar-vos a maça valente, | |
Profanar Manitôs, Maracás. | |
Vem trazer-vos algemas pesadas, | |
Com que a tribo Tupi vai gemer; | |
Hão de os velhos servirem de escravos, | |
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser! | |
Fugireis procurando um asilo, | |
Triste asilo por ínvio sertão; | |
Anhangá de prazer há de rir-se, | |
Vendo os vossos quão poucos serão. | |
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura, | |
Susta as iras do fero Anhangá. | |
Manitôs já fugiram da Taba, | |
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá! | |
Publicado no livro Primeiros Cantos (1846). Poema integrante da série Poesias Americanas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.1. p. 49" | |
Cecília Meireles,"Mulher ao espelho | |
Hoje que seja esta ou aquela, | |
pouco me importa. | |
Quero apenas parecer bela, | |
pois, seja qual for, estou morta. | |
Já fui loura, já fui morena, | |
já fui Margarida e Beatriz. | |
Já fui Maria e Madalena. | |
Só não pude ser como quis. | |
Que mal faz, esta cor fingida | |
do meu cabelo, e do meu rosto, | |
se tudo é tinta: o mundo, a vida, | |
o contentamento, o desgosto? | |
Por fora, serei como queira | |
a moda, que me vai matando. | |
Que me levem pele e caveira | |
ao nada, não me importa quando. | |
Mas quem viu, tão dilacerados, | |
olhos, braços e sonhos seus | |
e morreu pelos seus pecados, | |
falará com Deus. | |
Falará, coberta de luzes, | |
do alto penteado ao rubro artelho. | |
Porque uns expiram sobre cruzes, | |
outros, buscando-se no espelho. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Lagoa | |
Eu não vi o mar. | |
Não sei se o mar é bonito, | |
não sei se ele é bravo. | |
O mar não me importa. | |
Eu vi a lagoa. | |
A lagoa, sim. | |
A lagoa é grande | |
E calma também. | |
Na chuva de cores | |
da tarde que explode | |
a lagoa brilha | |
a lagoa se pinta | |
de todas as cores. | |
Eu não vi o mar.Eu vi a lagoa... | |
" | |
José Craveirinha,"Reza, Maria | |
Suam no trabalho as curvadas bestas | |
e não são bestas | |
são homens, Maria! | |
Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos | |
e não são cães | |
são seres humanos, Maria! | |
Feras matam velhos, mulheres e crianças | |
e não são feras, são homens | |
e os velhos, as mulheres e as crianças | |
são os nossos pais | |
nossas irmãs e nossos filhos, Maria! | |
Crias morrem á míngua de pão | |
vermes na rua estendem a mão a caridade | |
e nem crias nem vermes são | |
mas aleijados meninos sem casa, Maria! | |
Do ódio e da guerra dos homens | |
das mães e das filhas violadas | |
das crianças mortas de anemia | |
e de todos os que apodrecem nos calabouços | |
cresce no mundo o girassol da esperança | |
Ah! Maria | |
põe as mãos e reza. | |
Pelos homens todos | |
e negros de toda a parte | |
põe as mãos | |
e reza, Maria!" | |
Miguel Torga,"Mãe | |
S. Martinho de Anta, 1 de Junho | |
Mãe: | |
Que desgraça na vida aconteceu, | |
Que ficaste insensível e gelada? | |
Que todo o teu perfil se endureceu | |
Numa linha severa e desenhada? | |
Como as estátuas, que são gente nossa | |
Cansada de palavras e ternura, | |
Assim tu me pareces no teu leito. | |
Presença cinzelada em pedra dura, | |
que não tem coração dentro do peito. | |
Chamo aos gritos por ti - não me respondes. | |
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio. | |
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes | |
Por detrás do terror deste vazio. | |
Mãe: | |
Abre os olhos ao menos, diz que sim! | |
Diz que me vês ainda, que me queres. | |
Que és a eterna mulher entre as mulheres. | |
Que nem a morte te afastou de mim! | |
" | |
Vladimir Maiakovski,"O Amor | |
Um dia, quem sabe,ela, que também gostava de bichos,apareçanuma alameda do zôo,sorridente,tal como agora estáno retrato sobre a mesa.Ela é tão bela,que, por certo, hão de ressuscitá-la.Vosso Trigésimo Séculoultrapassará o examede mil nadas,que dilaceravam o coração.Então,de todo amor não terminadoseremos pagosem inumeráveis noites de estrelas.Ressuscita-me,nem que seja só porque te esperavacomo um poeta,repelindo o absurdo quotidiano!Ressuscita-me,nem que seja só por isso!Ressuscita-me!Quero viver até o fim o que me cabe!Para que o amor não seja mais escravode casamentos,concupiscência,salários.Para que, maldizendo os leitos,saltando dos coxins,o amor se vá pelo universo inteiro.Para que o dia,que o sofrimento degrada,não vos seja chorado, mendigado.E que, ao primeiro apelo:– Camaradas!Atenta se volte a terra inteira.Para viverlivre dos nichos das casas.Para que doravantea família sejao pai,pelo menos o Universo,a mãe,pelo menos a Terra." | |
Manuel Bandeira,"CONSOADA | |
CONSOADA | |
Quando a Indesejada das gentes chegar | |
(Não sei se dura ou caroável), | |
Talvez eu tenha medo. | |
Talvez sorria, ou diga: | |
- Alô, iniludível! | |
O meu dia foi bom, pode a noite descer. | |
(A noite com seus sortilégios.) | |
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, | |
A mesa posta, | |
Com cada coisa em seu lugar. | |
" | |
Pablo Neruda,"A Dança | |
Não te amo como se fosses uma rosa ou um topázio | |
Ou a flecha de cravos, que o fogo lança. | |
Amo-te como certas coisas escuras devem ser amadas, | |
Em segredo, entre a sombra e a alma. | |
Amo-te como a planta que não floresce e carrega, | |
Escondida dentro de si, a luz de todas as flores. | |
E, graças ao teu amor, escura no meu corpo | |
Vive a densa fragrância que cresce da terra. | |
Amo-te sem saber como ou quando ou de onde. | |
Amo-te tal como és, sem complexos nem orgulhos. | |
Amo-te assim porque não sei outro caminho além deste | |
Onde não existo eu nem tu. | |
Tão perto que a tua mão no meu peito é a minha mão. | |
Tão perto que, quando fechas os olhos, adormeço." | |
Manuel Bandeira,"NEOLOGISMO | |
Beijo pouco, falo menos ainda | |
Mas, invento palavras | |
Que traduzem a ternura mais funda | |
E mais cotidiana | |
Inventei, por exemplo o verbo teadorar | |
Intransitivo; | |
Teadoro, Teodora | |
" | |
Luís de Camões,"Verdes são os campos | |
Verdes são os campos, | |
De cor de limão: | |
Assim são os olhos | |
Do meu coração. | |
Campo, que te estendes | |
Com verdura bela; | |
Ovelhas, que nela | |
Vosso pasto tendes, | |
De ervas vos mantendes | |
Que traz o Verão, | |
E eu das lembranças | |
Do meu coração. | |
Gado que pasceis | |
Com contentamento, | |
Vosso mantimento | |
Não no entendereis, | |
Isso que comeis | |
Não são ervas, não: | |
São graças dos olhos | |
Do meu coração. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Poema Enjoadinho | |
Filhos | |
... Filhos? | |
Melhor não tê-los! | |
Mas se não os temos | |
Como sabê-lo? | |
Se não os temos | |
Que de consulta | |
Quanto silêncio | |
Como os queremos! | |
Banho de mar | |
Diz que é um porrete ... | |
Cônjuge voa | |
Transpõe o espaço | |
Engole água | |
Fica salgada | |
Se iodifica | |
Depois que boa | |
Que morenaço | |
Que a esposa fica! | |
Resultado: filhos. | |
E então começa | |
A aporrinhação: | |
Cocô está branco | |
Cocô está preto | |
Bebe amoníaco | |
Comeu botão. | |
Filhos? Filhos | |
Melhor não tê-los | |
Noites de insônia | |
Cãs prematuras | |
Prantos convulsos | |
Meu Deus, salvai-o! | |
Filhos são o demo | |
Melhor não tê-los ... | |
Mas se não os temos | |
Como sabê-los? | |
Como saber | |
Que maciez | |
Nos seus cabelos | |
Que cheiro morno | |
Na sua carne | |
Que gosto doce | |
Na sua boca! | |
Chupam gilete | |
Bebem xampu | |
Ateiam fogo | |
No quarteirão | |
Porém, que coisa | |
Que coisa louca | |
Que coisa linda | |
Que os filhos são! | |
" | |
Gonçalves Dias,"Pedido | |
Ontem no baile | |
Não me atendias! | |
Não me atendias, | |
Quando eu falava. | |
De mim bem longe | |
Teu pensamento! | |
Teu pensamento, | |
Bem longe errava. | |
Eu vi teus olhos | |
Sobre outros olhos! | |
Sobre outros olhos, | |
Que eu odiava. | |
Tu lhe sorriste | |
Com tal sorriso! | |
Com tal sorriso, | |
Que apunhalava. | |
Tu lhe falaste | |
Com voz tão doce! | |
Com voz tão doce, | |
Que me matava. | |
Oh! não lhe fales, | |
Não lhe sorrias, | |
Se então só qu'rias | |
Exp'rimentar-me. | |
Oh! não lhe fales, | |
Não lhe sorrias, | |
Não lhe sorrias, | |
Que era matar-me. | |
Publicado no livro Primeiros Cantos (1846). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Cecília Meireles,"Pássaro | |
Aquilo que ontem cantava | |
já não canta. | |
Morreu de uma flor na boca: | |
não do espinho na garganta. | |
Ele amava a água sem sede, | |
e, em verdade, | |
tendo asas, fitava o tempo, | |
livre de necessidade. | |
Não foi desejo ou imprudência: | |
não foi nada. | |
E o dia toca em silêncio | |
a desventura causada. | |
Se acaso isso é desventura: | |
ir-se a vida | |
sobre uma rosa tão bela, | |
por uma tênue ferida. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Irene no céu | |
Irene preta | |
Irene boa | |
Irene sempre de bom humor. | |
Imagino Irene entrando no céu: | |
— Licença, meu branco! | |
E São Pedro bonachão: | |
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Amor e seu tempo | |
Amor é privilégio de maduros | |
estendidos na mais estreita cama, | |
que se torna a mais larga e mais relvosa, | |
roçando, em cada poro, o céu do corpo. | |
É isto, amor: o ganho não previsto, | |
o prêmio subterrâneo e coruscante, | |
leitura de relâmpago cifrado, | |
que, decifrado, nada mais existe | |
valendo a pena e o preço terrestre, | |
salvo o minuto de ouro no relógio | |
minúsculo, vibrando no crepúsculo. | |
Amor é o que se aprende no limite, | |
depois de se arquivar toda a ciência | |
herdada, ouvida. Amor começa tarde." | |
Gonçalves de Magalhães,"O Louco do Cemitério: Poema Romântico em Seis Cantos - Canto I: O Coveiro | |
(...) | |
""Vivo co'os mortos, | |
Na cova os ponho, | |
Entre eles durmo, | |
Com eles sonho. | |
Quantos defuntos | |
Já enterrei! | |
Defunto eu mesmo | |
Também serei. | |
No pão que como, | |
No ar que respiro, | |
Na água que bebo, | |
A morte aspiro. | |
Já cheira a morto | |
O corpo meu. | |
Abre-te, oh terra, | |
Que serei teu. | |
Da morte o aspecto | |
Já não me assusta, | |
Que a vida ganho | |
Da morte à custa. | |
Sempre cavando | |
Sem descansar, | |
Vivo enterrado, | |
Para enterrar. | |
Um dia, ou outro, | |
Cavando o fosso, | |
Co'o cheiro infecto, | |
Cair bem posso. | |
Agora mesmo | |
Posso cair!... | |
Não diz a morte | |
Quando há de vir. | |
Mas os que folgam | |
Na excelsa Corte | |
Não estão mais longe | |
Das mãos da morte. | |
Cá os espera | |
A minha pá... | |
O que foi terra, | |
Terra será. | |
Quantos lá vivem | |
Nessa cidade | |
Aqui têm todos | |
Segura herdade. | |
Ricos e pobres, | |
Todos virão, | |
Dormir no leito | |
Da podridão. | |
Ternos amantes, | |
Pais extremosos, | |
Esposos caros, | |
Filhos saudosos, | |
Vêde o que resta | |
Do vosso amor: | |
Podre cadáver, | |
Que causa horror! | |
(...) | |
Publicado no livro Cânticos Fúnebres (1864). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Pablo Neruda,"Poema 14 | |
Brincas todos os dias com a luz do Universo.Subtil visitadora, chegas na flor e na água.És mais do que a pequena cabeça branca que apertocomo um cacho entre as mãos todos os dias.Com ninguém te pareces desde que eu te amo.Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.Quem escreve o teu nome com letras de fumoentre as estrelas do sul?Ah, deixa-me lembrar como eras então,quando ainda não existias.Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.Aqui despe-se a chuva.Passam fugindo os pássaros.O vento. O vento.Eu só posso lutar contra a força dos homens.O temporal amontoa folhas escurase solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.Tu estás aqui. Ah tu não foges.Tu responder-me-ás até ao último grito.Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.Porém mais que uma vez correu uma sombra estranhapelos teus olhos.Agora, agora também pequena, trazes-me madressilva,e tens até os seios perfumados.Enquanto o vento triste galopa matando borboletaseu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.Quanto te haverá doído acostumares-te a mim,à minha alma selvagem e só,ao meu nome que todos escorraçam.Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhose sobre as nossas cabeças destorcem-se os crepúsculosem leques rodopiantes.As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.Creio-te mesmo dona do Universo.Vou trazer-te das montanhas flores alegres, ""copihues"",avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.Quero fazer contigoo que a primavera faz com as cerejeiras." | |
Gonçalves Dias,"Que me Pedes | |
Tu pedes-me um canto na lira de amores, | |
Um canto singelo de meigo trovar?! | |
Um canto fagueiro já — triste — não pode | |
Na lira do triste fazer-se escutar. | |
Outrora, coberto meu leito de flores, | |
Um canto singelo já soube trovar; | |
Mas hoje na lira, que o pranto umedece, | |
As notas d'outrora não posso encontrar! | |
Outrora os ardores que eu tinha no peito | |
Em cantos singelos podia trovar; | |
Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me, | |
Mas hoje, traído, como hei de cantar? | |
Não peças ao bardo, que aflito suspira, | |
Uns cantos alegres de meigo trovar; | |
À lira quebrada só restam gemidos, | |
Ao bardo traído só resta chorar. | |
Publicado no livro Últimos Cantos (1851). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Carlos Drummond de Andrade,"AMAR | |
Que pode uma criatura senão, | |
entre criaturas, amar? | |
amar e esquecer, amar e malamar, | |
amar, desamar, amar? | |
sempre, e até de olhos vidrados, amar? | |
Que pode, pergunto, o ser amoroso, | |
sozinho, em rotação universal, | |
senão rodar também, e amar? | |
amar o que o mar traz à praia, | |
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, | |
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? | |
Amar solenemente as palmas do deserto, | |
o que é entrega ou adoração expectante, | |
e amar o inóspito, o cru, | |
um vaso sem flor, um chão de ferro, | |
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e | |
uma ave de rapina. | |
Este o nosso destino: amor sem conta, | |
distribuido pelas coisas pérfidas ou nulas, | |
doação ilimitada a uma completa ingratidão, | |
e na concha vazia do amor a procura medrosa, | |
paciente, de mais e mais amor. | |
Amar a nossa falta mesma de amor, | |
e na secura nossa amar a água implícita, | |
e o beijo tácito, e a sede infinita. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"RECONHECIMENTO DO AMOR | |
Amiga, como são desnorteantes | |
Os caminhos da amizade. | |
Apareceste para ser o ombro suave | |
Onde se reclina a inquietação do forte | |
(Ou que forte se pensa ingenuamente). | |
Trazias nos olhos pensativos | |
A bruma da renúncia: | |
Não queiras a vida plena, | |
Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida, | |
Não pedias nada, | |
Não reclamavas teu quinhão de luz. | |
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda. | |
Descansei em ti meu feixe de desencontros | |
E de encontros funestos. | |
Queria talvez - sem o perceber, juro - | |
Sadicamente massacrar-se | |
Sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam | |
Desde a hora do nascimento, | |
Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido | |
na História, | |
Ou mais longe, desde aquele momento intemporal | |
Em que os seres são apenas hipóteses não formuladas | |
No caos universal | |
Como nos enganamos fugindo ao amor! | |
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar | |
Sua espada coruscante, seu formidável | |
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir | |
Uma orquídea de fogo e lágrimas. | |
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu | |
Em doçura e celestes amavios. | |
Não queimava, não siderava; sorria. | |
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso. | |
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor | |
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam | |
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro, | |
O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava, | |
Quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só. | |
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor | |
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo | |
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas. | |
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos, | |
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa | |
Alegorias, circunstâncias, referências temporais, | |
Imaginações oníricas, | |
O vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal, | |
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos, | |
Todas as imposturas da razão e da experiência, | |
Para existir em si e por si, | |
À revelia de corpos amantes, | |
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM. | |
Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse | |
à vacuidade de persistir, fixo e solar, | |
E se confessasse jubilosamente vencido, | |
Até respirar o júbilo maior da integração. | |
Agora, amada minha para sempre, | |
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar | |
A melodia, a paisagem, a transparência da vida, | |
Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Política Literária | |
A Manuel Bandeira | |
O poeta municipal | |
discute com o poeta estadual | |
qual deles é capaz de bater o poeta federal. | |
Enquanto isso o poeta federal. | |
tira ouro do nariz. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Além da Terra, Além do Céu | |
Além da terra, além do céu | |
no trampolim do sem-fim das estrelas, | |
no rastros dos astros, | |
na magnólia das nebulosas. | |
Além, muito além do sistema solar | |
até onde alcançam o pensamento e o coração, | |
vamos! | |
vamos conjugar | |
o verbo fudamental essencial | |
o verbo transcendente, acima das gramáticas | |
e do medo e da moeda e da política, | |
o verbo sempreamar | |
o verbo pluriamar, | |
razão de ser e viver. | |
" | |
Miguel Torga,"Segredo | |
Sei um ninho | |
e o ninho tem um ovo; | |
e o ovo, redondinho, | |
tem lá dentro um passarinho novo. | |
Mas escusas de me tentar: | |
nem o tiro nem o ensino; | |
quero ser um bom menino, | |
e guardar | |
este segredo comigo, | |
e ter depois um amigo | |
que faça o pino | |
a voar. | |
" | |
Cecília Meireles,"Canção | |
Pus o meu sonho num navio | |
e o navio em cima do mar; | |
- depois, abri o mar com as mãos, | |
para o meu sonho naufragar | |
Minhas mãos ainda estão molhadas | |
do azul das ondas entreabertas, | |
e a cor que escorre de meus dedos | |
colore as areias desertas. | |
O vento vem vindo de longe, | |
a noite se curva de frio; | |
debaixo da água vai morrendo | |
meu sonho, dentro de um navio... | |
Chorarei quanto for preciso, | |
para fazer com que o mar cresça, | |
e o meu navio chegue ao fundo | |
e o meu sonho desapareça. | |
Depois, tudo estará perfeito; | |
praia lisa, águas ordenadas, | |
meus olhos secos como pedras | |
e as minhas duas mãos quebradas. | |
" | |
Cecília Meireles,"O Cavalinho Branco | |
À tarde, o cavalinho branco | |
está muito cansado: | |
mas há um pedacinho do campo | |
onde é sempre feriado. | |
O cavalo sacode a crina | |
loura e comprida | |
e nas verdes ervas atira | |
sua branca vida. | |
Seu relincho estremece as raízes | |
e ele ensina aos ventos | |
a alegria de sentir livres | |
seus movimentos. | |
Trabalhou todo o dia, tanto! | |
desde a madrugada! | |
Descansa entre as flores, cavalinho branco, | |
de crina dourada! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Dia da Criação | |
Hoje é sábado, amanhã é domingo | |
A vida vem em ondas, como o mar | |
Os bondes andam em cima dos trilhos | |
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar. | |
Hoje é sábado, amanhã é domingo | |
Não há nada como o tempo para passar | |
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo | |
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. | |
Hoje é sábado, amanhã é domingo | |
Amanhã não gosta de ver ninguém bem | |
Hoje é que é o dia do presente | |
O dia é sábado. | |
Impossível fugir a essa dura realidade | |
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios | |
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas | |
Todos os maridos estão funcionando regularmente | |
Todas as mulheres estão atentas | |
Porque hoje é sábado. | |
II | |
Neste | |
momento há um casamento | |
Porque hoje é sábado | |
Hoje há um divórcio e um violamento | |
Porque hoje é sábado | |
Há um rico que se mata | |
Porque hoje é sábado | |
Há um incesto e uma regata | |
Porque hoje é sábado | |
Há um espetáculo de gala | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma mulher que apanha e cala | |
Porque hoje é sábado | |
Há um renovar-se de esperanças | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma profunda discordância | |
Porque hoje é sábado | |
Há um sedutor que tomba morto | |
Porque hoje é sábado | |
Há um grande espírito-de-porco | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma mulher que vira homem | |
Porque hoje é sábado | |
Há criançinhas que não comem | |
Porque hoje é sábado | |
Há um piquenique de políticos | |
Porque hoje é sábado | |
Há um grande acréscimo de sífilis | |
Porque hoje é sábado | |
Há um ariano e uma mulata | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma tensão inusitada | |
Porque hoje é sábado | |
Há adolescências seminuas | |
Porque hoje é sábado | |
Há um vampiro pelas ruas | |
Porque hoje é sábado | |
Há um grande aumento no consumo | |
Porque hoje é sábado | |
Há um noivo louco de ciúmes | |
Porque hoje é sábado | |
Há um garden-party na cadeia | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma impassível lua cheia | |
Porque hoje é sábado | |
Há damas de todas as classes | |
Porque hoje é sábado | |
Umas difíceis, outras fáceis | |
Porque hoje é sábado | |
Há um beber e um dar sem conta | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma infeliz que vai de tonta | |
Porque hoje é sábado | |
Há um padre passeando à paisana | |
Porque hoje é sábado | |
Há um frenesi de dar banana | |
Porque hoje é sábado | |
Há a sensação angustiante | |
Porque hoje é sábado | |
De uma mulher dentro de um homem | |
Porque hoje é sábado | |
Há uma comemoração fantástica | |
Porque hoje é sábado | |
Da primeira cirurgia plástica | |
Porque hoje é sábado | |
E dando os trâmites por findos | |
Porque hoje é sábado | |
Há a perspectiva do domingo | |
Porque hoje é Sábado | |
III | |
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, | |
ó Sexto Dia da Criação. | |
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e | |
trevas | |
E depois, da separação das águas, e depois, da | |
fecundação da terra | |
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra | |
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. | |
Na verdade, o homem não era necessário | |
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como | |
as plantas, imovelmente e nunca saciada | |
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. | |
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos | |
dias | |
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa | |
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos | |
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas | |
cósmicas | |
em queda invisível na | |
terra. | |
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos | |
peixes | |
ão seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão | |
nosso de cada dia | |
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos | |
a mulher do próximo | |
Não teríamos escola, serviço militar, casamento | |
civil, imposto sobre a renda | |
e missa de sétimo dia. | |
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras | |
e das | |
águas em núpcias | |
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio | |
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. | |
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente | |
dogmáticos | |
Precisamos encarar o problema das colocações morais e | |
estéticas | |
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar | |
amor sem vontade | |
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia | |
e sim no Sétimo | |
E para não ficar com as vastas mãos abanando | |
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança | |
Possivelmente, isto é, muito provavelmente | |
Porque era sábado." | |
Álvares de Azevedo,"Lembrança de Morrer | |
No more! o never more! | |
SHELLEY. | |
Quando em meu peito rebentar-se a fibra | |
Que o espírito enlaça à dor vivente, | |
Não derramem por mim nem uma lágrima | |
Em pálpebra demente. | |
E nem desfolhem na matéria impura | |
A flor do vale que adormece ao vento: | |
Não quero que uma nota de alegria | |
Se cale por meu triste passamento. | |
Eu deixo a vida como deixa o tédio | |
Do deserto, o poento caminheiro | |
— Como as horas de um longo pesadelo | |
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; | |
Como o desterro de minh'alma errante, | |
Onde fogo insensato a consumia: | |
Só levo uma saudade — é desses tempos | |
Que amorosa ilusão embelecia. | |
Só levo uma saudade — é dessas sombras | |
Que eu sentia velar nas noites minhas... | |
De ti, ó minha mãe, pobre coitada | |
Que por minha tristeza te definhas! | |
De meu pai... de meus únicos amigos, | |
Poucos — bem poucos — e que não zombavam | |
Quando, em noite de febre endoudecido, | |
Minhas pálidas crenças duvidavam. | |
Se uma lágrima as pálpebras me inunda, | |
Se um suspiro nos seios treme ainda | |
É pela virgem que sonhei... que nunca | |
Aos lábios me encostou a face linda! | |
Só tu à mocidade sonhadora | |
Do pálido poeta deste flores... | |
Se viveu, foi por ti! e de esperança | |
De na vida gozar de teus amores. | |
Beijarei a verdade santa e nua, | |
Verei cristalizar-se o sonho amigo.... | |
Ó minha virgem dos errantes sonhos, | |
Filha do céu, eu vou amar contigo! | |
Descansem o meu leito solitário | |
Na floresta dos homens esquecida, | |
À sombra de uma cruz, e escrevam nelas | |
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.— | |
Sombras do vale, noites da montanha | |
Que minh'alma cantou e amava tanto, | |
Protegei o meu corpo abandonado, | |
E no silêncio derramai-lhe canto! | |
Mas quando preludia ave d'aurora | |
E quando à meia-noite o céu repousa, | |
Arvoredos do bosque, abri os ramos... | |
Deixai a lua prantear-me a lousa! | |
Imagem - 00280001 | |
Publicado no livro Poesias de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1853). Poema integrante da série Primeira Parte. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Castro Alves,"O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (IV) | |
Era um sonho dantesco... O tombadilho | |
Que das luzernas avermelha o brilho, | |
Em sangue a se banhar. | |
Tinir de ferros... estalar do açoite... | |
Legiões de homens negros como a noite, | |
Horrendos a dançar... | |
Negras mulheres, suspendendo às tetas | |
Magras crianças, cujas bocas pretas | |
Rega o sangue das mães: | |
Outras, moças... mas nuas, espantadas, | |
No turbilhão de espectros arrastadas, | |
Em ânsia e mágoa vãs. | |
E ri-se a orquestra, irônica, estridente... | |
E da ronda fantástica a serpente | |
Faz doudas espirais... | |
Se o velho arqueja... se no chão resvala, | |
Ouvem-se gritos... o chicote estala. | |
E voam mais e mais... | |
Presa nos elos de uma só cadeia, | |
A multidão faminta cambaleia, | |
E chora e dança ali! | |
............................................ | |
Um de raiva delira, outro enlouquece... | |
Outro, que de martírios embrutece, | |
Cantando, geme e ri! | |
No entanto o capitão manda a manobra | |
E após, fitando o céu que se desdobra | |
Tão puro sobre o mar, | |
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: | |
""Vibrai rijo o chicote, marinheiros! | |
Fazei-os mais dançar!..."" | |
E ri-se a orquestra irônica, estridente... | |
E da roda fantástica a serpente | |
Faz doudas espirais! | |
Qual num sonho dantesco as sombras voam... | |
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! | |
E ri-se Satanás!... | |
Publicado no livro A cachoeira de Paulo Afonso: poema original brasileiro (1876). | |
In: ALVES, Castro. Obra completa. Org. e notas Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 198" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poema-orelha | |
Esta é a orelha do livro | |
por onde o poeta escuta | |
se delem falam mal | |
ou se o amam. | |
Uma orelha ou uma boca | |
sequiosa de palavras? | |
São oito livros velhos | |
e mais um livro novo | |
de um poeta ainda mais velho | |
que a vida viveu | |
e contudo provoca | |
a viver sempre e nunca. | |
Oito livros que o tempo | |
empurrou para longe | |
de mim | |
mais um livro sem tempo | |
em que o poeta se contempla | |
e se diz boa-tarde | |
(ensaio de bom-noite, | |
variante de bom-dia, | |
que tudo é o vasto dia | |
em seus compartimentos | |
nem sempre respiráveis | |
e todos habitados | |
enfim.) | |
Não me leias se buscas | |
flamante novidade | |
ou sopro de Camões. | |
Aquilo que revelo | |
e o mais que segue oculto | |
em vítreos alçapões | |
são notícias humanas, | |
simples estar-no-mundo, | |
e brincos de palavra, | |
um não-estar-estando, | |
mas que tal jeito urdidos | |
o jogo e a confissão | |
que nem ditongo eu mesmo | |
o vivido e o inventado. | |
Tudo vivido? Nada. | |
Nada vivido? Tudo. | |
A orelha pouco explica | |
de cuidados terrenos; | |
e a poesia mais rica | |
é um sinal de menos. | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"A Mulher e a Casa | |
Tua sedução é menos | |
de mulher do que de casa: | |
pois vem de como é por dentro | |
ou por detrás da fachada. | |
Mesmo quando ela possui | |
tua plácida elegância, | |
esse teu reboco claro, | |
riso franco de varandas, | |
uma casa não é nunca | |
só para ser contemplada; | |
melhor: somente por dentro | |
é possível contemplá-la. | |
Seduz pelo que é dentro, | |
ou será, quando se abra; | |
pelo que pode ser dentro | |
de suas paredes fechadas; | |
pelo que dentro fizeram | |
com seus vazios, com o nada; | |
pelos espaços de dentro, | |
não pelo que dentro guarda; | |
pelos espaços de dentro: | |
seus recintos, suas áreas, | |
organizando-se dentro | |
em corredores e salas, | |
os quais sugerindo ao homem | |
estâncias aconchegadas, | |
paredes bem revestidas | |
ou recessos bons de cavas, | |
exercem sobre esse homem | |
efeito igual ao que causas: | |
a vontade de corrê-la | |
por dentro, de visitá-la. | |
Publicado no livro Quaderna (1960). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.241-242. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Eugénio de Andrade,"O Silêncio | |
Quando a ternura | |
parece já do seu ofício fatigada, | |
e o sono, a mais incerta barca, | |
inda demora, | |
quando azuis irrompem | |
os teus olhos | |
e procuram | |
nos meus navegação segura, | |
é que eu te falo das palavras | |
desamparadas e desertas, | |
pelo silêncio fascinadas | |
" | |
Florbela Espanca,"Amar! | |
Eu quero amar, amar perdidamente! | |
Amar só por amar: Aqui... além... | |
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente | |
Amar! Amar! E não amar ninguém! | |
Recordar? Esquecer? Indiferente!... | |
Prender ou desprender? É mal? É bem? | |
Quem disser que se pode amar alguém | |
Durante a vida inteira é porque mente! | |
Há uma Primavera em cada vida: | |
É preciso cantá-la assim florida, | |
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! | |
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada | |
Que seja a minha noite uma alvorada, | |
Que me saiba perder... pra me encontrar..." | |
Augusto dos Anjos,"Budismo Moderno | |
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte | |
Minha singularíssima pessoa. | |
Que importa a mim que a bicharia roa | |
Todo o meu coração, depois da morte?! | |
Ah! Um urubu pousou na minha sorte! | |
Também, das diatomáceas da lagoa | |
A criptógama cápsula se esbroa | |
Ao contacto de bronca dextra forte! | |
Dissolva-se, portanto, minha vida | |
Igualmente a uma célula caída | |
Na aberração de um óvulo infecundo; | |
Mas o agregado abstrato das saudades | |
Fique batendo nas perpétuas grades | |
Do último verso que eu fizer no mundo! | |
Paraíba, 1909 | |
Publicado no livro Eu (1912). | |
In: REIS, Zenir Campos. Augusto dos Anjos: poesia e prosa. São Paulo: Ática, 1977. p.84. (Ensaios, 32" | |
Fernando Pessoa,"ISTO | |
Dizem que finjo ou minto | |
Tudo que escrevo. Não. | |
Eu simplesmente sinto | |
Com a imaginação. | |
Não uso o coração. | |
Tudo o que sonho ou passo, | |
O que me falha ou finda, | |
É como que um terraço | |
Sobre outra coisa ainda. | |
Essa coisa é que é linda. | |
Por isso escrevo em meio | |
Do que não está de pé, | |
Livre do meu enleio, | |
Sério do que não é. | |
Sentir? Sinta quem lê! | |
" | |
Casimiro de Abreu,"A Valsa | |
A M.*** | |
Tu, ontem, | |
Na dança | |
Que cansa, | |
Voavas | |
Co'as faces | |
Em rosas | |
Formosas | |
De vivo, | |
Lascivo | |
Carmim; | |
Na valsa | |
Tão falsa, | |
Corrias, | |
Fugias, | |
Ardente, | |
Contente, | |
Tranquila, | |
Serena, | |
Sem pena | |
De mim! | |
Quem dera | |
Que sintas | |
As dores | |
De amores | |
Que louco | |
Senti! | |
Quem dera | |
Que sintas!... | |
— Não negues, | |
Não mintas... | |
— Eu vi!... | |
(...) | |
Calado | |
Sozinho, | |
Mesquinho, | |
Em zelos | |
Ardendo, | |
Eu vi-te | |
Correndo | |
Tão falsa | |
Na valsa | |
Veloz! | |
Eu triste | |
Vi tudo! | |
Mas mudo | |
Não tive | |
Nas galas | |
Das salas, | |
Nem falas, | |
Nem cantos, | |
Nem prantos, | |
Nem voz! | |
Quem dera | |
Que sintas | |
As dores | |
De amores | |
Que louco | |
Senti! | |
Quem dera | |
Que sintas!... | |
— Não negues, | |
Não mintas... | |
— Eu vi!... | |
(...) | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro II. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Igreja | |
Tijolo | |
areia | |
andaime | |
água | |
tijolo. | |
O canto dos homens trabalhando trabalhando | |
mais perto do céu | |
cada vez mais perto | |
mais | |
- a torre. | |
E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações. | |
O padre que fala do inferno | |
sem nunca ter ido lá. | |
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos. | |
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida. | |
A manhã pintou-se de azul. | |
No adro ficou o ateu, | |
no alto fica Deus. | |
Domingo . . . | |
Bem bão! Bem bão! | |
Os serafins, no meio, entoam quirieleisão. | |
" | |
Florbela Espanca,"Eu | |
Eu sou a que no mundo anda perdida, | |
Eu sou a que na vida não tem norte, | |
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte | |
Sou a crucificada... a dolorida... | |
Sombra de névoa tênue e esvaecida, | |
E que o destino amargo, triste e forte, | |
Impele brutalmente para a morte! | |
Alma de luto sempre incompreendida!... | |
Sou aquela que passa e ninguém vê... | |
Sou a que chamam triste sem o ser... | |
Sou a que chora sem saber por quê... | |
Sou talvez a visão que Alguém sonhou, | |
Alguém que veio ao mundo pra me ver, | |
E que nunca na vida me encontrou! | |
" | |
Gregório de Matos,"Buscando a Cristo | |
A vós correndo vou, braços sagrados, | |
Nessa cruz sacrossanta descobertos | |
Que, para receber-me, estais abertos, | |
E, por não castigar-me, estais cravados. | |
A vós, divinos olhos, eclipsados | |
De tanto sangue e lágrimas abertos, | |
Pois, para perdoar-me, estais despertos, | |
E, por não condenar-me, estais fechados. | |
A vós, pregados pés, por não deixar-me, | |
A vós, sangue vertido, para ungir-me, | |
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me | |
A vós, lado patente, quero unir-me, | |
A vós, cravos preciosos, quero atar-me, | |
Para ficar unido, atado e firme. | |
" | |
Cecília Meireles,"Colar de Carolina | |
Para minha Carolina, que me fez | |
querer da vida o que ela tem de melhor. | |
Com seu colar de coral, | |
Carolina | |
corre por entre as colunas | |
da colina | |
O colar de Carolina | |
colore o colo de cal, | |
torna corada a menina. | |
E o sol, vendo aquela cor | |
do colar de Carolina, | |
põe coroas de coral | |
nas colunas da colina. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Evocação do Recife | |
Recife | |
Não a Veneza americana | |
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais | |
Não o Recife dos Mascates | |
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois | |
— Recife das revoluções libertárias | |
Mas o Recife sem história nem literatura | |
Recife sem mais nada | |
Recife da minha infância | |
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado | |
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas | |
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê | |
na ponta do nariz | |
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras | |
mexericos namoros risadas | |
A gente brincava no meio da rua | |
Os meninos gritavam: | |
Coelho sai! | |
Não sai! | |
A distância as vozes macias das meninas politonavam: | |
Roseira dá-me uma rosa | |
Craveiro dá-me um botão | |
(Dessas rosas muita rosa | |
Terá morrido em botão...) | |
De repente | |
nos longos da noite | |
um sino | |
Uma pessoa grande dizia: | |
Fogo em Santo Antônio! | |
Outra contrariava: São José! | |
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. | |
Os homens punham o chapéu saíam fumando | |
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo. | |
Rua da União... | |
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância | |
Rua do Sol | |
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) | |
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... | |
...onde se ia fumar escondido | |
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... | |
...onde se ia pescar escondido | |
Capiberibe | |
— Capiberibe | |
Lá longe o sertãozinho de Caxangá | |
Banheiros de palha | |
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho | |
Fiquei parado o coração batendo | |
Ela se riu | |
Foi o meu primeiro alumbramento | |
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu | |
E nos pegões da ponte do trem de ferro | |
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras | |
Novenas | |
Cavalhadas | |
E eu me deitei no colo da menina e ela começou | |
a passar a mão nos meus cabelos | |
Capiberibe | |
— Capiberibe | |
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas | |
Com o xale vistoso de pano da Costa | |
E o vendedor de roletes de cana | |
O de amendoim | |
que se chamava midubim e não era torrado era cozido | |
Me lembro de todos os pregões: | |
Ovos frescos e baratos | |
Dez ovos por uma pataca | |
Foi há muito tempo... | |
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros | |
Vinha da boca do povo na língua errada do povo | |
Língua certa do povo | |
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil | |
Ao passo que nós | |
O que fazemos | |
É macaquear | |
A sintaxe lusíada | |
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem | |
Terras que não sabia onde ficavam | |
Recife... | |
Rua da União... | |
A casa de meu avô... | |
Nunca pensei que ela acabasse! | |
Tudo lá parecia impregnado de eternidade | |
Recife... | |
Meu avô morto. | |
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro | |
como a casa de meu avô." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Hino Nacional | |
Precisamos descobrir o Brasil! | |
Escondido atrás as florestas, | |
com a água dos rios no meio, | |
o Brasil está dormindo, coitado. | |
Precisamos colonizar o Brasil. | |
O que faremos importando francesas | |
muito louras, de pele macia, | |
alemãs gordas, russas nostálgicas para | |
garçonettes dos restaurantes noturnos. | |
E virão sírias fidelíssimas. | |
Não convém desprezar as japonesas... | |
Precisamos educar o Brasil. | |
Compraremos professores e livros, | |
assimilaremos finas culturas, | |
abriremos dancings e subvencionaremos as elites. | |
Cada brasileiro terá sua casa | |
com fogão e aquecedor elétricos, piscina, | |
salão para conferências científicas. | |
E cuidaremos do Estado Técnico. | |
Precisamos louvar o Brasil. | |
Não é só um país sem igual. | |
Nossas revoluções são bem maiores | |
do que quaisquer outras; nossos erros também. | |
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... | |
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas... | |
Precisamos adorar o Brasil! | |
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, | |
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão | |
de seus sofrimentos. | |
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! | |
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, | |
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. | |
O Brasil não nos quer! Está farto de nós! | |
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. | |
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros? | |
Eduardo Alves da Costa | |
Quanto a mim, sonharei com Portugal | |
Às vezes, quando | |
estou triste e há silêncio | |
nos corredores e nas veias, | |
vem-me um desejo de voltar | |
a Portugal. Nunca lá estive, | |
é certo, como também | |
é certo meu coração, em dias tais, | |
ser um deserto. | |
" | |
Cecília Meireles,"Vôo | |
Alheias e nossas as palavras voam. | |
Bando de borboletas multicores, as palavras voam | |
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam. | |
Viam as palavras como águias imensas. | |
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam. | |
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em | |
redor de nós as palavras voam. | |
E às vezes pousam. | |
" | |
Ruy Belo,"Digam que foi mentira | |
Digam que foi mentira, que não sou ninguém, que atravesso apenas ruas da cidade abandonada fechada como boca onde não encontro nada: não encontro respostas para tudo o que pergunto nem na verdade pergunto coisas por aí além Eu não vivi ali em tempo algum" | |
Gonçalves de Magalhães,"Apólogo: O Carro e o Burro | |
Um touro, não amestrado | |
No exercício de carreiro, | |
Num falso passo que deu | |
Pôs o carro no lameiro. | |
Conhecendo esse embaraço, | |
Procurou sair de modo, | |
Que ao menos salvasse a vida, | |
Visto o carro estar no lodo. | |
Alguns animais, passando | |
No desastroso lugar, | |
Tentaram, mas não puderam | |
Do charco o carro tirar. | |
Até que um burro já velho, | |
Cheio de louca vaidade, | |
Cuidou ser esse o momento | |
De ganhar celebridade. | |
— A que vás lá? — Disse um desses | |
Que pastavam por aí: | |
Deixa vir quem disso entenda; | |
Que isso não é para ti. — | |
""Tu falas antes de tempo; | |
Disse o burro ao que o arguia: | |
Vou mostrar-te o quanto posso; | |
Muito alcança quem porfia."" | |
Vejam só o que é ser burro | |
Por instinto e natureza! | |
Não mediu as suas forças, | |
Nem viu do carro a grandeza. | |
Zurrando, e dando patadas, | |
Foi meter-se no atoleiro; | |
Entre os varais colocou-se, | |
E o pescoço pôs no apeiro. | |
Mas para fazer tais cousas | |
Foi necessário agachar-se; | |
Atolou-se até o ventre | |
Quando tentou levantar-se. | |
Como o terreno era fofo, | |
Tendo já mil voltas dado, | |
Tentou safar-se do jugo, | |
E o carro deitou de lado. | |
O pobre burro entre as varas | |
Virou de pernas para o ar; | |
Todo de lama coberto | |
Começou a espernear. | |
Isto aos burros acontece, | |
Que se esquecem do que são | |
E se não por nós responda | |
A geral opinião. | |
Quantos o carro do Estado | |
Querem guiar mui lampeiros, | |
E por trancos e barrancos, | |
Dão com ele em atoleiros? | |
Publicado no livro Poesias Avulsas (1864). Poema integrante da série Livro Segundo: Poesias Várias. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O tempo passa ? Não passa | |
O tempo passa? Não passa | |
no abismo do coração. | |
Lá dentro, perdura a graça | |
do amor, florindo em canção. | |
O tempo nos aproxima | |
cada vez mais, nos reduz | |
a um só verso e uma rima | |
de mãos e olhos, na luz. | |
Não há tempo consumido | |
nem tempo a economizar. | |
O tempo é todo vestido | |
de amor e tempo de amar. | |
O meu tempo e o teu, amada, | |
transcendem qualquer medida. | |
Além do amor, não há nada, | |
amar é o sumo da vida. | |
São mitos de calendário | |
tanto o ontem como o agora, | |
e o teu aniversário | |
é um nascer a toda hora. | |
E nosso amor, que brotou | |
do tempo, não tem idade, | |
pois só quem ama escutou | |
o apelo da eternidade." | |
Gonçalves de Magalhães,"Canto Quarto | |
(...) | |
Um ai do peito a mísera soltando, | |
A maviosa voz destarte exala: | |
""Só, eis-me aqui no cimo da montanha, | |
Dos meus abandonada; como um tronco | |
Despido, inútil no alto da colina, | |
A que os ramos quebrou Tupã co'a frecha. | |
""Só, eis-me aqui, do velho pai ausente, | |
Ausente do querido bem-amado, | |
Como viúva, solitária rola | |
Em deserto areal seu mal carpindo! | |
""Ainda hoje o caro pai vi a meu lado; | |
Ainda hoje o amante eu vi!... Fugiram ambos, | |
Velozes como os cervos da floresta: | |
Já fui feliz; mas hoje desgraçada!"" | |
E os ecos responderam — desgraçada! | |
""Desgraçada!... E ainda vivo? Antes à guerra | |
O pai e o bravo amante acompanhasse; | |
Ouvindo sua voz, seu rosto vendo, | |
Acabar a seu lado melhor fora."" | |
E os ecos responderam — melhor fora! | |
""Gênios, que as grotas povoais e os vales, | |
Gênios, que repetis os meus acentos, | |
Ide, e do amado murmurai no ouvido | |
Que a amante sua de saudades morre."" | |
E os ecos responderam — morre... morre! | |
Morre... morre! soou por longo tempo. | |
O canto cala um pouco a triste moça, | |
Murmurando dos ecos o estribilho, | |
Como se algum presságio concebesse. | |
Os negros olhos de chorar cansados | |
Co'as mãos ele os enxuga; mas de novo | |
Desses doridos olhos as estanques | |
Lágrimas brotam, que lhe o peito aljofram, | |
Como goteja em bagas abundantes | |
Da fendida taboca a pura linfa. | |
(...) | |
""Sim, morrerei..."" | |
E mais dizer não pôde; | |
Em meio de um gemido a voz faltou-lhe. | |
Os lábios lhe tremiam convulsivos, | |
Como flores batidas pelos ventos. | |
Cruza os braços no colo, os olhos cerra, | |
Pende a fronte, e no peito o queixo apóia, | |
As derretidas perlas entornando: | |
Tal num jardim a pálida açucena, | |
De matutino orvalho o cálix cheio, | |
Se o zéfiro a bafeja, a fronte inclina, | |
Puros cristais em lágrimas vertendo. | |
Não sei se dorme, ou se respira ainda; | |
Mas parece entre pedras bela estátua, | |
Que do abandono o desalento exprime! | |
O sol, que ao ressurgir a viu chorosa, | |
Nesse mesmo lugar chorosa a deixa. | |
(...) | |
Imagem - 00410003 | |
Publicado no livro A Confederação dos Tamoios: poema (1856). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1949 | |
NOTA: Poema composto de 10 canto" | |
Herberto Helder,"As Palavras | |
Ficarão para sempre abertas as minhas | |
salas negras. | |
Amarrado à noite, | |
eu canto com um lírio negro sobre a boca. | |
Com a lepra na boca, | |
com a lepra nas mãos. | |
Este mamífero tem sal à volta, | |
este mineral transpira, a primavera precipita-se. | |
Com a lepra no coração. | |
Mais de repente, | |
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo | |
de medo. | |
E uma vida mais lenta | |
só com uma estrela às costas, | |
uma tonelada de luz inquieta, | |
uma estrela respirando como um carneiro | |
vivo. | |
Igual a esta espécie de festa dolorosa, | |
apenas um ramo de cabelos violentos | |
e o seu odor a pimenta, | |
no lado escuro | |
como se canta que as salas vão levantar | |
o seu voo. | |
Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas | |
em dez dedos com sono, | |
como uma rosa acima do pénis. | |
Ao cimo do caule de sangue, | |
essa flor confusa. | |
Um equilíbrio igual, | |
só a estrela ao cimo do êxtase. | |
Só alguma coisa parada no cimo de uma visão | |
tremente. | |
A primavera, que eu saiba, | |
tem o sal como cor imóvel, | |
Por um lado entra a noite, | |
assim de súbito negra. | |
De uma ponta à outra enche-se o espaço | |
aplainando tábuas. | |
Rasga-se seda para aprender o ritmo. | |
Abraço um corpo com as camélias | |
a arder. | |
Abertas para sempre as negras partes | |
de mais uma estação. | |
Semelhante a isto | |
as mulheres andam pelas galerias transparentes, | |
e o palácio queima a noite onde estou | |
cantando. | |
É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver — | |
e num lado há espelhos bêbedos, | |
no outro um cardume ilegível de sons | |
obscuros. | |
Sabe-se então pelo silêncio em volta, | |
sabe-se em volta que são lírios | |
sonoros. | |
Passando | |
as mulheres colhem estes sons irrompentes, | |
e as mãos ficam negras junto à beleza | |
insensata. | |
Elas sorriem depois com um talento | |
terrível. | |
Levamos às costas um carneiro palpitante. | |
Pesa tanto uma estrela | |
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par, | |
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos, | |
e sobre a boca um lírio em brasa, | |
branco, branco, | |
que não nos deixa respirar. | |
A lepra na boca, | |
que não nos deixa respirar. | |
Um ramo de lepra contra o corpo, | |
como isto então só o movimento de águas obscuras | |
pelos canais de um canto, | |
como um palácio de salas negras abertas | |
para sempre. | |
Este animal respira como um espelho de pé, | |
no ar, | |
no ar. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Construção | |
Um grito pula no ar como foguete. | |
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos. | |
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo. | |
O sorveteiro corta a rua. | |
E o vento brinca nos bigodes do construtor. | |
" | |
Olavo Bilac,"As Ondas | |
Entre as trêmulas mornas ardentias, | |
A noite no alto-mar anima as ondas. | |
Sobem das fundas úmidas Golcondas, | |
Pérolas vivas, as nereidas frias: | |
Entrelaçam-se, correm fugidias, | |
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas, | |
Vestem as formas alvas e redondas | |
De algas roxas e glaucas pedrarias. | |
Coxas de vago ônix, ventres polidos | |
De alabastro, quadris de argêntea espuma, | |
Seios de dúbia opala ardem na treva; | |
E bocas verdes, cheias de gemidos, | |
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma, | |
Soluçam beijos vãos que o vento leva... | |
Publicado no livro Tarde (1919). | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Olga Savary,"Água Água | |
Menina sublunar, afogada, | |
que voz de prata te embala | |
toda desfolhada? | |
Tendo como um só adorno | |
o anel de seus vestidos, | |
ela própria é quem se encanta | |
numa canção de acalanto | |
presa ainda na garganta. | |
" | |
Miguel Torga,"Começo | |
Magoei os pés no chão onde nasci. | |
Cilícios de raivosa hostilidade | |
Abriram golpes na fragilidade | |
De criatura | |
Que não pude deixar de ser um dia. | |
Com lágrimas de pasmo e de amargura | |
Paguei à terra o pão que lhe pedia. | |
Comprei a consciência de que sou | |
Homem de trocas com a natureza. | |
Fera sentada à mesa | |
Depois de ter escoado o coração | |
Na incerteza | |
De comer o suor que semeou, | |
Varejou, | |
E, dobrada de lírica tristeza, | |
Carregou. | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"O Engenheiro | |
A Antônio B. Baltar | |
A luz, o sol, o ar livre | |
envolvem o sonho do engenheiro. | |
O engenheiro sonha coisas claras: | |
superfícies, tênis, um copo de água. | |
O lápis, o esquadro, o papel; | |
o desenho, o projeto, o número: | |
o engenheiro pensa o mundo justo, | |
mundo que nenhum véu encobre. | |
(Em certas tardes nós subíamos | |
ao edifício. A cidade diária, | |
como um jornal que todos liam, | |
ganhava um pulmão de cimento e vidro). | |
A água, o vento, a claridade | |
de um lado o rio, no alto as nuvens, | |
situavam na natureza o edifício | |
crescendo de suas forças simples. | |
Publicado no livro O engenheiro (1945). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.69-70. Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)" | |
Miguel Torga,"Quase um poema de amor | |
Há muito tempo já que não escrevo um poema | |
De amor. | |
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! | |
A nossa natureza | |
Lusitana | |
Tem essa humana | |
Graça | |
Feiticeira | |
De tornar de cristal | |
A mais sentimental | |
E baça | |
Bebedeira. | |
Mas ou seja que vou envelhecendo | |
E ninguém me deseje apaixonado, | |
Ou que a antiga paixão | |
Me mantenha calado | |
O coração | |
Num íntimo pudor, | |
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema | |
De amor | |
" | |
Casimiro de Abreu,"Minha Terra | |
Minha terra tem palmeiras | |
Onde canta o sabiá. | |
G. DIAS. | |
Todos cantam sua terra, | |
Também vou cantar a minha, | |
Nas débeis cordas da lira | |
Hei de fazê-la rainha; | |
— Hei de dar-lhe a realeza | |
Nesse trono de beleza | |
Em que a mão da natureza | |
Esmerou-se em quanto tinha. | |
Correi pr'as bandas do sul: | |
Debaixo dum céu de anil | |
Encontrareis o gigante | |
Santa Cruz, hoje Brasil; | |
— É uma terra de amores | |
Alcatifada de flores, | |
Onde a brisa fala amores | |
Nas belas tardes de abril. | |
(...) | |
É um país majestoso | |
Essa terra de Tupá, | |
Desd'o Amazonas ao Prata, | |
Do Rio Grande ao Pará! | |
— Tem serranias gigantes | |
E tem bosques verdejantes | |
Que repetem incessantes | |
Os cantos do sabiá. | |
(...) | |
Quando Dirceu e Marília | |
Em terníssimos enleios | |
Se beijavam com ternura | |
Em celestes devaneios; | |
Da selva o vate inspirado, | |
O sabiá namorado, | |
Na laranjeira pousado | |
Soltava ternos gorjeios. | |
Foi ali, foi no Ipiranga, | |
Que com toda a majestade | |
Rompeu de lábios augustos | |
O brado da liberdade; | |
Aquela voz soberana | |
Voou na plaga indiana | |
Desde o palácio à choupana, | |
Desde a floresta à cidade! | |
Um povo ergueu-se cantando | |
— Mancebos e anciãos — | |
E, filhos da mesma terra, | |
Alegres deram-se as mãos; | |
Foi belo ver esse povo | |
Em suas glórias tão novo, | |
Bradando cheio de fogo: | |
— Portugal! somos irmãos! | |
Quando nasci, esse brado | |
Já não soava na serra | |
Nem os ecos da montanha | |
Ao longe diziam — guerra! | |
Mas não sei o que sentia | |
Quando, a sós, eu repetia | |
Cheio de nobre ousadia | |
O nome da minha terra! | |
(...) | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro I. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.1. | |
NOTA: Poema composto de 15 oitavas, datado de Lisboa, 1856. A epígrafe são os primeiros versos da ""Canção do Exílio"", do livro PRIMEIROS CANTOS (1846), de Gonçalves Dias" | |
Cecília Meireles,"4o Motivo da Rosa | |
Não te aflijas com a pétala que voa: | |
também é ser, deixar de ser assim. | |
Rosas verá, só de cinzas franzida, | |
mortas, intactas pelo teu jardim. | |
Eu deixo aroma até nos meus espinhos | |
ao longe, o vento vai falando de mim. | |
E por perder-me é que vão me lembrando, | |
por desfolhar-me é que não tenho fim. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"O Sorriso | |
Creio que foi o sorriso,o sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luzlá dentro, apeteciaentrar nele, tirar a roupa,f icarnu dentro daquele sorriso. Correr, navegar, morrer naquele sorriso. de O Outro Nome da Terra" | |
Almeida Garrett,"Barca Bela | |
Pescador da barca bela, | |
Onde vais pescar com ela. | |
Que é tão bela, | |
Oh pescador? | |
Não vês que a última estrela | |
No céu nublado se vela? | |
Colhe a vela, | |
Oh pescador! | |
Deita o lanço com cautela, | |
Que a sereia canta bela... | |
Mas cautela, | |
Oh pescador! | |
Não se enrede a rede nela, | |
Que perdido é remo e vela, | |
Só de vê-la, | |
Oh pescador. | |
Pescador da barca bela, | |
Inda é tempo, foge dela | |
Foge dela | |
Oh pescador! | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Havia uma palavra | |
Havia | |
uma palavra | |
no escuro. | |
Minúscula.Ignorada. | |
Martelava no escuro. | |
Martelava | |
no chão da água. | |
Do fundo do tempo, | |
martelava. | |
contra o muro. | |
Uma palavra. | |
No escuro. | |
Que me chamava. | |
de Matéria Solar" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O mundo é grande | |
O mundo é grande e cabe | |
nesta janela sobre o mar. | |
O mar é grande e cabe | |
na cama e no colchão de amar. | |
O amor é grande e cabe | |
no breve espaço de beijar. | |
(in “Amar se Aprende Amando”) | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A bunda que engraçada | |
A bunda, que engraçada. | |
Está sempre sorrindo, nunca é trágica. | |
Não lhe importa o que vai | |
pela frente do corpo. A bunda basta-se. | |
Existe algo mais? Talvez os seios. | |
Ora – murmura a bunda – esses garotos | |
ainda lhes falta muito que estudar. | |
A bunda são duas luas gêmeas | |
em rotundo meneio. Anda por si | |
na cadência mimosa, no milagre | |
de ser duas em uma, plenamente. | |
A bunda se diverte | |
por conta própria. E ama. | |
Na cama agita-se. Montanhas | |
avolumam-se, descem. Ondas batendo | |
numa praia infinita. | |
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz | |
na carícia de ser e balançar. | |
Esferas harmoniosas sobre o caos. | |
A bunda é a bunda, | |
rebunda. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A palavra mágica | |
Certa palavra dorme na sombra | |
de um livro raro. | |
Como desencantá-la? | |
É a senha da vida | |
a senha do mundo. | |
Vou procurá-la. | |
Vou procurá-la a vida inteira | |
no mundo todo. | |
Se tarda o encontro, se não a encontro, | |
não desanimo, | |
procuro sempre. | |
Procuro sempre, e minha procura | |
ficará sendo | |
minha palavra. | |
" | |
Clarice Lispector,"Amor à Terra | |
Laranja na mesa. | |
Bendita a árvore | |
que te pariu. | |
" | |
Ruy Belo,"Este céu passará | |
Este céu passará e então teu riso descerá dos montes pelos rios até desaguar no nosso coração" | |
Gonçalves Dias,"Lira | |
Coeur sans amour est un jardin sans fleur. | |
L. HALEVY | |
Se me queres a teus pés ajoelhado, | |
Ufano de me ver por ti rendido, | |
Ou já em mudas lágrimas banhado; | |
Volve, impiedosa, | |
Volve-me os olhos; | |
Basta uma vez! | |
Se me queres de rojo sobre a terra, | |
Beijando a fímbria dos vestidos teus, | |
Calando as queixas que meu peito encerra, | |
Dize-me, ingrata, | |
Dize-me: eu quero! | |
Basta uma vez! | |
Mas se antes folgas de me ouvir na lira | |
Louvor singelo dos amores meus, | |
Por que minha alma há tanto em vão suspira; | |
Dize-me, ó bela | |
Dize-me: eu te amo! | |
Basta uma vez! | |
Publicado no livro Segundos Cantos e Sextilhas de Frei Antão (1848). Poema integrante da série Segundos Cantos. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Pablo Neruda,"Gosto de ti calada (Poema 15) | |
Gosto de ti calada porque estás como ausente, | |
e me ouves de longe, e esta voz não te toca. | |
Parece que os teus olhos foram de ti voando | |
e parece que um beijo fechou a tua boca. | |
Como todas as coisas estão cheias da minha alma | |
tu emerge das coisas, cheia da alma minha. | |
Borboleta de sonho, pareces-te com a minha alma, | |
e pareces-te com a palavra melancolia. | |
Gosto de ti calada e estás como distante. | |
E estás como queixando-te, borboleta em arrulho. | |
E ouves-me de longe, e esta voz não te alcança: | |
vais deixar que eu me cale com o silêncio teu. | |
Vais deixar que eu te fale também com o teu silêncio | |
claro como uma lâmpada, simples como um anel. | |
Tu és igual à noite, calada e constelada. | |
O teu silêncio é de estrela, tão longínquo e tão simples. | |
Gosto de ti calada porque estás como ausente. | |
Distante e dolorosa como se houvesses morrido. | |
Uma palavra então, um teu sorriso bastam. | |
E eu estou alegre, alegre porque não é verdade. | |
Pablo Neruda (n. Parral, Chile 1904; m. 23 Set 1973 em Santiago) | |
in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada | |
(Publicações Dom Quixote) | |
" | |
Cecília Meireles,"Reinvenção | |
A vida só é possível | |
reinventada. | |
Anda o sol pelas campinas | |
e passeia a mão dourada | |
pelas águas, pelas folhas... | |
Ah! tudo bolhas | |
que vem de fundas piscinas | |
de ilusionismo... — mais nada. | |
Mas a vida, a vida, a vida, | |
a vida só é possível | |
reinventada. | |
Vem a lua, vem, retira | |
as algemas dos meus braços. | |
Projeto-me por espaços | |
cheios da tua Figura. | |
Tudo mentira! Mentira | |
da lua, na noite escura. | |
Não te encontro, não te alcanço... | |
Só — no tempo equilibrada, | |
desprendo-me do balanço | |
que além do tempo me leva. | |
Só — na treva, | |
fico: recebida e dada. | |
Porque a vida, a vida, a vida, | |
a vida só é possível | |
reinventada. | |
" | |
Herberto Helder,"Aos amigos | |
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. | |
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, | |
com os livros atrás a arder para toda a eternidade. | |
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente | |
dentro do fogo. | |
-Temos um talento doloroso e obscuro. | |
construímos um lugar de silêncio. | |
De paixão. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Pardalzinho | |
O pardalzinho nasceu | |
Livre. Quebraram-lhe a asa. | |
Sacha lhe deu uma casa, | |
Água, comida e carinhos. | |
Foram cuidados em vão: | |
A casa era uma prisão, | |
O pardalzinho morreu. | |
O corpo Sacha enterrou | |
No jardim; a alma, essa voou | |
Para o céu dos passarinhos!" | |
Marina Colasanti,"Se Ele Apenas | |
Diz a lenda que o poeta | |
Li Po | |
afogou-se na noite em que | |
embriagado | |
quis agarrar a Lua | |
sobre o lago. | |
É lenda, bem se vê. | |
Pois a verdade é que | |
a Lua | |
teria seguido o poeta | |
a qualquer canto | |
se ele apenas a tivesse chamado. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Olavo Bilac,"XIII [Ora (direis) ouvir estrelas | |
""Ora (direis) ouvir estrelas! Certo | |
Perdeste o senso!"" E eu vos direi, no entanto, | |
Que, para ouvi-las, muita vez desperto | |
E abro as janelas, pálido de espanto... | |
E conversamos toda a noite, enquanto | |
A Via Láctea, como um pálio aberto, | |
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, | |
Inda as procuro pelo céu deserto. | |
Direis agora: ""Tresloucado amigo! | |
Que conversas com elas? Que sentido | |
Tem o que dizem, quando estão contigo?"" | |
E eu vos direi: ""Amai para entendê-las! | |
Pois só quem ama pode ter ouvido | |
Capaz de ouvir e de entender estrelas"". | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). Poema integrante da série Via Láctea. | |
In: BILAC, Olavo. Obra reunida. Org. e introd. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.117. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)" | |
Cecília Meireles,"Se eu fosse apenas | |
Se eu fosse apenas uma rosa, | |
com que prazer me desfolhava, | |
já que a vida é tão dolorosa | |
e não te sei dizer mais nada! | |
Se eu fosse apenas água ou vento, | |
com que prazer me desfaria, | |
como em teu próprio pensamento | |
vais desfazendo a minha vida! | |
Perdoa-me causar-te a mágoa | |
desta humana, amarga demora! | |
– de ser menos breve do que a água, | |
mais durável que o vento e a rosa... | |
" | |
Augusto dos Anjos,"O deus-verme | |
Fator universal do transformismo. | |
Filho da teleológica matéria, | |
Na superabundância ou na miséria, | |
Verme - é o seu nome obscuro de batismo. | |
Jamais emprega o acérrimo exorcismo | |
Em sua diária ocupação funérea, | |
E vive em contubérnio com a bactéria, | |
Livre das roupas do antropomorfismo. | |
Almoça a podridão das drupas agras, | |
Janta hidrópicos, rói vísceras magras | |
E dos defuntos novos incha a mão... | |
Ah! Para ele é que a carne podre fica, | |
E no inventário da matéria rica | |
Cabe aos seus filhos a maior porção! | |
" | |
Luís de Camões,"Tanto de meu estado me acho incerto | |
Tanto de meu estado me acho incerto, | |
que em vivo ardor tremendo estou de frio; | |
sem causa, juntamente choro e rio, | |
o mundo todo abarco e nada aperto. | |
É tudo quanto sinto, um desconcerto; | |
da alma um fogo me sai, da vista um rio; | |
agora espero, agora desconfio, | |
agora desvario, agora acerto. | |
Estando em terra, chego ao Céu voando, | |
numa hora acho mil anos, e é de jeito | |
que em mil anos não posso achar uma hora. | |
Se me pergunta alguém porque assi ando, | |
respondo que não sei; porém suspeito | |
que só porque vos vi, minha Senhora." | |
Mário de Sá-Carneiro,"Fim | |
Quando eu morrer batam em latas, | |
Rompam aos saltos e aos pinotes, | |
Façam estalar no ar chicotes, | |
Chamem palhaços e acrobatas! | |
Que o meu caixão vá sobre um burro | |
Ajaezado à andaluza: | |
A um morto nada se recusa, | |
E eu quero por força ir de burro!... | |
" | |
Cassiano Ricardo,"As Andorinhas de Antônio Nobre | |
—Nos | |
—fios | |
—ten | |
sos | |
—da | |
—pauta | |
—de me- | |
tal | |
—as | |
— an/ | |
do/ | |
ri/ | |
nhas | |
—gri- | |
tam | |
—por | |
—fal/ | |
ta/ | |
—de u- | |
ma | |
—cl'a- | |
ve | |
—de | |
—sol | |
In: RICARDO, Cassiano. Os sobreviventes: acompanhados de um poema circunstancial e de uma tradução. Pref. Eduardo Portella. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1971. p.66. Poema integrante da série Xilogravuras" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O Amor bate na porta | |
Cantiga de amor sem eira | |
nem beira, | |
vira o mundo de cabeça | |
para baixo, | |
suspende a saia das mulheres, | |
tira os óculos dos homens, | |
o amor, seja como for, | |
é o amor. | |
Meu bem, não chores, | |
hoje tem filme de Carlito. | |
O amor bate na porta | |
o amor bate na aorta, | |
fui abrir e me constipei. | |
Cardíaco e melancólico, | |
o amor ronca na horta | |
entre pés de laranjeira | |
entre uvas meio verdes | |
e desejos já maduros. | |
Entre uvas meio verdes, | |
meu amor, não te atormentes. | |
Certos ácidos adoçam | |
a boca murcha dos velhos | |
e quando os dentes não mordem | |
e quando os braços não prendem | |
o amor faz uma cócega | |
o amor desenha uma curva | |
propõe uma geometria. | |
Amor é bicho instruído. | |
Olha: o amor pulou o muro | |
o amor subiu na árvore | |
em tempo de se estrepar. | |
Pronto, o amor se estrepou. | |
Daqui estou vendo o sangue | |
que escorre do corpo andrógino. | |
Essa ferida, meu bem, | |
às vezes não sara nunca | |
às vezes sara amanhã. | |
Daqui estou vendo o amor | |
irritado, desapontado, | |
mas também vejo outras coisas: | |
vejo corpos, vejo almas | |
vejo beijos que se beijam | |
ouço mãos que se conversam | |
e que viajam sem mapa. | |
Vejo muitas outras coisas | |
que não posso compreender... | |
" | |
Fernando Pessoa,"ODE MARÍTIMA | |
ODE MARÍTIMA | |
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, | |
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido, | |
Olho e contenta-me ver, | |
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. | |
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. | |
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. | |
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio, | |
Aqui, acolá, acorda a vida marítima, | |
Erguem-se velas, avançam rebocadores, | |
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto. | |
Há uma vaga brisa. | |
Mas a minh'alma está com o que vejo menos, | |
Com o paquete que entra, | |
Porque ele está com a Distância, com a Manhã, | |
Com o sentido marítimo desta Hora, | |
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, | |
Como um começar a enjoar, mas no espírito. | |
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, | |
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente. | |
Os paquetes que entram de manhã na barra | |
Trazem aos meus olhos consigo | |
O mistério alegre e triste de quem chega e parte. | |
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos | |
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos. | |
Todo o atracar, todo o largar de navio, | |
É – sinto-o em mim como o meu sangue – | |
Inconscientemente simbólico, terrivelmente | |
Ameaçador de significações metafísicas | |
Que perturbam em mim quem eu fui... | |
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! | |
E quando o navio larga do cais | |
E se repara de repente que se abriu um espaço | |
Entre o cais e o navio, | |
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, | |
Uma névoa de sentimentos de tristeza | |
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas | |
Como a primeira janela onde a madrugada bate, | |
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa | |
Que fosse misteriosamente minha. | |
Ah, quem sabe, quem sabe, | |
Se não parti outrora, antes de mim, | |
Dum cais; se não deixei, navio ao sol | |
Oblíquo da madrugada, | |
Uma outra espécie de porto? | |
Quem sabe se não deixei, antes de a hora | |
Do mundo exterior como eu o vejo | |
Raiar-se para mim, | |
Um grande cais cheio de pouca gente, | |
Duma grande cidade meio-desperta, | |
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica, | |
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo? | |
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, | |
Real, visível como cais, cais realmente, | |
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, | |
Insensivelmente evocado, | |
Nós os homens construímos | |
Os nossos cais nos nossos portos, | |
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira, | |
Que depois de construídos se anunciam de repente | |
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas. | |
A certos momentos nossos de sentimento-raiz | |
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta | |
E, sem que nada se altere, | |
Tudo se revela diverso. | |
Ah, o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! | |
O Grande Cais Anterior, eterno e divino! | |
De que porto? Em que águas? E por que penso eu isto? | |
Grande Cais como os outros cais, mas o Único. | |
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs. | |
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes | |
E chegadas de comboios de mercadorias, | |
E sob a nuvem negra e ocasional e leve | |
Do fundo das chaminés das fábricas próximas | |
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha, | |
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria. | |
Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados | |
Em divino êxtase revelador | |
Às horas cor de silêncios e angústias | |
Não é ponte entre qualquer cais e o Cais! | |
Cais negramente reflectido nas águas paradas, | |
Bulício a bordo dos navios, | |
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, | |
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura, | |
Que quando o navio volta ao porto | |
Há sempre qualquer alteração a bordo! | |
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso! | |
Alma eterna dos navegadores e das navegações! | |
Cascos reflectidos devagar nas águas, | |
Quando o navio larga do porto! | |
Flutuar como alma da vida, partir como voz, | |
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas. | |
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa, | |
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar, | |
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens | |
Por inumeráveis encostas atónitas... | |
Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe, | |
E depois as praias próximas, vistas de perto. | |
O mistério de cada ida e de cada chegada, | |
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade | |
Deste impossível universo | |
A cada hora marítima mais na própria pele sentido! | |
O soluço absurdo que as nossas almas derramam | |
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, | |
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar, | |
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, | |
Para o navio que se aproxima. | |
Ah, a frescura das manhãs em que se chega, | |
E a palidez das manhãs em que se parte, | |
Quando as nossas entranhas se arrepanham | |
E uma vaga sensação parecida com um medo | |
– O medo ancestral de se afastar e partir, | |
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo – | |
Encolhe-nos a pele e agonia-nos, | |
E todo o nosso corpo angustiado sente, | |
Como se fosse a nossa alma, | |
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: | |
Uma saudade a qualquer coisa. | |
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria? | |
A que costa? a que navio? a que cais? | |
Que se adoece em nós o pensamento, | |
E só fica um grande vácuo dentro de nós, | |
Uma oca saciedade de minutos marítimos, | |
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor | |
Se soubesse como sê-lo... | |
A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca, | |
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido. | |
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim. | |
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida, | |
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva. | |
Na minha imaginação ele está já perto e é visível | |
Em toda a extensão das linhas das suas vigias, | |
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, | |
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco | |
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo. | |
Os navios que entram a barra, | |
Os navios que saem dos portos, | |
Os navios que passam ao longe | |
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) – | |
Todos estes navios abstractos quase na sua ida, | |
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa | |
E não apenas navios, navios indo e vindo. | |
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles, | |
Visto de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas, | |
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas, | |
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto, | |
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas, | |
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo – | |
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa, | |
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira. | |
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima! | |
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina | |
E eu cismo indeterminadamente as viagens. | |
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! | |
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas! | |
As solidões marítimas como certos momentos no Pacífico | |
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola | |
Se sente pesar sobre<" | |
Gonçalves Dias,"Deprecação | |
Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto | |
Com denso velâmen de penas gentis; | |
E jazem teus filhos clamando vingança | |
Dos bens que lhes deste da perda infeliz! | |
Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre: | |
Bastante sofremos com tua vingança! | |
Já lágrimas tristes choraram teus filhos, | |
Teus filhos que choram tão grande mudança. | |
Anhangá impiedoso nos trouxe de longe | |
Os homens que o raio manejam cruentos, | |
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino | |
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos. | |
E a terra em que pisam, e os campos e os rios | |
Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus: | |
Por que lhes concedes tão alta pujança, | |
Se os raios de morte, que vibram, são teus? | |
Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto | |
Com denso velâmen de penas gentis; | |
E jazem teus filhos clamando vingança | |
Dos bens que lhes deste da perda infeliz. | |
Teus filhos valentes, temidos na guerra, | |
No albor da manhã quão fortes que os vi! | |
A morte pousava nas plumas da frecha, | |
No gume da maça, no arco tupi! | |
E hoje em que apenas a enchente do rio | |
Cem vezes hei visto crescer e baixar... | |
Já restam bem poucos dos teus, qu'inda possam | |
Dos seus, que já dormem, os ossos levar. | |
Teus filhos valentes causavam terror, | |
Teus filhos enchiam as bordas do mar, | |
As ondas coalhavam de estreitas igaras, | |
De frechas cobrindo os espaços do ar. | |
Já hoje não caçam nas matas frondosas | |
A corça ligeira, o trombudo coati... | |
A morte pousava nas plumas da frecha, | |
No gume da maça, no arco tupi! | |
O Piaga nos disse que breve seria, | |
A que nos infliges cruel punição; | |
E os teus inda vagam por serras, por vales, | |
Buscando um asilo por ínvio sertão! | |
Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto: | |
Bastante sofremos com tua vingança! | |
Já lágrimas tristes choraram teus filhos, | |
Teus filhos que choram tão grande tardança. | |
Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos, | |
Que eu vi combatendo no albor da manhã; | |
Conheçam-te os feros, confessem vencidos | |
Que és grande e te vingas, qu'és Deus, ó Tupã! | |
Imagem - 00250001 | |
Publicado no livro Primeiros Cantos (1846). Poema integrante da série Poesias Americanas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Luís de Camões,"Esparsa Ao desconcerto do Mundo | |
Os bons vi sempre passar | |
No Mundo grandes tormentos; | |
E pera mais me espantar, | |
Os maus vi sempre nadar | |
Em mar de contentamentos. | |
Cuidando alcançar assim | |
O bem tão mal ordenado, | |
Fui mau, mas fui castigado: | |
Assim que, só pera mim, | |
Anda o Mundo concertado." | |
Gonçalves de Magalhães,"O Anagrama | |
Dos vates a antiga usança | |
Quis respeitoso seguir, | |
Ensaiando em anagrama | |
Teu doce nome exprimir; | |
Mas a mente em vão se cansa, | |
No desejo que me inflama | |
Nada me vem acudir. | |
Não desistindo da idéia, | |
Volto a ela sem cessar; | |
Diversos nomes invento, | |
Sem nenhum poder achar, | |
Que seja nome de idéia, | |
E se preste ao meu intento, | |
Sem o teu muito ocultar. | |
Vendo alfim que não podia | |
Teu anagrama fazer; | |
Que quantos eu inventava | |
Nada queriam dizer; | |
Uma idéia à fantasia, | |
Quando já nada esperava, | |
Me veio enfim socorrer. | |
Foi idéia luminosa, | |
Direi quase inspiração, | |
Pois que senti de repente | |
Palpitar-me o coração. | |
Sua força imperiosa | |
Foi tal, qu'eu obediente | |
Dei-lhe pronta execução. | |
De papel em uma fita | |
Teu lindo nome escrevi; | |
Pondo as letras separadas, | |
Co'a tesoura as dividi. | |
Cada solta letra escrita | |
Enrolei, e baralhadas, | |
Numa caixinha as meti. | |
Tudo ao acaso deixando, | |
Da sorte o cofre agitei; | |
E tirando-as de uma em uma, | |
Uma após outra as tracei. | |
Oh prodígio! Oh pasmo! Quando | |
Esta maravilha suma | |
De um mero acaso esperei? | |
Já Urânia — escrito estava! | |
Foi Amor quem o escreveu! | |
Não, não foi obra do acaso; | |
Teu nome veio do céu! | |
Aquele — já — me ordenava | |
Que da Urânia do Parnaso | |
Fosse o nome agora teu. | |
Que para mim renascida | |
A Musa Urânia serás. | |
Que ao céu e a Deus minha mente | |
Tu sempre levantarás. | |
Musa real, não fingida, | |
Unida a mim ternamente, | |
Celeste amor me terás. | |
Publicado no livro Urânia (1862). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Luís de Camões,"Ao desconcerto do Mundo | |
Os bons vi sempre passar | |
No Mundo graves tormentos; | |
E pera mais me espantar, | |
Os maus vi sempre nadar | |
Em mar de contentamentos. | |
Cuidando alcançar assim | |
O bem tão mal ordenado, | |
Fui mau, mas fui castigado. | |
Assim que, só pera mim, | |
Anda o Mundo concertado. | |
" | |
Fernando Pessoa,"A morte é a curva da estrada, | |
A morte é a curva da estrada, | |
Morrer é só não ser visto. | |
Se escuto, eu te ouço a passada | |
Existir como eu existo. | |
A terra é feita de céu. | |
A mentira não tem ninho. | |
Nunca ninguém se perdeu. | |
Tudo é verdade e caminho. | |
23/05/1932" | |
Florbela Espanca,"Noite De Saudade | |
A Noite vem poisando devagar | |
Sobre a Terra, que inunda de amargura... | |
E nem sequer a benção do luar | |
A quis tornar divinamente pura... | |
Ninguém vem atrás dela a acompanhar | |
A sua dor que é cheia de tortura... | |
E eu oiço a Noite imensa soluçar! | |
E eu oiço soluçar a Noite escura! | |
Porque és assim tão escura, assim tão triste?! | |
é que, talvez, ó Noite, em ti existe | |
Uma saudade igual à que eu contenho! | |
Saudade que eu sei donde me vem... | |
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!... | |
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho! | |
" | |
Gregório de Matos,"Moraliza o Poeta nos Ocidentes do Sol a Inconstância dos Bens do Mundo | |
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, | |
Depois da Luz se segue a noite escura, | |
Em tristes sombras morre a formosura, | |
Em contínuas tristezas a alegria. | |
Porém se acaba o Sol, por que nascia? | |
Se formosa a Luz é, por que não dura? | |
Como a beleza assim se transfigura? | |
Como o gosto da pena assim se fia? | |
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, | |
Na formosura não se dê constância, | |
E na alegria sinta-se tristeza. | |
Começa o mundo enfim pela ignorância, | |
E tem qualquer dos bens por natureza | |
A firmeza somente na inconstância. | |
In: MATOS, Gregório de. Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992" | |
Florbela Espanca,"[Sem Titulo] | |
Passam no teu olhar nobres cortejos, | |
Frotas, pendões ao vento sobranceiros, | |
Lindos versos de antigos romanceiros, | |
Céus do Oriente, em brasa, como beijos, | |
Mares onde não cabem teus desejos; | |
Passam no teu olhar mundos inteiros, | |
Todo um povo de heróis e marinheiros, | |
Lanças nuas em rútilos lampejos; | |
Passam lendas e sonhos e milagres! | |
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres, | |
Em centelhas de crença e de certeza! | |
E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim, | |
Amor, julgo trazer dentro de mim | |
Um pedaço da terra portuguesa! | |
" | |
Luís de Camões,"O dia em que eu nasci, moura e pereça | |
O dia em que eu nasci, moura e pereça | |
Não o queira jamais o tempo dar, | |
não torne mais ao mundo e, se tornar, | |
eclipse nesse passo o sol padeça. | |
A luz lhe falte, o sol se escureça, | |
mostre o mundo sinais de se acabar, | |
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, | |
a mãe ao próprio filho não conheça. | |
As pessoas pasmadas, de ignorantes, | |
as lágrimas no rosto, a côr perdida, | |
cuidem que o mundo já se destruiu. | |
Ó gente temerosa, não te espantes, | |
que este dia deitou ao mundo a vida | |
mais desgraçada que jamais se viu. | |
" | |
Ruy Belo,"Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo | |
Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo é tudo serem para mim estradas largas estradas onde passa o sol poente é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar se o tempo existe se existiu alguma vez e nem mesmo meço a devastação do meu passado" | |
Marina Colasanti,"Frutos e Flores | |
Meu amado me diz | |
que sou como maçã | |
cortada ao meio. | |
As sementes eu tenho | |
é bem verdade. | |
E a simetria das curvas. | |
Tive um certo rubor | |
na pele lisa | |
que não sei | |
se ainda tenho. | |
Mas se em abril floresce | |
a macieira | |
eu maçã feita | |
e pra lá de madura | |
ainda me desdobro | |
em brancas flores | |
cada vez que sua faca | |
me traspassa. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Luís de Camões,"Pastora da Serra | |
Pastora da serra | |
da serra da Estrela, | |
perco-me por ela. | |
VOLTAS | |
Nos seus olhos belos | |
tanto Amor se atreve, | |
que abrasa entre a neve | |
quantos ousam vê-los. | |
Não solta os cabelos | |
Aurora mais bela: | |
perco-me por ela. | |
Não teve esta serra | |
no meio da altura | |
mais que a fermosura | |
que nela se encerra. | |
Bem céu fica a terra | |
que tem tal estrela: | |
perco-me por ela. | |
Sendo entre pastores | |
causa de mil males, | |
não se ouvem nos vales | |
senão seus louvores. | |
Eu só por amores | |
não sei falar dela: | |
sei morrer por ela. | |
De alguns que, sentindo, | |
seu mal vão mostrando, | |
se rim, não cuidando | |
que inda paga, rindo. | |
Eu, triste, encobrindo | |
só meus males dela, | |
perco-me por ela. | |
Se flores deseja | |
por ventura, belas, | |
das que colhe, delas, | |
mil morrem de enveja. | |
Não há quem não veja | |
todo o milhor nela: | |
perco-me por ela. | |
Se na água corrente | |
seus olhos inclina, | |
faz luz cristalina | |
para a corrente. | |
Tal se vê, que sente, | |
por ver-se, água nela: | |
perco-me por ela. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Desejo | |
E poi morir. | |
METASTASIO | |
Ah! que eu não morra sem provar, ao menos | |
Sequer por um instante, nesta vida | |
Amor igual ao meu! | |
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre | |
Um anjo, uma mulher, uma obra tua, | |
Que sinta o meu sentir; | |
Uma alma que me entenda, irmã da minha, | |
Que escute o meu silêncio, que me siga | |
Dos ares na amplidão! | |
Que em laço estreito unidas, juntas, presas, | |
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem | |
Num êxtase de amor! | |
Publicado no livro Primeiros Cantos (1846). Poema integrante da série Poesias Diversas. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Eugénio de Andrade,"Algumas Reflexões Sobre a Mulher | |
Elas são as mães: | |
rompem do inferno, furam a treva, | |
arrastando | |
os seus mantos na poeira das estrelas. | |
Animais sonâmbulos, | |
dormem nos rios, na raiz do pão. | |
Na vulva sombria | |
é onde fazem o lume: | |
ali têm casa. | |
Em segredo, escondem | |
o latir lancinante dos seus cães. | |
Nos olhos, o relâmpago | |
negro do frio. | |
Longamente bebem | |
o silencio | |
nas próprias mãos. | |
O olhar | |
desafia as aves: | |
o seu voo é mais fundo. | |
Sobre si se debruçam | |
a escutar | |
os passos do crepúsculo. | |
Despem-se ao espelho | |
para entrarem | |
nas águas da sombra. | |
É quando dançam que todos os caminhos | |
levam ao mar. | |
São elas que fabricam o mel, | |
o aroma do luar, | |
o branco da rosa. | |
Quando o galo canta | |
Desprendem-se | |
para serem orvalho. | |
" | |
Jorge de Sena,"A Portugal | |
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. | |
Nem é ditosa, porque o não merece. | |
Nem minha amada, porque é só madrasta. | |
Nem pátria minha, porque eu não mereço | |
A pouca sorte de nascido nela. | |
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta | |
quanto esse arroto de passadas glórias. | |
Amigos meus mais caros tenho nela, | |
saudosamente nela, mas amigos são | |
por serem meus amigos, e mais nada. | |
Torpe dejecto de romano império; | |
babugem de invasões; salsugem porca | |
de esgoto atlântico; irrisória face | |
de lama, de cobiça, e de vileza, | |
de mesquinhez, de fatua ignorância; | |
terra de escravos, cu pró ar ouvindo | |
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; | |
terra de funcionários e de prostitutas, | |
devotos todos do milagre, castos | |
nas horas vagas de doença oculta; | |
terra de heróis a peso de ouro e sangue, | |
e santos com balcão de secos e molhados | |
no fundo da virtude; terra triste | |
à luz do sol calada, arrebicada, pulha, | |
cheia de afáveis para os estrangeiros | |
que deixam moedas e transportam pulgas, | |
oh pulgas lusitanas, pela Europa; | |
terra de monumentos em que o povo | |
assina a merda o seu anonimato; | |
terra-museu em que se vive ainda, | |
com porcos pela rua, em casas celtiberas; | |
terra de poetas tão sentimentais | |
que o cheiro de um sovaco os põe em transe; | |
terra de pedras esburgadas, secas | |
como esses sentimentos de oito séculos | |
de roubos e patrões, barões ou condes; | |
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: | |
eu te pertenço. | |
És cabra, és badalhoca, | |
és mais que cachorra pelo cio, | |
és peste e fome e guerra e dor de coração. | |
Eu te pertenço mas seres minha, não | |
" | |
Ruy Belo,"Compreensão da árvore | |
A tua voz edifica-me sílaba a sílaba | |
e é árvore desde as raízes aos ramos | |
Cantas em mim a primavera breve tempo | |
e depois os pássaros irão | |
povoar de ti novas solidões | |
E eu sentirei na fronte permanentemente | |
o sudário levemente branco do teu grande silêncio | |
ó canção ó país ó cidade sonhada | |
dominicalmente aberta ao mar que por fim pousas | |
na fímbria desta tua superfície." | |
Luís de Camões,"Posto o Pensamento Nele | |
Mote | |
Na | |
fonte está Lianor | |
Lavando a talha e chorando, | |
Às amigas perguntando: | |
- Vistes lá o meu amor? | |
Posto | |
o pensamento nele, | |
Porque a tudo o amor obriga, | |
Cantava, mas a cantiga | |
Eram suspiros por ele. | |
Nisto estava Lianor | |
O seu desejo enganando, | |
Às amigas perguntando: | |
- Vistes lá o meu amor? | |
O | |
rosto sobre ua mão, | |
Os olhos no chão pregados, | |
Que, do chorar já cansados, | |
Algum descanso lhe dão. | |
Desta sorte Lianor | |
Suspende de quando em quando | |
Sua dor; e, em si tornando, | |
Mais pesada sente a dor. | |
Não | |
deita dos olhos água, | |
Que não quer que a dor se abrande | |
Amor, porque, em mágoa grande, | |
Seca as lágrimas a mágoa. | |
Despois que de seu amor | |
Soube novas perguntando, | |
De improviso a vi chorando. | |
Olhai que extremos de dor!" | |
António Gedeão,"Poema do coração | |
Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração, | |
e também a Bondade, | |
e a Sinceridade, | |
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração. | |
Então poderia dizer-vos: | |
""Meus amados irmãos, | |
falo-vos do coração"", | |
ou então: | |
""com o coração nas mãos"". | |
Mas o meu coração é como o dos compêndios. | |
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral) | |
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos). | |
O sangue ao circular contrai-os e distende-os | |
segundo a obrigação das leis dos movimentos. | |
Por vezes acontece | |
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados, | |
e uma lâmina baça e agreste, que endurece | |
a luz dos olhos em bisel cortados. | |
Parece então que o coração estremece. | |
Mas não. | |
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático, | |
que esse vento que sopra e ateia os incêndios, | |
é coisa do simpático. | |
Vem tudo nos compêndios. | |
Então, meninos! | |
Vamos à lição! | |
Em quantas partes se divide o coração? | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"SENTIMENTO DO MUNDO | |
Tenho apenas duas mãos | |
e o sentimento do mundo, | |
mas estou cheio de escravos, | |
minhas lembranças escorrem | |
e o corpo transige | |
na confluência do amor. | |
Quando me levantar, o céu | |
estará morto e saqueado, | |
eu mesmo estarei morto, | |
morto meu desjeo, morto | |
o pântano sem acordes. | |
Os camaradas não disseram | |
que havia uma guerra | |
e era necessário | |
trazer fogo e alimento. | |
Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, | |
humildemente vos peço | |
que me perdoeis. | |
Quando os corpos passarem, | |
eu ficarei sozinho | |
desafiando a recordação | |
do sineiro, da viúva e do microscopista | |
que habitavam a barraca | |
e não foram encontrados | |
ao amanhecer | |
esse amanhecer | |
mais que a noite. | |
" | |
Florbela Espanca,"À Morte | |
Morte, minha Senhora Dona Morte, | |
Tão bom que deve ser o teu abraço! | |
Lânguido e doce como um doce laço | |
E como uma raiz, sereno e forte. | |
Não há mal que não sare ou não conforte | |
Tua mão que nos guia passo a passo, | |
Em ti, dentro de ti, no teu regaço | |
Não há triste destino nem má sorte. | |
Dona Morte dos dedos de veludo, | |
Fecha-me os olhos que já viram tudo! | |
Prende-me as asas que voaram tanto! | |
Vim da Moirama, sou filha de rei, | |
Má fada me encantou e aqui fiquei | |
À tua espera... quebra-me o encanto! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Infância | |
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. | |
Minha mãe ficava sentada cosendo. | |
Meu irmão pequeno dormia | |
Eu sozinho, menino entre mangueiras | |
lia história de Robinson Crusoé, | |
comprida história que não acaba mais. | |
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu | |
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu | |
chamava para o café. | |
café preto que nem a preta velha | |
café gostoso | |
café bom | |
Minha mãe ficava sentada cosendo | |
olhando para mim: | |
- Psiu... não corde o menino. | |
Para o berço onde pousou um mosquito | |
E dava um suspiro... que fundo ! | |
Lá longe meu pai campeava | |
no mato sem fim da fazenda. | |
E eu não sabia que minha história | |
era mais bonita que a de Robinson Crusoé. | |
" | |
Olavo Bilac,"No Meio do Caminho | |
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada | |
E triste, e triste e fatigado eu vinha. | |
Tinhas a alma de sonhos povoada, | |
E a alma povoada de sonhos eu tinha... | |
E paramos de súbito na estrada | |
Da vida: longos anos, presa à minha | |
A tua mão, a vista deslumbrada | |
Tive da luz que teu olhar continha. | |
Hoje segues de novo... Na partida | |
Nem o pranto os teus olhos umedece, | |
Nem te comove a dor da despedida. | |
E eu, solitário, volto a face, e tremo, | |
Vendo o teu vulto que desaparece | |
Na extrema curva do caminho extremo. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Garota de Ipanema | |
Olha que coisa mais linda | |
Mais cheia de graça | |
é ela menina, que vem e que passa | |
Num doce balanço a caminho do mar | |
Moça do corpo dourado | |
Do sol de Ipanema | |
O seu balançado é mais que um poema | |
é a coisa mais linda que já vi passar | |
Ai! Como estou tão sozinho | |
Ai! Como tudo é tão triste | |
Ai! A beleza que existe | |
A beleza que não é só minha | |
E também passa sozinha | |
Ai! Se ela soubesse que quando ela passa | |
O mundo interinho se enche de graça | |
E fica mais lindo por causa do amor | |
Só por causa do amor... | |
" | |
Raimundo Correia,"As Pombas | |
Vai-se a primeira pomba despertada ... | |
Vai-se outra mais ... mais outra ... enfim dezenas | |
De pombas vão-se dos pombais, apenas | |
Raia sanguínea e fresca a madrugada ... | |
E à tarde, quando a rígida nortada | |
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, | |
Ruflando as asas, sacudindo as penas, | |
Voltam todas em bando e em revoada... | |
Também dos corações onde abotoam, | |
Os sonhos, um por um, céleres voam, | |
Como voam as pombas dos pombais; | |
No azul da adolescência as asas soltam, | |
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, | |
E eles aos corações não voltam mais... | |
" | |
Cecília Meireles,"Sugestão | |
Sede assim - qualquer coisa | |
serena, isenta, fiel. | |
Flor que se cumpre, | |
sem pergunta. | |
Onda que se esforça, | |
por exercício desinteressado. | |
Lua que envolve igualmente | |
os noivos abraçados | |
e os soldados já frios. | |
Também como este ar da noite: | |
sussurrante de silêncios, | |
cheio de nascimentos e pétalas. | |
Igual à pedra detida, | |
sustentando seu demorado destino. | |
E à nuvem, leve e bela, | |
vivendo de nunca chegar a ser. | |
À cigarra, queimando-se em música, | |
ao camelo que mastiga sua longa solidão, | |
ao pássaro que procura o fim do mundo, | |
ao boi que vai com inocência para a morte. | |
Sede assim qualquer coisa | |
serena, isenta, fiel. | |
Não como o resto dos homens. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Pato | |
Lá vem o Pato | |
Pata aqui, pata acolá | |
La vem o Pato | |
Para ver o que é que há. | |
O Pato pateta | |
Pintou o caneco | |
Surrou a galinha | |
Bateu no marreco | |
Pulou do poleiro | |
No pé do cavalo | |
Levou um coice | |
Criou um galo | |
Comeu um pedaço | |
De jenipapo | |
Ficou engasgado | |
Com dor no papo | |
Caiu no poço | |
Quebrou a tigela | |
Tantas fez o moço | |
Que foi pra panela. | |
" | |
José Craveirinha,"Grito Negro | |
Eu sou carvão! | |
E tu arrancas-me brutalmente do chão | |
e fazes-me tua mina, patrão. | |
Eu sou carvão! | |
E tu acendes-me, patrão, | |
para te servir eternamente como força motriz | |
mas eternamente não, patrão. | |
Eu sou carvão | |
e tenho que arder sim; | |
queimar tudo com a força da minha combustão. | |
Eu sou carvão; | |
tenho que arder na exploração | |
arder até às cinzas da maldição | |
arder vivo como alcatrão, meu irmão, | |
até não ser mais a tua mina, patrão. | |
Eu sou carvão. | |
Tenho que arder | |
Queimar tudo com o fogo da minha combustão. | |
Sim! | |
Eu sou o teu carvão, patrão. | |
" | |
Manuel Bandeira,"RIA, ROSA, RIA | |
A Guimarães Rosa | |
Acaba a Alegria | |
Dizendo-nos: - Ria! | |
Velha companheira, | |
Boa conselheira! | |
Por isso me rio | |
De mim para mim. | |
Rio, rio, rio! | |
E digo-lhes: - Ria, | |
Rosa, noite e dia! | |
No calor, no frio, | |
Ria, ria! Ria, | |
Como lhe aconselha | |
Essa doce velha | |
Cheirando a alecrim, | |
A alegre Alegria! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Certas palavras | |
Certas palavras não podem ser ditas | |
em qualquer lugar e hora qualquer. | |
Estritamente reservadas | |
para companheiros de confiança, | |
devem ser sacralmente pronunciadas | |
em tom muito especial | |
lá onde a polícia dos adultos | |
não divinha nem alcança. | |
Entretanto são palavras simples: | |
definem | |
partes do corpo, movimentos, atos | |
do viver que só os grandes se permitem | |
e a nós é defendido por sentença | |
dos séculos | |
E tudo proibido. Então, falamos. | |
" | |
Herberto Helder,"O olhar é um pensamento | |
Tudo assalta tudo,e eu sou a imagem de tudo. | |
O dia roda o dorso e mostra as queimaduras, | |
a luz cambaleia, | |
a beleza é ameaçadora | |
-não posso escrever mais alto | |
transmitem-se,interiores,as formas. | |
in:Poesia Toda,1990 | |
" | |
Olavo Bilac,"Nel Mezzo del Camin | |
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada | |
E triste, e triste e fatigado eu vinha. | |
Tinhas a alma de sonhos povoada, | |
E alma de sonhos povoada eu tinha... | |
E paramos de súbito na estrada | |
Da vida: longos anos, presa à minha | |
A tua mão, a vista deslumbrada | |
Tive da luz que teu olhar continha. | |
Hoje segues de novo... Na partida | |
Nem o pranto os teus olhos umedece, | |
Nem te comove a dor da despedida. | |
E eu, solitário, volto a face, e tremo, | |
Vendo o teu vulto que desaparece | |
Na extrema curva do caminho extremo. | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). Poema integrante da série Sarças de Fogo. | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Marina Colasanti,"Rota de Colisão | |
De quem é esta pele | |
que cobre a minha mão | |
como uma luva? | |
Que vento é este | |
que sopra sem soprar | |
encrespando a sensível superfície? | |
Por fora a alheia casca | |
dentro a polpa | |
e a distância entre as duas | |
que me atropela. | |
Pensei entrar na velhice | |
por inteiro | |
como um barco | |
ou um cavalo. | |
Mas me surpreendo | |
jovem velha e madura | |
ao mesmo tempo. | |
E ainda aprendo a viver | |
enquanto avanço | |
na rota em cujo fim | |
a vida | |
colide com a morte. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Vinicius de Moraes,"A Foca | |
Quer ver a foca | |
Ficar feliz? | |
É por uma bola | |
No seu nariz. | |
Quer ver a foca | |
Bater palminha? | |
É dar a ela | |
Uma sardinha. | |
Quer ver a foca | |
Fazer uma briga? | |
É espetar ela | |
Bem na barriga! | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"A Confederação dos Tamoios | |
Como da pira extinta a labareda, | |
Ainda o rescaldo crepitante fica, | |
Assim do ardente moço a mente acesa | |
Na desusada luta que a excitara, | |
Ainda, alerta e escaldada se revolve! | |
De um lado e de outro balanceia o corpo, | |
Como após da tormenta o mar banzeiro; | |
Alma e corpo repouso achar não podem. | |
Debalde os olhos cerra; a igreja, as casas, | |
A vila, tudo ante ele se apresenta. | |
Das preces a harmonia inda murmura | |
Como um eco longínquo em seus ouvidos. | |
Os discursos do tio mutilados, | |
Malgrado seu, assaltam-lhe a memória. | |
No espontâneo pensar lançada a mente, | |
Redobrando de força, qual redobra | |
A rapidez do corpo gravitante, | |
Vai discorrendo, e achando em seu arcanos | |
Novas respostas às razões ouvidas. | |
Mas a noilte declina, e branda aragem | |
Começa a refrescar. Do céu os lumes | |
Perdem a nitidez desfalecendo. | |
Assim já frouxo o Pensamento do índio, | |
Entre a vigília e o sono vagueando, | |
Pouco a pouco se olvida, e dorme, sonha, | |
Como imóvel na casa entorpecida, | |
Clausurada a crisálida recobra | |
Outra vida em silêncio, e desenvolve | |
Essas ligeiras asas com que um dia | |
Esvoaçará nos ares perfumados, | |
Onde enquanto reptil não se elevara; | |
Assim a alma, no sono concentrada, | |
Nesse mistério que chamamos sonho, | |
Preludiando a vista do futuro, | |
A póstuma visão preliba às vezes! | |
Faculdade divina, inexplicável | |
A quem só da matéria as leis conhece. | |
Ele sonha... Alto moço se lhe antolha | |
De belo e santo aspecto, parecido | |
Com uma imagem que vira atada a um tronco, | |
E de setas o corpo traspassado, | |
Num altar desse templo, onde estivera, | |
E que tanto na mente lhe ficara, | |
— ""Vem!"" lhe diz ele e ambos vão pelos ares. | |
Mais rápidos que o raio luminoso | |
Vibrado pelo sol no veloz giro, | |
E vão pousar no alcantilado monte, | |
Que curvado domina a Guanabara. | |
Cerrado nevoeiro se estendia | |
Sobre a vasta extensão de espaço em tôrno, | |
Cobertando o verdor da imensa várzea; | |
E o topo da montanha sobranceiro | |
Parecia um penedo no Oceano. | |
Mas o velário de cinzenta névoa | |
Pouco a pouco, subindo adelgaçou-se, | |
E rarefeito enfim, em brancas nuvens. | |
Foi flutuando pelo azul celeste. | |
Que grandeza! Que imensa majestade! | |
Que espantoso prodígio se levanta! | |
Que quadro sem igual em todo o mundo, | |
Onde o sublime e o belo em harmonia | |
O pensamento e a vista atrai, enleva | |
E f az que o coração extasiado | |
Se dilate, se expanda, e bata, e impila | |
O sangue em borbotões pelas artérias! | |
Os olhos encantados se exorbitam, | |
Como as vibradas cordas de uma lira, | |
De almo prazer os nervos estremecem; | |
E o espírito pairando no infinito, | |
Do belo nos arcanos engolfado, | |
Parece alar-se das prisões do corpo. | |
Niterói! Niterói! como és formosa! | |
Eu me glorio de dever-te o braço! | |
Montanhas, várzeas, lagos, mares, ilhas, | |
Prolífica Natura, céu ridente, | |
Léguas e léguas de prodígios tantos. | |
Num todo tão harmônico e sublime, | |
Onde olhos o verão longe deste Éden? | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"Canto Primeiro | |
""(...) quero primeiro | |
Que em torno destas pedras assentados | |
Me contes se em combate, ou de que modo | |
O bravo Comorim perdeu a vida."" | |
""Ai! exclama o Cacique, nenhum homem | |
Morreu ainda por mais nobre causa! | |
Era meu filho!... E como morreria | |
Senão lutando tão audaz guerreiro! | |
""Apenas há três sóis que uns Emboabas, | |
Dos que talvez na Bertioga habitam, | |
Naquela praia embaixo apareceram. | |
Comorim e Iguaçu também andavam | |
Nesse dia fatal por lá caçando. | |
Quem podia prever um mal tão grande? | |
Enquanto num momento, não cuidoso, | |
Pelo bosque meu filho se entranhara, | |
Após um caititu que lhe fugia, | |
Sua irmã, que aqui vês, linda e garbosa, | |
Que vence o saixé na gentileza, | |
E excede o sabiá no meigo canto, | |
Cantando andava só toda entretida | |
A colher uns ingás pela restinga. | |
(...) | |
Aqueles maus a viram, tão sozinha, | |
E assim que a viram, cobiçando-a logo, | |
Quiseram agarrá-la. Ela, gritando, | |
Coitada, como a rola perseguida, | |
No mato se internou. Após correram, | |
Cercando-a, quais jaguaras esfaimadas; | |
Mas ela, pelo irmão chamando sempre, | |
Rompendo as bastas, enleadas ramas, | |
Mais ligeira do que eles lhes fugia. | |
Um mais audaz já quase a segurava, | |
Quando o meu Comorim aparecendo, | |
Já com o arco entesado, e a flecha no alvo, | |
Com pronta morte atravessou-lhe o peito. | |
Outro, que vinha após, co'o braço alçado | |
Para lhe disparar troante bala, | |
Varado o braço, ali caiu bramando. | |
Era a última flecha; e já meu filho | |
Daquele inútil braço ia arrancá-la, | |
E mandá-la de novo a outro ousado, | |
Que vira mais além por entre os ramos, | |
Que dous por detrás o aferraram, | |
E seus punhais nas costas lhe embeberam. | |
Comorim, mesmo assim preso e ferido, | |
Curvou-se um pouco, e súbito saltando, | |
O corpo sacudiu, e os rijos braços, | |
E por terra atirou os dois contrários: | |
Como ligeiro e forte era meu filho! | |
E agarrando-os depois pelos cabelos, | |
Deu co'a cabeça de um contra a do outro, | |
Que batendo quebraram-se estalando, | |
Como estalam batendo as sapucaias! | |
Nenhum mais se mostrou, os mais fugiram. | |
Entretanto Iguaçu vinha gritando, | |
Até que ao longe viu alguns Tamoios, | |
Que a seus gritos pungentes acudiram, | |
E sabendo do caso, sem demora | |
Seguindo-a, foram dar pronto socorro | |
Ao seu valente irmão. Porém, oh mágoa! | |
Já longe do lugar da feroz luta | |
O acharam quase exangue e semimorto. | |
(...) | |
Imagem - 00250007 | |
Publicado no livro A Confederação dos Tamoios: poema (1856). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1949 | |
NOTA: Poema composto de 10 canto" | |
Olavo Bilac,"A Mocidade | |
A mocidade é como a primavera! | |
A alma, cheia de flores resplandece, | |
Crê no Bem, ama a vida, sonha e espera, | |
E a desventura facilmente esquece. | |
É a idade da força e da beleza: | |
Olha o futuro, e inda não tem passado: | |
E, encarando de frente a Natureza, | |
Não tem receio do trabalho ousado. | |
Ama a vigília, aborrecendo o sono; | |
Tem projetos de glória, ama a Quimera; | |
E ainda não dá frutos como o outono, | |
Pois só dá flores como a primavera! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"À Noite Dissolve os Homens | |
A noite | |
desceu. Que noite! | |
Já não enxergo meus irmãos. | |
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam. | |
A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate, | |
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão. | |
A noite caiu. Tremenda, sem esperança... | |
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros. | |
E o amor não abre caminho na noite. | |
A noite é mortal, completa, sem reticências, | |
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer, | |
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes! | |
nas suas fardas. | |
A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... | |
Os suicidas tinham razão. | |
Aurora, entretanto eu te diviso, | |
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender | |
e dos bens que repartirás com todos os homens. | |
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, | |
adivinho-te que sobes, | |
vapor róseo, expulsando a treva noturna. | |
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos, | |
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam | |
na escuridão | |
como um sinal verde e peremptório. | |
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo, | |
minha carne estremece na certeza de tua vinda. | |
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes | |
se enlaçam, | |
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão | |
simples e macio... | |
Havemos de amanhecer. | |
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã | |
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário | |
para colorir tuas pálidas faces, aurora." | |
Florbela Espanca,"Da Minha Janela | |
Mar alto! Ondas quebradas e vencidas | |
Num soluçar aflito e murmurado... | |
Ovo de gaivotas, leve, imaculado, | |
Como neves nos píncaros nascidas! | |
Sol! Ave a tombar, asas já feridas, | |
Batendo ainda num arfar pausado... | |
Ó meu doce poente torturado | |
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas! | |
Meu verso de Samain cheio de graça, | |
Inda não és clarão já és luar | |
Como branco lilás que se desfaça! | |
Amor! teu coração trago-o no peito... | |
Pulsa dentro de mim como este mar | |
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!..." | |
Cecília Meireles,"Timidez | |
Basta-me um pequeno gesto, | |
feito de longe e de leve, | |
para que venhas comigo | |
e eu para sempre te leve... | |
- mas só esse eu não farei. | |
Uma palavra caída | |
das montanhas dos instantes | |
desmancha todos os mares | |
e une as terras mais distantes... | |
- palavra que não direi. | |
Para que tu me adivinhes, | |
entre os ventos taciturnos, | |
apago meus pensamentos, | |
ponho vestidos noturnos, | |
- que amargamente inventei. | |
E, enquanto não me descobres, | |
os mundos vão navegando | |
nos ares certos do tempo, | |
até não se sabe quando... | |
- e um dia me acabarei." | |
Marina Colasanti,"Antes de Virar Gigante | |
No tempo d'eu menina | |
os corredores eram longos | |
as mesas altas | |
as camas enormes. | |
A colher não cabia | |
na minha boca | |
e a tigela de sopa | |
era sempre mais funda | |
do que a fome. | |
No tempo d'eu menina | |
só gigantes moravam | |
lá em casa. | |
Menos meu irmão e eu | |
que éramos gente grande | |
vinda de Lilliput. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Luís de Camões,"Aquela triste e leda madrugada | |
Aquela triste e leda madrugada, | |
cheia toda de mágoa e de piedade, | |
enquanto houver no mundo saudade | |
quero que seja sempre celebrada. | |
Ela só, quando amena e marchetada | |
saía, dando ao mundo claridade, | |
viu apartar-se de üa outra vontade, | |
que nunca poderá ver-se apartada. | |
Ela só viu as lágrimas em fio, | |
de que uns e outros olhos derivadas | |
se acrescentaram em grande e largo rio. | |
Ela viu as palavras magoadas | |
que puderam tornar o fogo frio, | |
e dar descanso às almas condenadas. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poema que Aconteceu | |
Nenhum desejo neste domingo | |
nenhum problema nesta vida | |
o mundo parou de repente | |
os homens ficaram calados | |
domingo sem fim nem começo. | |
A mão que escreve este poema | |
não sabe o que está escrevendo | |
mas é possível que se soubesse | |
nem ligasse. | |
" | |
Clarice Lispector,"Quero Escrever o Borrão Vermelho de Sangue | |
Quero escrever o borrão vermelho de sangue | |
com as gotas e coágulos pingando | |
de dentro para dentro. | |
Quero escrever amarelo-ouro | |
com raios de translucidez. | |
Que não me entendam | |
pouco-se-me-dá. | |
Nada tenho a perder. | |
Jogo tudo na violência | |
que sempre me povoou, | |
o grito áspero e agudo e prolongado, | |
o grito que eu, | |
por falso respeito humano, | |
não dei. | |
Mas aqui vai o meu berro | |
me rasgando as profundas entranhas | |
de onde brota o estertor ambicionado. | |
Quero abarcar o mundo | |
com o terremoto causado pelo grito. | |
O clímax de minha vida será a morte. | |
Quero escrever noções | |
sem o uso abusivo da palavra. | |
Só me resta ficar nua: | |
nada tenho mais a perder. | |
" | |
Joaquim Manuel de Macedo,"A Bela Encantada | |
(Escrito no álbum de uma Senhora) | |
Mancebo imprudente, leviano mortal, | |
Ausenta-te, foge, se não, ai de ti! | |
Não fiques num sítio, qu'é sítio fatal, | |
Não pares aqui. | |
(...) | |
Se a visses... tão bela!... de branco vestida, | |
Coas negras madeixas no colo a ondear, | |
Tão só, qual princesa de um trono abatida, | |
Cismando ao luar... | |
Se a visses... tão branca, da lua ao palor | |
Uma harpa sonora então dedilhar, | |
E à margem do lago ternuras de amor | |
Essa harpa entornar... | |
Se então tu a visses... tão branca e tão bela | |
Com a harpa inclinada no seio ao revés, | |
Vertendo harmonias, com a lua sobre ela, | |
E o lago a seus pés... | |
Se a visses... não vejas, incauto mortal; | |
Ah! foge! ind'é tempo; não pares aqui; | |
Não fiques num sítio que é sítio fatal; | |
Se não — ai de ti!... | |
Não vejas a bela, que em vê-la há perigo; | |
Estila dos lábios amávio traidor; | |
Não vejas!... se a vires... — eu sei o que digo!... - | |
Tu morres de amor! | |
Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1849 | |
In: GUANABARA: revista mensal, artística, científica e literária. Rio de Janeiro, v.1, n.5, p.178-180. 185" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Mãos Dadas | |
Não serei o poeta de um mundo caduco. | |
Também não cantarei o mundo futuro. | |
Estou preso à vida e olho meus companheiros. | |
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. | |
Entre eles, considero a enorme realidade. | |
O presente é tão grande, não nos afastemos. | |
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. | |
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, | |
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, | |
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, | |
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. | |
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, | |
a vida presente. | |
" | |
Cecília Meireles,"Por que nome chamaremos | |
Por que nome chamaremos | |
quando nos sentirmos pálidos | |
sobre os abismos supremos? | |
De que rosto, olhar, instante, | |
veremos brilhar as âncoras | |
para as mãos agonizantes? | |
Que salvação vai ser essa, | |
com tão fortes asas súbitas, | |
na definitiva pressa? | |
Ó grande urgência do aflito! | |
Ecos de misericórdia | |
procuram lágrima e grito, | |
– andam nas ruas do mundo, | |
pondo sedas de silêncio | |
em lábios de moribundo. | |
" | |
Gonçalves Dias,"A Concha e a Virgem | |
Linda concha que passava, | |
Boiando por sobre o mar, | |
Junto a uma rocha, onde estava | |
Triste donzela a pensar, | |
Perguntou-lhe: — ""Virgem bela, | |
Que fazes no teu cismar?"" | |
— ""E tu"", pergunta a donzela, | |
""Que fazes no teu vagar?"" | |
Responde a concha: — ""Formada | |
Por estas águas do mar, | |
Sou pelas águas levada, | |
Nem sei onde vou parar!"" | |
Responde a virgem sentida, | |
Que estava triste a pensar: | |
— ""Eu também vago na vida, | |
Como tu vagas no mar! | |
""Vais duma a outra das vagas, | |
Eu dum a outro cismar; | |
Tu indolente divagas, | |
Eu sofro triste a cantar. | |
""Vais onde te leva a sorte, | |
Eu, onde me leva Deus: | |
Buscas a vida, — eu a morte; | |
Buscas a terra, — eu os céus! | |
" | |
Clarice Lispector,"Nossa Truculência | |
Quando penso na alegria voraz | |
com que comemos galinha ao molho pardo, | |
dou-me conta de nossa truculência. | |
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, | |
tanto gosto delas vivas | |
mexendo o pescoço feio | |
e procurando minhocas. | |
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue? | |
Nunca. | |
Nós somos canibais, | |
é preciso não esquecer. | |
E respeitar a violência que temos. | |
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, | |
comeríamos gente com seu sangue. | |
Minha falta de coragem de matar uma galinha | |
e no entanto comê-la morta | |
me confunde, espanta-me, | |
mas aceito. | |
A nossa vida é truculenta: | |
nasce-se com sangue | |
e com sangue corta-se a união | |
que é o cordão umbilical. | |
E quantos morrem com sangue. | |
É preciso acreditar no sangue | |
como parte de nossa vida. | |
A truculência. | |
É amor também. | |
" | |
Olavo Bilac,"Língua Portuguesa | |
Última flor do Lácio, inculta e bela, | |
És, a um tempo, esplendor e sepultura: | |
Ouro nativo, que na ganga impura | |
A bruta mina entre os cascalhos vela... | |
Amo-te assim, desconhecida e obscura, | |
Tuba de alto clangor, lira singela, | |
Que tens o trom e o silvo da procela, | |
E o arrolo da saudade e da ternura! | |
Amo o teu viço agreste e o teu aroma | |
De virgens selvas e de oceano largo! | |
Amo-te, ó rude e doloroso idioma, | |
Em que da voz materna ouvi: ""meu filho!"", | |
E em que Camões chorou, no exílio amargo, | |
O gênio sem ventura e o amor sem brilho! | |
Publicado no livro Tarde (1919). | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Jorge de Lima,"Mulher Proletária | |
Mulher proletária — única fábrica | |
que o operário tem, (fabrica filhos) | |
tu | |
na tua superprodução de máquina humana | |
forneces anjos para o Senhor Jesus, | |
forneces braços para o senhor burguês. | |
Mulher proletária, | |
o operário, teu proprietário | |
há de ver, há de ver: | |
a tua produção, | |
a tua superprodução, | |
ao contrário das máquinas burguesas | |
salvar o teu proprietário. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Se se Morre de Amor! | |
Meere und Berge und Horizonte zwischen den | |
Liedenben — aber die Seelen versetzen sich aus | |
dem staubigen Kerker und treffen sich im Paradiese | |
der Liebe. | |
SCHILLER. Die Rauber. | |
Se se morre de amor! — Não, não se morre, | |
Quando é fascinação que nos surpreende | |
De ruidoso sarau entre os festejos; | |
Quando luzes, calor, orquestra e flores | |
Assomos de prazer nos raiam n'alma, | |
Que embelezada e solta em tal ambiente | |
No que ouve, e no que vê prazer alcança! | |
(...) | |
Amor é vida; é ter constantemente | |
Alma, sentidos, coração — abertos, | |
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos, | |
D'altas virtudes, té capaz de crimes! | |
Compr'ender o infinito, a imensidade, | |
E a natureza e Deus; gostar dos campos, | |
D'aves, flores, murmúrios solitários; | |
Buscar tristeza, a soledade, o ermo, | |
E ter o coração em riso e festa; | |
E à branda festa, ao riso da nossa alma | |
Fontes de pranto intercalar sem custo | |
Conhecer o prazer e a desventura | |
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto | |
O ditoso, o misérrimo dos entes: | |
Isso é amor, e desse amor se morre! | |
Amar, e não saber, não ter coragem | |
Para dizer que amor que em nós sentimos; | |
Temer qu'olhos profanos nos devassem | |
O templo, onde a melhor porção da vida | |
Se concentra; onde avaros recatamos | |
Essa fonte de amor, esses tesouros | |
Inesgotáveis, d'ilusões floridas; | |
Sentir, sem que se veja, a quem se adora, | |
Compr'ender, sem ouvir, seus pensamentos, | |
Segui-la, sem poder fitar seus olhos, | |
Amá-la, sem ousar dizer que amamos, | |
E, temendo roçar os seus vestidos, | |
Arder por afogá-la em mil abraços: | |
Isso é amor, e desse amor se morre! | |
(...) | |
Publicado no livro Cantos (1857). Poema integrante da série Novos Cantos. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Al Berto,"Pernoitas em Mim | |
pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória... amas ou finges morrer pressinto o aroma luminoso dos fogos escuto o rumor da terra molhada a fala queimada das estrelas é noite ainda o corpo ausente instala-se vagarosamente envelheço com a nómada solidão das aves já não possuo a brancura oculta das palavras e nenhum lume irrompe para beberes ( in 'Rumor dos Fogos' )" | |
Thiago de Mello,"Já Faz Tempo que Escolhi | |
A luz que me abriu os olhos | |
para a dor dos deserdados | |
e os feridos de injustiça, | |
não me permite fechá-los | |
nunca mais, enquanto viva. | |
Mesmo que de asco ou fadiga | |
me disponha a não ver mais, | |
ainda que o medo costure | |
os meus olhos, já não posso | |
deixar de ver: a verdade | |
me tocou, com sua lâmina | |
de amor, o centro do ser. | |
Não se trata de escolher | |
entre cegueira e traição. | |
Mas entre ver e fazer | |
de conta que nada vi | |
ou dizer da dor que vejo | |
para ajudá-la a ter fim, | |
já faz tempo que escolhi. | |
Rio de Janeiro, 1981 | |
Publicado no livro Mormaço na Floresta (1981). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
Miguel Torga,"Prospecção | |
Não são pepitas de oiro que procuro. | |
Oiro dentro de mim, terra singela! | |
Busco apenas aquela | |
Universal riqueza | |
Do homem que revolve a solidão: | |
O tesoiro sagrado | |
De nenhuma certeza, | |
Soterrado | |
Por mil certezas de aluvião. | |
Cavo, | |
Lavo, | |
Peneiro, | |
Mas só quero a fortuna | |
De me encontrar. | |
Poeta antes dos versos | |
E sede antes da fonte. | |
Puro como um deserto. | |
Inteiramente nu e descoberto. | |
" | |
Ruy Belo,"Mas que sei eu | |
Mas que sei eu das folhas no outono | |
ao vento vorazmente arremessadas | |
quando eu passo pelas madrugadas | |
tal como passaria qualquer dono? | |
Eu sei que é vão o vento e lento o sono | |
e acabam coisas mal principiadas | |
no ínvio precipício das geadas | |
que pressinto no meu fundo abandono | |
Nenhum súbito súbdito lamenta | |
a dor de assim passar que me atormenta | |
e me ergue no ar como outra folha | |
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs? | |
As coisas vêm vão e são tão vãs | |
como este olhar que ignoro que me olha | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"POEMA DO JORNAL | |
O fato ainda não acabou de acontecer | |
e já a mão nervosa do repórter | |
o transforma em notícia. | |
O marido está matando a mulher. | |
A mulher ensangüentada grita. | |
Ladrões arrombam o cofre. | |
A pena escreve. | |
A polícia dissolve o meeting. | |
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. | |
" | |
Álvares de Azevedo,"Minha Desgraça | |
Minha desgraça, não, não é ser poeta, | |
Nem na terra de amor não ter um eco, | |
E meu anjo de Deus, o meu planeta | |
Tratar-me como trata-se um boneco.... | |
Não é andar de cotovelos rotos, | |
Ter duro como pedra o travesseiro.... | |
Eu sei.... O mundo é um lodaçal perdido | |
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro.... | |
Minha desgraça, ó cândida donzela, | |
O que faz que o meu peito assim blasfema, | |
E' ter para escrever todo um poema, | |
E não ter um vintém para uma vela. | |
Publicado no livro Poesias de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1853). Poema integrante da série Segunda Parte. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Manuel Bandeira,"SEXTILHAS ROMÂNTICAS | |
Paisagens da minha terra, | |
Onde o rouxinol não canta | |
- Mas que importa o rouxinol? | |
Frio, nevoeiros da serra | |
Quando a manhã se levanta | |
Toda banhada de sol! | |
Sou romântico? Concedo. | |
Exibo, sem evasiva, | |
A alma ruim que Deus me deu. | |
Decorei ""Amor e medo"", | |
""No lar"", ""Meus oito anos""... Viva | |
José Casimiro Abreu! | |
Sou assim, por vício inato. | |
Ainda hoje gosto de *Diva*, | |
Nem não posso renegar | |
Peri, tão pouco índio, é fato, | |
Mas tão brasileiro... Viva, | |
Viva José de Alencar! | |
Paisagens da minha terra, | |
Onde o rouxinol não canta | |
- Pinhões para o rouxinol! | |
Frio, nevoeiros da serra | |
Quando a manhã se levanta | |
Toda banhada de sol! | |
Ai tantas lembranças boas! | |
Massangana de Nabuco! | |
Muribara de meus pais! | |
Lagoas das Alagoas, | |
Rios do meu Pernambuco, | |
Capos de Minas Gerais! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Relógio | |
Passa, tempo, tic-tac | |
Tic-tac, passa, hora | |
Chega logo, tic-tac | |
Tic-tac, e vai-te embora | |
Passa, tempo | |
Bem depressa | |
Não atrasa | |
Não demora | |
Que já estou | |
Muito cansado | |
Já perdi | |
Toda a alegria | |
De fazer | |
Meu tic-tac | |
Dia e noite | |
Noite e dia | |
Tic-tac | |
Tic-tac | |
Tic-tac . . . | |
" | |
Cecília Meireles,"Atitude | |
Minha esperança perdeu seu nome... | |
Fechei meu sonho, para chamá-la. | |
A tristeza transfigurou-me | |
como o luar que entra numa sala. | |
O último passo do destino | |
parará sem forma funesta, | |
e a noite oscilará como um dourado sino | |
derramando flores de festa. | |
Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando | |
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes. | |
E um campo de estrelas irá brotando | |
atrás das lembranças ardentes. | |
" | |
Florbela Espanca,"A Vida | |
É vão o amor, o ódio, ou o desdém; | |
Inútil o desejo e o sentimento... | |
Lançar um grande amor aos pés de alguém | |
O mesmo é que lançar flores ao vento! | |
Todos somos no mundo ""Pedro Sem"", | |
Uma alegria é feita dum tormento, | |
Um riso é sempre o eco dum lamento, | |
Sabe-se lá um beijo de onde vem! | |
A mais nobre ilusão morre... desfaz-se... | |
Uma saudade morta em nós renasce | |
Que no mesmo momento é já perdida... | |
Amar-te a vida inteira eu não podia, | |
A gente esquece sempre o bom de um dia. | |
Que queres, meu Amor, se é isto a vida! | |
" | |
Ruy Belo,"Cadernos e Poesia - E TUDO ERA POSSÍVEL | |
Na minha juventude antes de ter saído | |
da casa de meus pais disposto a viajar | |
eu conhecia já o rebentar do mar | |
das páginas dos livros que já tinha lido | |
Chegava o mês de maio era tudo florido | |
o rolo das manhãs punha-se a circular | |
e era só ouvir o sonhador falar | |
da vida como se ela houvesse acontecido | |
E tudo se passava numa outra vida | |
e havia para as coisa sempre uma saída | |
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer | |
Só sei que tinha o pode duma criança | |
entre as coisas e mim havia vizinhança | |
e tudo era possível era só querer" | |
Maria Teresa Horta,"Modos de amar | |
Modo de amar – I | |
Lambe-me as seios | |
desmancha-me a loucura | |
usa-me as coxas | |
devasta-me o umbigo | |
abre-me as pernas | |
põe-nas nos teus ombros | |
e lentamente faz o que te digo: | |
Modo de amar – II | |
Por-me-ás de borco, | |
assim inclinada... | |
a nuca a descoberto, | |
o corpo em movimento... | |
a testa a tocar | |
a almofada, | |
que os cabelos afloram, | |
tempo a tempo... | |
Por-me-ás de borco; | |
Digo: | |
ajoelhada... | |
as pernas longas | |
firmadas no lençol... | |
e não há nada, meu amor, | |
já nada, que não façamos como quem consome... | |
(Por-me-ás de borco, | |
assim inclinada... | |
os meus seios pendentes | |
nas tuas mãos fechadas.) | |
Modo de amar – III | |
É bom nadar assim | |
em cima do teu corpo | |
enquanto tu mergulhas já dentro do meu | |
Ambos piscinas que a nado atravessamos | |
de costas tu meu amor | |
de bruços eu | |
Modo de amar – IV | |
Encostada de costas | |
ao teu peito | |
em leque as pernas | |
abertas | |
o ventre inclinado | |
ambos de pé | |
formando lentos gestos | |
as sombras brandas | |
tombadas no soalho | |
Modo de amar – V | |
Docemente amor | |
ainda docemente | |
o tacto é pouco | |
e curvo sob os lábios | |
e se um anel no corpo | |
é saliente | |
digamos que é da pedra | |
em que se rasga | |
Opala enorme | |
e morna | |
tão fremente | |
dália suposta | |
sob o calor da carne | |
lábios cedidos | |
de pétalas dormentes | |
Louca ametista | |
com odores de tarde | |
Avidamente amor | |
com desespero e calma | |
as mãos subindo | |
pela cintura dada | |
aos dedos puros | |
numa aridez de praia | |
que a curvam loucos até ao chão da sala | |
Ferozmente amor | |
com torpidez e raiva | |
as ancas descendo como cabras | |
tão estreitas e duras | |
que desarmam | |
a tepidez das minhas | |
que se abrem | |
E logo os ombros | |
descaem | |
e os cabelos | |
desfalecem as coxas que retomam | |
das tuas | |
o pecado | |
e o vencê-lo | |
em cada movimento em que se domam | |
Suavemente amor | |
agora velozmente | |
os rins suspensos | |
os pulsos | |
e as espáduas | |
o ventre erecto | |
enquanto vai crescendo | |
planta viva entre as minhas nádegas | |
Modo de amar – Vl | |
Inclina os ombros | |
e deixa | |
que as minhas mãos avancem | |
na branda madeira | |
Na densa madeixa do teu ventre | |
Deixa | |
que te entreabra as pernas | |
docemente | |
Modo de amar – VII | |
Secreto o nó na curva | |
do meu espasmo | |
E o cume mais claro | |
dos joelhos | |
que desdobrados jorram dos espelhos | |
ou dos teus ombros os meus: | |
flancos | |
na luz de maio | |
Modo de amar – VIII | |
Que macias as pernas | |
na penumbra | |
e as ancas | |
subidas | |
nos dedos que as desviam | |
Entreabro devagar | |
a fenda – o fundo | |
a febre | |
dos meus lábios | |
e a tua língua | |
Vagarosa: | |
toma – morde | |
lambe | |
essa humidade esguia | |
Modo de amar – IX | |
Enlaçam as pernas | |
as pernas | |
e as ancas | |
o ar estagnado | |
que se estende | |
no quarto | |
As pernas que se deitam | |
ao comprido | |
sob as pernas | |
E sobre as pernas vencem o gemido | |
Flor nascida no vagar do quarto | |
Modo de amar – X | |
A praia da memória | |
a sulcos feita | |
a partir da cintura: | |
a boca | |
os ombros | |
na tua mansa língua que caminha | |
a abrir-me devagar | |
a pouco e pouco | |
Globo onde a sede | |
se eterniza | |
Piscina onde o tempo se desmancha | |
a anca repousada | |
que inclinas | |
as pernas retezadas que levantas | |
E logo | |
são os dentes que limitam | |
mas logo | |
estão os labios que adormentam | |
no quente retomar de uma saliva | |
que me penetra em vácuo | |
até ao ventre | |
o vínculo do vento | |
a vastidão do tempo | |
o vício dos dedos | |
no cabelo | |
E o rigor dos corpos | |
que já esquece | |
na mais lenta maneira de vencê-los | |
Modo de amar – XI | |
((Teu) Baixo ventre) | |
Nunca adormece a boca no | |
teu peito | |
a minha boca no teu baixo | |
ventre | |
a beber devagar o que é | |
desfeito | |
Modo de amar – XII | |
(Os testiculos) | |
Tenho nas mãos | |
teus testiculos | |
e a boca já tão perto | |
que deles te sinto | |
o vício | |
num gosto de vinho aberto | |
Modo de amar – XIII | |
(As pedras – As pernas) | |
São as pedras | |
meus seios | |
São as pernas | |
pele e brandura | |
no interior dos | |
lábios | |
rosa de leite | |
que sobe devagar | |
na doce pedra | |
do muco dos meus lábios | |
São as pedras | |
meus seios | |
São as pernas | |
Pêssegos nus corpo | |
descascados | |
Saliva acesa | |
que a língua vai cedendo | |
o gozo em cima... | |
na pedra dos meus | |
lábios | |
Jogo do corpo | |
a roçar o tempo | |
que já passado só se de memória, | |
a mão dolente | |
como quem masturba entre os joelhos... | |
uma longa história... | |
Estrada ocupada | |
onde se vislumbra | |
(joelhos desviados na almofada ) | |
assim aberta o fim de que desfruta | |
o fruto do odor | |
o fundo todo | |
do corpo já fechado. | |
Modo de amar – XIV | |
(As rosas nos joelhos) | |
São grinaldas de rosas | |
à roda | |
dos joelhos | |
O âmbar dos teus dentes | |
nos sentidos | |
O templo da boca | |
no côncavo do espelho | |
onde o meu corpo espia | |
os teus gemidos | |
É o gomo depois... | |
e em seguida a polpa... | |
o penetrar do dedo... | |
O punho do punhal | |
que na carne enterras | |
docemente | |
como quem adormenta | |
o que é fatal | |
É a urze debaixo | |
e o fogo que acalenta | |
o peixe | |
que desliza no umbigo | |
piscina funda | |
na boca mais sedenta bordada a cuspo | |
na pele do umbigo | |
E se desdigo a febre | |
dos teus olhos | |
logo me entrego à febre | |
do teu ventre | |
que vai vencendo | |
as rosas – os escolhos | |
à roda dos joelhos, docemente. | |
Modo de amar – XV | |
(A boca – A rosa) | |
Entreabre-se a boca | |
na saliva da rosa | |
no raso da fenda | |
na fissura das pernas | |
Entreabre-se a rosa | |
na boca que descerra | |
no topo do corpo | |
a rosa entreaberta | |
E prolonga-se a haste | |
a língua na fissura | |
na boca da rosa | |
na caverna das pernas | |
que aí se entre-curva | |
se afunda | |
se perde | |
se entreabre a rosa | |
entre a boca | |
das pétalas | |
" | |
Al Berto,"Recado | |
ouve-me que o dia te seja limpo e a cada esquina de luz possas recolher alimento suficiente para a tua morte vai até onde ninguém te possa falar ou reconhecer - vai por esse campo de crateras extintas - vai por essa porta de água tão vasta quanto a noite deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te e as loucas aveias que o ácido enferrujou erguerem-se na vertigem do voo - deixa que o outono traga os pássaros e as abelhas para pernoitarem na doçura do teu breve coração - ouve-me que o dia te seja limpo e para lá da pele constrói o arco de sal a morada eterna - o mar por onde fugirá o etéreo visitante desta noite não esqueças o navio carregado de lumes de desejos em poeira - não esqueças o ouro o marfim - os sessenta comprimidos letais ao pequeno-almoço" | |
Vinicius de Moraes,"O Elefantinho | |
Onde vais, elefantinho | |
Correndo pelo caminho | |
Assim tão desconsolado? | |
Andas perdido, bichinho | |
Espetaste o pé no espinho | |
Que sentes, pobre coitado? | |
— Estou com um medo danado | |
Encontrei um passarinho! | |
" | |
Florbela Espanca,"Loucura | |
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada | |
Pavorosa! Não sei onde era dantes. | |
Meu solar, meus palácios, meus mirantes! | |
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!... | |
Passa em tropel febril a cavalgada | |
Das paixões e loucuras triunfantes! | |
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes! | |
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!... | |
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio! | |
Loucura a esboçar-se, a enegrecer | |
Cada vez mais as trevas do meu seio! | |
Ó pavoroso mal de ser sozinha! | |
Ó pavoroso e atroz mal de trazer | |
Tantas almas a rir dentro da minha! | |
" | |
Manuel Bandeira,"RENÚNCIA | |
Chora de manso e no íntimo... procura | |
Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia: | |
O mundo é sem piedade e até riria | |
Da tua inconsolável amargura. | |
Só a dor enobrece e é grande e é pura. | |
Aprende a amá-la que a amarás um dia. | |
Então ela será tua alegria, | |
E será ela só tua ventura... | |
A vida é vã como a sombra que passa | |
Sofre sereno e de alma sombranceira | |
Sem um grito sequer tua desgraça. | |
Encerra em ti tua tristeza inteira | |
E pede humildemente a Deus que a faça | |
Tua doce e constante companheira... | |
" | |
Marina Colasanti,"Canção para um Homem e um Rio | |
Porque era um homem sincero | |
eu o levei ao rio entre junquilhos. | |
Mas sincero não era | |
era só homem | |
e deixei nos junquilhos a esperança | |
de dar à minha espera serventia. | |
Porque era um homem forte | |
eu o levei ao rio entre junquilhos. | |
Mas forte ele não era | |
era só homem | |
e entre pedras deixei o meu desejo | |
de abandonar o arado, a forja, e a lança. | |
Porque podia me amar | |
eu o levei ao rio entre junquilhos. | |
Mas amante não era | |
era só homem | |
e na água afoguei a minha sede | |
de palavras mais doces que ambrosia. | |
Porque era um homem | |
só homem | |
eu o levei ao rio entre junquilhos. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Santa Rita Durão,"Caramuru | |
Canto II | |
XVII | |
Não era assim nas aves fugitivas, | |
Que umas frechava no ar, e outras em laços | |
Com arte o caçador tomava vivas; | |
Uma, porém, nos líquidos espaços | |
Faz com a pluma as setas pouco ativas, | |
Deixando a lisa pena os golpes lassos. | |
Toma-a de mira Diogo e o ponto aguarda: | |
Dá-lhe um tiro e derruba-a com a espingarda. | |
Estando a turba longe de cuidá-lo, | |
Fica o bárbaro ao golpe estremecido | |
E cai por terra no tremendo abalo | |
Da chama do fracasso e do estampido; | |
Qual do hórrido trovão com raio e estalo | |
Algum junto a quem cai fica aturdido, | |
Tal Gupeva ficou, crendo formada | |
No arcabuz de Diogo uma trovoada. | |
Toda em terra prostrada, exclama e grita | |
A turba rude em mísero desmaio, | |
E faz o horror que estúpida repita | |
Tupã, Caramuru, temendo um raio. | |
Pretendem ter por Deus, quando o permita | |
O que estão vendo em pavoroso ensaio, | |
Entre horríveis trovões do márcio jogo, | |
Vomitar chamas e abrasar com fogo. | |
Desde esse dia, é fama que por nome | |
Do grão Caramuru foi celebrado | |
O forte Diogo; e que escutado dome | |
Este apelido o bárbaro espantado. | |
Indicava o Brasil no sobrenome, | |
Que era um dragão dos mares vomitado; | |
Nem de outra arte entre nós antiga idade | |
Tem Joce, Apolo e Marte por deidade. | |
" | |
Ruy Belo,"Para a dedicação de um homem | |
Terrível é o homem em quem o senhor desmaiou o olhar furtivo das searas ou reclinou a cabeça ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina Não há conspiração de folhas que recolha a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro quando caminha pela tarde acima A morte é a grande palavra para esse homem não há outra que o diga a ele próprio É terrível ter o destino da onda anónima morta na praia" | |
Cecília Meireles,"Romance II ou do Ouro Incansável | |
Mil bateias vão rodando | |
sobre córregos escuros; | |
a terra vai sendo aberta | |
por intermináveis sulcos; | |
infinitas galerias | |
penetram morros profundos. | |
De seu calmo esconderijo, | |
o ouro vem, dócil e ingênuo; | |
torna-se pó, folha, barra, | |
prestígio, poder, engenho . . . | |
É tão claro! — e turva tudo: | |
honra, amor e pensamento. | |
Borda flores nos vestidos, | |
sobe a opulentos altares, | |
traça palácios e pontes, | |
eleva os homens audazes, | |
e acende paixões que alastram | |
sinistras rivalidades. | |
Pelos córregos, definham | |
negros a rodar bateias. | |
Morre-se de febre e fome | |
sobre a riqueza da terra: | |
uns querem metais luzentes, | |
outros, as redradas pedras. | |
Ladrões e contrabandistas | |
estão cercando os caminhos; | |
cada família disputa | |
privilégios mais antigos; | |
os impostos vão crescendo | |
e as cadeias vão subindo. | |
Por ódio, cobiça, inveja, | |
vai sendo o inferno traçado. | |
Os reis querem seus tributos, | |
— mas não se encontram vassalos. | |
Mil bateias vão rodando, | |
mil bateias sem cansaço. | |
Mil galerias desabam; | |
mil homens ficam sepultos; | |
mil intrigas, mil enredos | |
prendem culpados e justos; | |
já ninguém dorme tranqüilo, | |
que a noite é um mundo de sustos. | |
Descem fantasmas dos morros, | |
vêm almas dos cemitérios: | |
todos pedem ouro e prata, | |
e estendem punhos severos, | |
mas vão sendo fabricadas | |
muitas algemas de ferro. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Aqui neste profundo apartamento | |
Aqui neste profundo apartamento | |
Em que, não por lugar, mas mente estou, | |
No claustro de ser eu, neste momento | |
Em que me encontro e sinto-me o que vou, | |
Aqui, agora, rememoro | |
Quanto de mim deixer de ser | |
E, inutilmente, [....] choro | |
O que sou e não pude ter. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"No Meio do Caminho | |
No | |
meio do caminho tinha uma pedra | |
tinha uma pedra no meio do caminho | |
tinha uma pedra | |
no meio do caminho tinha uma pedra. | |
Nunca me esquecerei desse acontecimento | |
na vida de minhas retinas tão fatigadas. | |
Nunca me esquecerei que no meio do caminho | |
tinha uma pedra | |
tinha uma pedra no meio do caminho | |
no meio do caminho tinha uma pedra. | |
" | |
Maria Teresa Horta,"A Vagina | |
É cálida flor | |
E trópica mansamente | |
De leite entreaberta às tuas | |
Mãos | |
Feltro das pétalas que por dentro | |
Tem o felpo das pálpebras | |
Da língua a lentidão | |
Guelra do corpo | |
Pulmão que não respira | |
Dobada em muco | |
Tecida em água | |
Flor carnívora voraz do próprio | |
suco | |
No ventre entorpecida | |
Nas pernas sequestrada. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Girassol | |
Sempre que o sol | |
Pinta de anil | |
Todo o céu | |
O girassol | |
Fica um gentil | |
Carrossel. | |
O girassol é o carrossel das abelhas. | |
Pretas e vermelhas | |
Ali ficam elas | |
Brincando, fedelhas | |
Nas pétalas amarelas. | |
— Vamos brincar de carrossel, pessoal? | |
— ""Roda, roda, carrossel | |
Roda, roda, rodador | |
Vai rodando, dando mel | |
Vai rodando, dando flor"". | |
— Marimbondo não pode ir que é bicho mau! | |
— Besouro é muito pesado! | |
— Borboleta tem que fingir de borboleta na | |
entrada! | |
— Dona Cigarra fica tocando seu realejo! | |
— ""Roda, roda, carrossel | |
Gira, gira, girassol | |
Redondinho como o céu | |
Marelinho como o sol"". | |
E o girassol vai girando dia afora . . . | |
O girassol é o carrossel das abelhas. | |
" | |
Mário Quintana,"Quem Sabe um Dia | |
Quem | |
sabe um dia | |
Quem sabe um seremos | |
Quem sabe um viveremos | |
Quem sabe um morreremos! | |
Quem é que | |
Quem é macho | |
Quem é fêmea | |
Quem é humano, apenas! | |
Sabe amar | |
Sabe de mim e de si | |
Sabe de nós | |
Sabe ser um! | |
Um dia | |
Um mês | |
Um ano | |
Um(a) vida! | |
Sentir primeiro, pensar depois | |
Perdoar primeiro, julgar depois | |
Amar primeiro, educar depois | |
Esquecer primeiro, aprender depois | |
Libertar primeiro, ensinar depois | |
Alimentar primeiro, cantar depois | |
Possuir primeiro, contemplar depois | |
Agir primeiro, julgar depois | |
Navegar primeiro, aportar depois | |
Viver primeiro, morrer depois | |
" | |
Chacal,"Ai de mim, aipim | |
ai de mim, aipim. | |
ô inhame, a batata é uma puta barata. deixa | |
ela pro nabo nababo que baba de bobo. transa | |
uma com a cebola. | |
aquele hálito? que hábito! me faz chorar. | |
então procura uma cenoura. | |
coradinha, mas muito enrustida. | |
a abóbora tá aí mesmo. | |
como eu gosto de abóbora. | |
então namora uma. | |
falô. vou pegar meu gorrinho e sair poraí pra | |
procurar uma abóbora maneira | |
té mais, aimpim | |
té mais, inhame | |
" | |
Fernando Pessoa,"Andavam de noite aos segredos | |
ANDAVAM de noite aos segredos | |
Só porque era noite... | |
Os bosques enchiam de medos | |
Quem quer que se afoite... | |
Diziam [?] palavras que pesam [?] | |
À sombra de alguém... | |
Ninguém os conhece, e passam... | |
Não eram ninguém... | |
Fica só na aragem e na ânsia | |
Saudade a fingir... | |
Foi como se fora distância... | |
Eu torno a dormir. | |
" | |
Álvares de Azevedo,"Meu Sonho | |
EU | |
Cavaleiro das armas escuras, | |
Onde vais pelas trevas impuras | |
Com a espada sanguenta na mão? | |
Porque brilham teus olhos ardentes | |
E gemidos nos lábios frementes | |
Vertem fogo do teu coração? | |
Cavaleiro, quem és? o remorso? | |
Do corcel te debruças no dorso.... | |
E galopas do vale através... | |
Oh! da estrada acordando as poeiras | |
Não escutas gritar as caveiras | |
E morder-te o fantasma nos pés? | |
Onde vais pelas trevas impuras, | |
Cavaleiro das armas escuras, | |
Macilento qual morto na tumba?... | |
Tu escutas.... Na longa montanha | |
Um tropel teu galope acompanha? | |
E um clamor de vingança retumba? | |
Cavaleiro, quem és? — que mistério, | |
Quem te força da morte no império | |
Pela noite assombrada a vagar? | |
O FANTASMA | |
Sou o sonho de tua esperança, | |
Tua febre que nunca descansa, | |
O delírio que te há de matar!... | |
Publicado no livro Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1862). Poema integrante da série Lira dos Vinte Anos: Continuação. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Casimiro de Abreu,"Moreninha | |
Moreninha, Moreninha, | |
Tu és do campo a rainha, | |
Tu és senhora de mim; | |
Tu matas todos d'amores, | |
Faceira, vendendo as flores | |
Que colhes no teu jardim. | |
(...) | |
Morena, minha Morena, | |
És bela, mas não tens pena | |
De quem morre de paixão! | |
— Tu vendes flores singelas | |
E guardas as flores belas, | |
As rosas do coração?!.. | |
Moreninha, Moreninha, | |
Tu és das belas rainha, | |
Mas nos amores és má; | |
— Como tu ficas bonita | |
Co'as tranças presas na fita, | |
Co'as flores no samburá! | |
Eu disse então: — ""Meus amores, | |
""Deixa mirar tuas flores, | |
""Deixa perfumes sentir"" | |
Mas naquele doce enleio, | |
Em vez das flores, no seio, | |
No seio te fui bulir! | |
Como nuvem desmaiada | |
Se tinge de madrugada | |
Ao doce albor da manhã; | |
Assim ficaste, querida, | |
A face em pejo acendida, | |
Vermelha como a romã! | |
Tu fugiste, feiticeira, | |
E de certo mais ligeira | |
Qualquer gazela não é; | |
Tu ias de saia curta.... | |
Saltando a moita de murta | |
Mostraste, mostraste o pé! | |
Ai! Morena, ai! meus amores, | |
Eu quero comprar-te as flores, | |
Mas dá-me um beijo também; | |
Que importam rosas do prado | |
Sem o sorriso engraçado | |
Que a tua boquinha tem?... | |
Apenas vi-te, sereia, | |
Chamei-te — rosa da aldeia — | |
Como mais linda não há. | |
— Jesus! Como eras bonita | |
Co'as tranças presas na fita, | |
Co'as flores no samburá! | |
Indaiaçu, 1857 | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro I: Brasilianas. | |
In: GRANDES poetas românticos no Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Carlos Drummond de Andrade,"A paixão medida | |
Trocaica te amei, com ternura dáctila | |
e gesto espondeu. | |
Teus iambos aos meus com força entrelacei. | |
Em dia alcmânico, o instinto ropálico | |
rompeu, leonino, | |
a porta pentâmetra. | |
Gemido trilongo entre breves murmúrios. | |
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico, | |
senão a quebrada lembrança | |
de latina, de grega, inumerável delícia? | |
" | |
Nuno Júdice,"Pedro, lembrando Inês | |
Pedro,lembrando Inês Em quem pensar,agora,senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia dizer:""Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem,sermos o que sempre fomos,mudarmos apenas dentro de nós próprios?""Mas ensinaste-me a sermos dois;e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide.Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo,ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios,mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo,para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.Como gosto,meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar:com a surpresa dos teus cabelos,e o teu rosto de água fresca que eu bebo,com esta sede que não passa.Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti,como gostas de mim,até ao fundo do mundo que me deste." | |
Manuel Bandeira,"Preparação para a Morte | |
A vida é um milagre. | |
Cada flor, | |
Com sua forma, sua cor, seu aroma, | |
Cada flor é um milagre. | |
Cada pássaro, | |
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto, | |
Cada pássaro é um milagre. | |
O espaço, infinito, | |
O espaço é um milagre. | |
A memória é um milagre. | |
A consciência é um milagre. | |
Tudo é milagre. | |
Tudo, menos a morte. | |
Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres." | |
Eugénio de Andrade,"Sobre a Terra | |
Sei que estou vivo e cresço sobre a terra. | |
não porque tenha mais poder, | |
nem mais saber, nem mais haver. | |
Como lábio que suplica outro lábio, | |
como pequena e branca chama | |
de silencio, | |
como sopro obscuro do primeiro crepúsculo, | |
sei que estou vivo, | |
vivo sobre o teu peito, | |
sobre os teus flancos, | |
e cresço para ti. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Adeus | |
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, | |
e o que nos ficou não chega | |
para afastar o frio de quatro paredes. | |
Gastámos tudo menos o silêncio. | |
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, | |
gastámos as mãos à força de as apertarmos, | |
gastámos o relógio e as pedras das esquinas | |
em esperas inúteis. | |
Meto as mãos nas algibeiras | |
e não encontro nada. | |
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! | |
Era como se todas as coisas fossem minhas: | |
quanto mais te dava mais tinha para te dar. | |
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! | |
E eu acreditava! | |
Acreditava, | |
porque ao teu lado | |
todas as coisas eram possíveis. | |
Mas isso era no tempo dos segredos, | |
no tempo em que o teu corpo era um aquário, | |
no tempo em que os teus olhos | |
eram peixes verdes. | |
Hoje são apenas os teus olhos. | |
É pouco, mas é verdade, | |
uns olhos como todos os outros. | |
Já gastámos as palavras. | |
Quando agora digo: meu amor... | |
já não se passa absolutamente nada. | |
E, no entanto, antes das palavras gastas, | |
tenho a certeza | |
de que todas as coisas estremeciam | |
só de murmurar o teu nome | |
no silêncio do meu coração. | |
Não temos nada que dar. | |
Dentro de ti | |
Não há nada que me peça água. | |
O passado é inútil como um trapo. | |
E já te disse: as palavras estão gastas. | |
Adeus. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Carta | |
Bem quisera escrevê-la | |
com palavras sabidas, | |
as mesmas, triviais, | |
embora estremecessem | |
a um toque de paixão. | |
Perfurando os obscuros | |
canais de argila e sombra, | |
ela iria contando | |
que vou bem, e amo sempre | |
e amo cada vez mais | |
a essa minha maneira | |
torcida e reticente, | |
e espero uma resposta | |
mas que não tarde: e peço | |
um objeto minúsculo | |
só para dar prazer | |
e quem pode ofertá-lo; | |
diria ela do tempo | |
que faz do nosso lado; | |
as chuvas já secaram, | |
as crianças estudam, | |
uma última invenção | |
(inda não é perfeita) | |
faz ler nos corações, | |
mas todos esperamos | |
rever-nso bem depressa. | |
Muito depressa, não. | |
Vai-se tornando o tempo | |
estranhamente longo | |
à medida que encurta. | |
O que ontem disparava, | |
desbordado alazão, | |
hoje se paralisa | |
em esfinge de mármore, | |
e até o sono, o sono | |
que era grato e era absurdo | |
é um dormir acordado | |
numa planície grave. | |
Rápido é o sono, apenas, | |
que se vai, de mandar | |
notícias amorosas | |
quando não há amor | |
a dar ou receber; | |
quando só há lembrança, | |
ainda menos, pó, | |
menos ainda, nada, | |
nada de nada em tudo, | |
em mim mais do que em tudo, | |
e não vale acordar | |
quem acaso repousa | |
na colina sem árvores. | |
Contudo, está é uma carta. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Receita de mulher | |
As muito feias que me perdoem | |
Mas beleza é fundamental. É preciso | |
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso | |
Qualquer coisa de dança, | |
qualquer coisa de haute couture | |
Em tudo isso (ou então | |
Que a mulher se socialize | |
elegantemente em azul, | |
como na República Popular Chinesa). | |
Não há meio-termo possível. É preciso | |
Que tudo isso seja belo. É preciso | |
que súbito tenha-se a | |
impressão de ver uma | |
garça apenas pousada e que um rosto | |
Adquira de vez em quando essa cor só | |
encontrável no terceiro minuto da aurora. | |
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas | |
que se reflita e desabroche | |
No olhar dos homens. É preciso, | |
é absolutamente preciso | |
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que | |
umas pálpebras cerradas | |
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços | |
Alguma coisa além da carne: que se os toque | |
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos | |
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro | |
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e | |
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem | |
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então | |
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca | |
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. | |
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos | |
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, | |
e as pontas pélvicas | |
No enlaçar de uma cintura semovente. | |
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: | |
uma mulher sem saboneteiras | |
É como um rio sem pontes. Indispensável. | |
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida | |
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios | |
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca | |
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. | |
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral | |
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! | |
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas | |
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem | |
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. | |
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio | |
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). | |
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos | |
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão | |
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre | |
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos | |
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face | |
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior | |
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras | |
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes | |
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e | |
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão | |
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta | |
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. | |
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos | |
Ao abri-los ela não estará mais presente | |
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá | |
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber | |
O fel da dúvida. Oh, sobretudo | |
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo | |
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade | |
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma | |
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre | |
O impossível perfume; e destile sempre | |
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto | |
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina | |
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição | |
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável. | |
" | |
Cecília Meireles,"Depois do Sol | |
Fez-se noite com tal mistério, | |
Tão sem rumor, tão devagar, | |
Que o crepúsculo é como um luar | |
Iluminando um cemitério . . . | |
Tudo imóvel . . . Serenidades . . . | |
Que tristeza, nos sonhos meus! | |
E quanto choro e quanto adeus | |
Neste mar de infelicidades! | |
Oh! Paisagens minhas de antanho . . . | |
Velhas, velhas . . . Nem vivem mais . . . | |
— As nuvens passam desiguais, | |
Com sonolência de rebanho . . . | |
Seres e coisas vão-se embora . . . | |
E, na auréola triste do luar, | |
Anda a lua, tão devagar, | |
Que parece Nossa Senhora | |
Pelos silêncios a sonhar . . . | |
" | |
Florbela Espanca,"Suavidade | |
Pousa a tua cabeça dolorida | |
Tão cheia de quimeras, de ideal, | |
Sobre o regaço brando e maternal | |
Da tua doce Irmã compadecida. | |
Hás-de contar-me nessa voz tão qurida | |
A tua dor que julgas sem igual, | |
E eu, pra te consolar, direi o mal | |
Que à minha alma profunda fez a Vida. | |
E hás-de adormecer nos meus joelhos... | |
E os meus dedos enrugados, velhos, | |
Hão-de fazer-se leves e suaves... | |
Hão-de pousar-se num fervor de crente, | |
Rosas brancas tombando docemente, | |
Sobre o teu rosto, como penas de aves... | |
" | |
Luís de Camões,"Quando da bela vista e doce riso | |
Quando da bela vista e doce riso | |
Tomando estão meus olhos mantimento, | |
Tão enlevado sinto o pensamento, | |
Que me faz ver na terra o Paraíso. | |
Tanto do bem humano estou diviso, | |
Que qualquer outro bem julgo por vento; | |
Assi que, em caso tal, segundo sento, | |
Assaz de pouco faz quem perde o siso. | |
Em louvar-vos, Senhora, não me fundo, | |
Porque quem vossas graças claro sente, | |
Sentirá que não pode merecê-las; | |
Que de tanta estranheza sois ao mundo, | |
Que não é de estranhar, Dama excelente, | |
Que quem vos fez fizesse céu e estrelas." | |
Manuel Bandeira,"A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE | |
Anunciaram que você morreu. | |
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam: | |
A alma profunda, não. | |
Por isso não sinto agora a sua falta. | |
Sei bem que ela virá | |
(Pela força persuasiva do tempo). | |
Virá súbito um dia, | |
Inadvertida para os demais. | |
Por exemplo, assim: | |
À mesa conversarão de uma coisa e outra, | |
Uma palavra lançada à toa | |
Baterá na franja dos lutos de sangue. | |
Alguém perguntará em que estou pensando, | |
Sorrirei sem dizer que em você | |
Profundamente | |
Mas agora não sinto a sua falta. | |
(É sempre assim quando o ausente | |
Partiu sem se despedir: | |
Você não se despediu.) | |
Você não morreu: ausentou-se. | |
Direi: Faz já tempo que ele não escreve. | |
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel. | |
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque. | |
Saerei que não, você ausentou-se. Para outra vida? | |
A vida é uma só. A sua continua. | |
Na vida que você viveu. | |
Por isso não sinto agora a sua falta. | |
" | |
Miguel Torga,"Ariane | |
Ariane é um navio. | |
Tem mastros, velas e bandeira à proa, | |
E chegou num dia branco, frio, | |
A este rio Tejo de Lisboa. | |
Carregado de Sonho, fundeou | |
Dentro da claridade destas grades... | |
Cisne de todos, que se foi, voltou | |
Só para os olhos de quem tem saudades... | |
Foram duas fragatas ver quem era | |
Um tal milagre assim: era um navio | |
Que se balança ali à minha espera | |
Entre as gaivotas que se dão no rio. | |
Mas eu é que não pude ainda por meus passos | |
Sair desta prisão em corpo inteiro, | |
E levantar âncora, e cair nos braços | |
De Ariane, o veleiro. | |
" | |
Guilherme de Almeida,"Cubismo | |
Um Arlequim feito de cubos | |
equilibrados: | |
trinta losangos arranjados | |
sobre dois tubos. | |
— Ele talvez | |
jogue xadrez... | |
No halo, que a lâmpada tranquila | |
rasga, de cima, | |
esse Arlequim de pantomima | |
oscila, oscila, | |
e vem... e vai... | |
e quase cai... | |
Mas entra alguém: é uma silhueta | |
que espia e passa. | |
Seu riso é um fruto sob a graça | |
da mosca preta | |
— É uma mulher | |
como qualquer... | |
Um gesto só lânguido e doce: | |
e, num instante, | |
Dom Arlequim, o petulante, | |
esfarelou-se... | |
— Todo Arlequim | |
é mesmo assim... | |
Publicado no livro Encantamento (1925). Poema integrante da série I - O Reino Encantado: Sugerir. | |
In: ALMEIDA, Guilherme de. Toda a poesia. 2.ed. São Paulo: Livr. Martins, 1955. v." | |
Ona Gaia,"O Sentido do Amor | |
Devir Louco | |
Que me desculpem os seus exacerbados paladinos, mas o devir louco é o reino das paixões. E a paixão? oh! a paixão, o que é isto caro leitor? É bem possível que você tenha a sua opinião. Apesar disso, permita que eu externe a minha. Bem, antes de mais nada a coloquemos no seu devido lugar, ou seja, dentro do corpo. Afinal, toda e qualquer paixão emana do corpo e o corpo é a sua fonte primeira e última. No corpo, a paixão é uma das nossas emoções, como o medo, o susto, a alegria, a coragem e etc. Inclusive, delas, é a principal, posto ser através da paixão que os animais suprem suas necessidades básicas, como a alimentação e o acasalamento. Decididamente, por ser uma emoção básica em qualquer animal, a paixão não é uma conquista da civilização ou da cultura. A paixão, sem dúvida, não é uma invenção humana. | |
Os seres humanos, entretanto, incorporaram as diversas paixões possíveis, isto é, as emoções, aos seus códigos, símbolos e condutas culturais. Entre os procedimentos necessários da paixão, decodificados e incorporados nas manifestações culturais, um dos mais antigos é a postura de caçador. Esta veio a ser a base modeladora de muitos mitos e ritos ao longo dos 100 mil anos de existência do Homo sapiens sapiens. No bojo dessa postura caçadora veio a paixão pela guerra. | |
Como condição necessária da vida animal, as emoções evocam situações restritivas uma vez que as necessidades são necessárias apenas enquanto o prazer é ausente. Se há falta, há necessidade e a sua satisfação é o seu limite. Além da necessidade há outra coisa, mas não mais o domínio da emoção. Há sentimento. Porém, a satisfação de uma paixão é o fim e início de outra falta. O ciclo gira em torno da necessidade, da falta e da satisfação, que neste caso, é sempre provisória: mais cedo ou mais tarde o caçador deverá sair à campo atrás de mais caça. E a satisfação, então passageira, não será nada mais ou nada menos do que o retorno da superação de uma necessidade insistindo em voltar. O retorno da necessidade através da permanência da falta, aflora assim que o desejo é satisfeito. | |
Não há como escapar disso amigo. Se a paixão é uma emoção necessária, sua satisfação deverá ser permanentemente ratificada. Neste caso, enquanto expressão básica da vida animal, a paixão existe porque existe a fome e a reprodução, que garantem a sobrevivência das espécies. Portanto, a paixão está presente no ser humano, assim como está presente nos animais selvagens, sejam mamíferos, répteis ou aves, porque é um instinto básico da luta pela sobrevivência. A paixão, quem diria, hem? é uma emoção demasiada animal! | |
A guerra só é possível quando existe a paixão por uma causa, na qual a luta pela sobrevivência, traduzida como necessidade de conquista, é um poderoso argumento de convencimento. Entretanto, se é necessidade, isto é, se a paixão é da conta dos instintos e, obviamente, do corpo, então seus parâmetros emocionais estão diretamente relacionados aos ciclos vitais. Ciclos esses que se colocam entre o nascimento e a morte. Em síntese, entre o prazer da vida (o prazer do ganho) e a dor da morte ( dor da perda). | |
Enquanto substrato de emoções tão díspares, como aquelas que se manifestam no prazer ou na dor, a paixão se manifesta positiva ou negativamente, dependendo do nível da falta a ser satisfeita. Em nome da satisfação da necessidade ausente, a luta e a morte são perfeitamente justificáveis. | |
Ah, a morte! Limite de toda e qualquer necessidade: a morte de um em prol da permanência de outro; o caçador mata a caça para permanecer vivo; para suprir uma falta só identificável na sua necessidade particular; identidade que só enxerga a si mesmo, acabando por excluir tudo o que é diferente, externo ou estranho. Porém, a natureza caçadora desconhece que ninguém abate uma presa impunemente. Todos os atos efetivados, unicamente, com a emoção da conquista, compromete os corpos envolvidos para sempre. Portanto, a conquista do outro ou do mundo, para a glória do ego, compromete o eu, o outro e ou o mundo, numa mesma miragem sem cor. | |
Como a paixão se manifesta no corpo, para o corpo e pela química do corpo, que segundo alguns até pode ser identificada e quantificada, ele é a sua catedral. Por isso que a morte desde o início, foi uma questão importante para a consciência. Uma vez que todo esforço visava a manutenção do corpo, como a sua ruína poderia ser tão inexorável, irrevogável, inevitável e improrrogável? Não, não poderia. A morte não era o limite do corpo e, com isto, descobriram a alma, coisa cuja estrutura invisível, sobrevivia além da carne. Opa, incrível! para espanto de alguns, logo descobriram que a alma também apresentava necessidades a serem satisfeitas. Daí inventaram a religião e, as suas manifestações, que desde sempre, foram expressadas através da paixão. Trágica paixão. | |
As necessidades da alma seriam carências muito profundas que, por sua vez, no extremo oposto, estavam na essência da vida. Por isto o homem inventou este artifício chamado religião, decidido a suprir a maior de todas as faltas, a da vida depois da morte. Visando preencher suas bases: falta, identidade, necessidade e exclusão; desviaram todos os recursos excedentes - aqueles os quais ficaram além das necessidades, quando foram produzidos ao longo do desenvolvimento das civilizações urbanas -, para um corpo invisível, intangível e cujas necessidades e faltas, de fato, ninguém sabia dizer ao certo quais eram. E muitos, em nome disto, se desviaram da natureza e do próprio corpo, porque quiseram acreditar que a vida, a eterna, não era física, porém incorpórea; incomensurável e perfeita mas no entanto, absolutamente fora deste mundo. | |
Projetada para o espaço inatingível, a paixão criou deuses, santos e até homens coroados por espíritos sobrenaturais, que se apropriando de necessidades divinas impossíveis, justificaram conquistas, massacres, extermínios e a exploração de uns poucos sobre a maioria. E o poder de alguns homens ser mais especial que dos demais mortais, encontrava justificativa por estes se nomearem os representantes, na Terra, das necessidades espirituais segundo as quais eles deveriam suprir. | |
Está claro que a paixão é eminentemente masculina. Afinal ela não foi aperfeiçoada pelo caçador e pelo guerreiro? Então!?!.. Nada de ilusão, óbvio que ela também está presente na mulher. Aliás, a eminência masculina da paixão no ser humano não se manifesta, forçosamente, do mesmo modo como nos demais representantes do reino animal. É mais que sabido, que entre os leões, por exemplo, são as fêmeas que caçam. Entretanto, cada animal é um animal e embora a paixão se manifeste em todos, foram os homens, através da caça e da guerra, que lapidaram e legaram às civilizações, a atitude apaixonada. A paixão, na mulher, veio a ser reconhecida apenas quando a alma foi descoberta. E o ingresso delas nos rituais até então masculinos, de iniciação espiritual, veio a ser tardio. | |
Entre as paixões que se manifestam na mulher, a especial, é a que diz respeito à reprodução. Por conta disto a paixão, na mulher, é mais objetivamente (efetivamente) agradável do que no homem. Ou seja, a mulher sente no corpo a satisfação da necessidade reprodutora. Através do sexo, a mulher tem no prazer, algo muito mais objetivo que o homem. Nele, as paixões da caça, guerra e religião, tornam-no mais subjetivo, muito mais estratégico. Na mulher não. Seu corpo físico é um campo de emoções poderosas, pois dele emanam sensações orgânicas, muito mais ricas do que nos homens. Mas ela também está entre o prazer e a dor e nela isto é muito mais bem percebido, visto não adiantar a satisfação de certas faltas, mesmo na fartura haverá a menstruação e senão, a dor do parto. | |
Na base da nossa atual civilização, entre as paixões, aquelas que foram consideradas as mais importantes de todas, são as da alma. E com um significado trágico: na Idade Média isto se tornou mais claro, ao interpretarem" | |
Herberto Helder,"O Poema | |
Um poema | |
cresce inseguramente | |
na confusão da carne. | |
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, | |
talvez como sangue | |
ou sombra de sangue pelos canais do ser. | |
Fora existe o mundo. Fora, a esplendida violência | |
ou os bagos de uva de onde nascem | |
as raízes minúsculas do sol. | |
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis | |
do nosso amor, | |
rios, a grande paz exterior das coisas, | |
folhas dormindo o silencio | |
a hora teatral da posse. | |
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. | |
E já nenhum poder destrói o poema. | |
insustentável, único, | |
invade as casas deitadas nas noites | |
e as luzes e as trevas em volta da mesa | |
e a força sustida das cisas | |
e a redonda e livre harmonia do mundo. | |
Em baixo o instrumento perplexo ignora | |
a espinha do mistério | |
- E o poema faz-se contra a carne e o tempo." | |
Olavo Bilac,"In Extremis | |
Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia | |
Assim! de um sol assim! | |
Tu, desgrenhada e fria, | |
Fria! postos nos meus os teus olhos molhados, | |
E apertando nos teus os meus dedos gelados... | |
E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera | |
Toda azul, no esplendor do fim da primavera! | |
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento! | |
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento | |
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo... | |
E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo! | |
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte, | |
E arredar-me de ti, cada vez mais, a morte... | |
Eu, com o frio a crescer no coração, — tão cheio | |
De ti, até no horror do derradeiro anseio! | |
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente, | |
A boca que beijava a tua boca ardente, | |
A boca que foi tua! | |
E eu morrendo! e eu morrendo | |
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo | |
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida, | |
A delícia da vida! a delícia da vida! | |
Publicado no livro Poesias (1902). Poema integrante da série Alma Inquieta. | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Cecília Meireles,"É preciso não esquecer nada | |
É preciso não esquecer nada: | |
nem a torneira aberta nem o fogo aceso, | |
nem o sorriso para os infelizes | |
nem a oração de cada instante. | |
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta | |
nem o céu de sempre. | |
O que é preciso é esquecer o nosso rosto, | |
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso. | |
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos, | |
a idéia de recompensa e de glória. | |
O que é preciso é ser como se já não fôssemos, | |
vigiados pelos próprios olhos | |
severos conosco, pois o resto não nos pertence." | |
Pablo Neruda,"A tartaruga | |
A tartaruga que | |
andou | |
tanto tempo | |
e tanto vio | |
com | |
seus | |
antigos | |
olhos, | |
a tartaruga | |
que comeu | |
azeitonas | |
do mais profundo | |
mar, | |
a tartaruga que nadou | |
sete séculos | |
e conheceu | |
sete | |
mil | |
primaveras, | |
a tartaruga | |
blindada | |
contra | |
o calor | |
e o frio, | |
contra | |
os raios e as ondas, | |
a tartaruga | |
amarela | |
e prateada | |
com severos | |
lunares | |
ambarinos | |
e pés de rapina, | |
a tartaruga | |
ficou | |
aqui | |
dormindo | |
e não sabe | |
De tão velha | |
se foi | |
pondo dura, | |
deixou | |
de amar as ondas | |
e foi rígida | |
como o ferro de passar | |
Fechou | |
os olhos que | |
tanto | |
mar, céu, tempo e terra | |
desafiaram, | |
e dormiu | |
entre as outras | |
pedras. | |
" | |
Miguel Torga,"Tacteio em vão a claridade | |
Cego, tacteio em vão a claridade; | |
Louco, cuspo no rosto da razão; | |
E deambulo assim | |
Dentro de mim | |
Negação a negar a negação." | |
Miguel Torga,"Fábula da fábula | |
Era uma vez | |
Uma fábula famosa, | |
Alimentícia | |
E moralizadora, | |
Que, em verso e prosa, | |
Toda gente | |
Inteligente, | |
Prudente | |
E sabedora | |
Repetia | |
Aos filhos, | |
Aos netos | |
E aos bisnetos. | |
À base duns insectos, | |
De que não vale a pena fixar o nome, | |
A fábula garantia | |
Que quem cantava | |
Morria | |
De fome. | |
E realmente... | |
Simplesmente, | |
Enquanto a fábula contava, | |
Um demônio secreto segredava | |
Ao ouvido secreto | |
De cada criatura | |
Que quem não cantava | |
Morria de fartura. | |
" | |
Manuel Bandeira,"TU QUE ME DESTE O TEU CUIDADO | |
TU QUE ME DESTE O TEU CUIDADO... | |
Tu que me deste o teu carinho | |
E que me deste o teu cuidado, | |
Acolhe ao peito, como o ninho | |
Acolhe ao pássaro cansado, | |
O meu desejo incontentado. | |
Há longos anos ele arqueja | |
Em aflitiva escuridão. | |
Sê compassiva e benfazeja. | |
Dá-lhe o melhor que ele deseja: | |
Teu grave e meigo coração. | |
Sê compassiva. Se algum dia | |
Te vier do pobre agravo e mágoa, | |
Atende à sua dor sombria: | |
Perdoa o mal que desvaria | |
E traz os olhos rasos de água. | |
Não te retires ofendida. | |
Pensa que nesse grito vem | |
O mal de toda a sua vida: | |
Ternura inquieta e malferida | |
Que, antes, não dei nunca a ninguém. | |
E foi melhor nunca ter dado: | |
Em te pungido algum espinho, | |
Cinge-a ao teu peito angustiado. | |
E sentirás o meu carinho. | |
E setirás o meu cuidado. | |
" | |
Charles Baudelaire,"CORRESPONDÊNCIAS | |
A natureza é um templo onde vivos pilares | |
Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas | |
Fazem o homem passar através de florestas | |
De símbolos que o vêem com olhos familiares. | |
Como os ecos do além confundem os rumores | |
Na mais profunda e tenebrosa unidade, | |
Tão vasta como a noite e como a claridade | |
Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores. | |
Há perfumes frescos como carnes de criança | |
Doces como oboés, ou verdes como as campinas. | |
E outros, corrompidos, mas ricos e triunfantes | |
Que possuem a efusão das coisas infinitas | |
Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso, | |
Que cantam o êxtase, do espírito e dos sentidos. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Canção do Tamoio | |
(Natalícia) | |
I | |
Não chores, meu filho; | |
Não chores, que a vida | |
É luta renhida: | |
Viver é lutar. | |
A vida é combate, | |
Que os fracos abate, | |
Que os fortes, os bravos | |
Só pode exaltar. | |
II | |
Um dia vivemos! | |
O homem que é forte | |
Não teme da morte; | |
Só teme fugir; | |
No arco que entesa | |
Tem certa uma presa, | |
Quer seja tapuia, | |
Condor ou tapir. | |
III | |
O forte, o cobarde | |
Seus feitos inveja | |
De o ver na peleja | |
Garboso e feroz; | |
E os tímidos velhos | |
Nos graves concelhos, | |
Curvadas as frontes, | |
Escutam-lhe a voz! | |
IV | |
Domina, se vive; | |
Se morre, descansa | |
Dos seus na lembrança, | |
Na voz do porvir. | |
Não cures da vida! | |
Sê bravo, sê forte! | |
Não fujas da morte, | |
Que a morte há de vir! | |
V | |
E pois que és meu filho, | |
Meus brios reveste; | |
Tamoio nasceste, | |
Valente serás. | |
Sê duro guerreiro, | |
Robusto, fragueiro, | |
Brasão dos tamoios | |
Na guerra e na paz. | |
VI | |
Teu grito de guerra | |
Retumbe aos ouvidos | |
Dimigos transidos | |
Por vil comoção; | |
E tremam douvi-lo | |
Pior que o sibilo | |
Das setas ligeiras, | |
Pior que o trovão. | |
VII | |
E a mão nessas tabas, | |
Querendo calados | |
Os filhos criados | |
Na lei do terror; | |
Teu nome lhes diga, | |
Que a gente inimiga | |
Talvez não escute | |
Sem pranto, sem dor! | |
VIII | |
Porém se a fortuna, | |
Traindo teus passos, | |
Te arroja nos laços | |
Do inimigo falaz! | |
Na última hora | |
Teus feitos memora, | |
Tranqüilo nos gestos, | |
Impávido, audaz. | |
IX | |
E cai como o tronco | |
Do raio tocado, | |
Partido, rojado | |
Por larga extensão; | |
Assim morre o forte! | |
No passo da morte | |
Triunfa, conquista | |
Mais alto brasão. | |
X | |
As armas ensaia, | |
Penetra na vida: | |
Pesada ou querida, | |
Viver é lutar. | |
Se o duro combate | |
Os fracos abate, | |
Aos fortes, aos bravos, | |
Só pode exaltar. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"O Pequeno Sismo | |
Há um pequeno sismo em qualquer parte | |
ao dizeres o meu nome. | |
Elevas-me à altura da tua boca | |
lentamente | |
para não me desfolhares. | |
Tremo como se tivera | |
quinze anos e toda a terra | |
fosse leve. | |
Ó indizível primavera. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"O Nosso Mundo é Este | |
O nosso mundo é este | |
Vil suado | |
Dos dedos dos homens | |
Sujos de morte. | |
Um mundo forrado | |
De pele de mãos | |
Com pedras roídas | |
das nossas sombras. | |
Um mundo lodoso | |
Do suor dos outros | |
E sangue nos ecos | |
Colado aos passos… | |
Um mundo tocado | |
Dos nossos olhos | |
A chorarem musgo | |
De lágrimas podres… | |
Um mundo de cárceres | |
Com grades de súplica | |
E o vento a soprar | |
Nos muros de gritos. | |
Um mundo de látegos | |
E vielas negras | |
Com braços de fome | |
A saírem das pedras… | |
O nosso mundo é este | |
Suado de morte | |
E não o das árvores | |
Floridas de música | |
A ignorarem | |
Que vão morrer. | |
E se soubessem, dariam flor? | |
Pois os homens sabem | |
E cantam e cantam | |
Com morte e suor. | |
O nosso mundo é este…. | |
( Mas há-de ser outro.)" | |
Eugénio de Andrade,"As palavras | |
São como um cristal, | |
as palavras. | |
Algumas, um punhal, | |
um incêndio. | |
Outras, | |
orvalho apenas. | |
Secretas vêm, cheias de memória. | |
Inseguras navegam: | |
barcos ou beijos, | |
as águas estremecem. | |
Desamparadas, inocentes, | |
leves. | |
Tecidas são de luz | |
e são a noite. | |
E mesmo pálidas | |
verdes paraísos lembram ainda. | |
Quem as escuta? Quem | |
as recolhe, assim, | |
cruéis, desfeitas, | |
nas suas conchas puras? | |
" | |
Herberto Helder,"A Paixão Grega | |
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, | |
quando alguém morria perguntavam apenas: | |
tinha paixão? | |
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: | |
se tinha paixão pelas coisas gerais, | |
água, | |
música, | |
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, | |
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, | |
paixão pela paixão, | |
tinha? | |
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, | |
se posso morrer gregamente, | |
que paixão? | |
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra, | |
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem, | |
homens e mulheres perdem a aura | |
na usura, | |
na política, | |
no comércio, | |
na indústria, | |
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera, | |
trémulos objectos entrando e saindo | |
dos dez tão poucos dedos para tantos | |
objectos do mundo | |
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega, | |
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva, | |
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, | |
palavra soprada a que forno com que fôlego, | |
que alguém perguntasse: tinha paixão? | |
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia, | |
ponham muito alto a música e que eu dance, | |
fluido, infindável, | |
apanhado por toda a luz antiga e moderna, | |
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão | |
e eu me perdesse nela | |
a paixão grega | |
" | |
Manuel Bandeira,"EU VI UMA ROSA | |
Eu vi uma rosa | |
- Uma rosa branca - | |
Sozinha no galho. | |
No galho? Sozinha | |
No jardim, na rua | |
Sozinha no mundo. | |
Em torno, no entanto, | |
Ao sol de meio-dia, | |
Toda a natureza | |
Em formas e cores | |
E sons esplendia. | |
Tudo isso era excesso. | |
A graça essencial, | |
Mistério inefável | |
- Sobrenatural - | |
Da vida e do mundo, | |
Estava ali na rosa | |
Sozinha no galho. | |
Sozinha no tempo. | |
Tão pura e modesta, | |
Tão perto do chão | |
Tão longe na glória | |
Da mística altura, | |
Dir-se-ia que ouvisse | |
Do arcanjo invisível | |
As palavras santas | |
De outra Anunciação. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Poema à mãe | |
No mais fundo de ti, | |
eu sei que traí, mãe! | |
Tudo porque já não sou | |
o retrato adormecido | |
no fundo dos teus olhos! | |
Tudo porque tu ignoras | |
que há leitos onde o frio não se demora | |
e noites rumorosas de águas matinais! | |
Por isso, às vezes, as palavras que te digo | |
são duras, mãe, | |
e o nosso amor é infeliz. | |
Tudo porque perdi as rosas brancas | |
que apertava junto ao coração | |
no retrato da moldura! | |
Se soubesses como ainda amo as rosas, | |
talvez não enchesses as horas de pesadelos... | |
Mas tu esqueceste muita coisa! | |
Esqueceste que as minhas pernas cresceram, | |
que todo o meu corpo cresceu, | |
e até o meu coração | |
ficou enorme, mãe! | |
Olha - queres ouvir-me? -, | |
às vezes ainda sou o menino | |
que adormeceu nos teus olhos; | |
ainda aperto contra o coração | |
rosas tão brancas | |
como as que tens na moldura; | |
ainda oiço a tua voz: | |
""Era uma vez uma princesa | |
no meio de um laranjal..."" | |
Mas - tu sabes! - a noite é enorme | |
e todo o meu corpo cresceu... | |
Eu saí da moldura, | |
dei às aves os meus olhos a beber. | |
Não me esqueci de nada, mãe. | |
Guardo a tua voz dentro de mim. | |
E deixo-te as rosas... | |
Boa noite. Eu vou com as aves! | |
" | |
Manuel Bandeira,"ESTRADA | |
Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho, | |
Interessa mais que uma avenida urbana. | |
Nas cidades todas as pessoas se parecem. | |
Todo o mundo é igual. todo o mundo é toda a gente. | |
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma. | |
Cada criatura é única. | |
Até os cães. | |
Estes cães da roça parecem homens de negócios: | |
Andam sempre preocupados. | |
E quanta gente vem e vai! | |
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar: | |
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho | |
manhoso. | |
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos, | |
Que a vida passa! que a vida passa! | |
E que a mocidade vai acabar. | |
" | |
Manuel Bandeira,"RESPOSTA A VINÍCIUS | |
Poeta sou; pai, pouco; irmão, mas. | |
Lúcido, sim; eleito, não. | |
E bem triste de tantos ais | |
Que me enchem a imaginação. | |
Com que sonho? Não sei bem não | |
Talvez com me bastar, feliz | |
- Ah feliz como jamais fui! -, | |
Arrancando do coração | |
- Arrancado pela raiz - | |
Este anseio infinito e vão | |
De possuir o que não me possui. | |
" | |
Manuel António Pina,"Os Gatos | |
" | |
Manuel Bandeira,"BACANAL | |
Quero beber! cantar asneiras | |
No esto brutal das bebedeiras | |
Que tudo emborca e faz em caco... | |
Evoé Baco! | |
Lá se me parte a alma levada | |
No torvelim da mascarada. | |
A gargalhar em doudo assomo... | |
Evoé Momo! | |
Lacem-na toda, multicores | |
As serpentinas dos amores, | |
Cobras de lívidos venenos... | |
Evoé Vênus! | |
Se perguntarem: Que mais queres, | |
Além de versos e mulheres?... | |
- Vinhos!... o vinho que é meu fracco!... | |
Evoé Baco! | |
O alfanje rútilo da lua, | |
Por degolar a nuca nua | |
Que me alucina e que eu não domo!... | |
Evoé Momo! | |
A Lira etérea, a grande Lira!... | |
Por que eu extático desfira | |
Em seu louvor versos obscenos. | |
Evoé Vênus! | |
" | |
Manuel Bandeira,"ÚLTIMA CANÇÃO DO BECO | |
Beco que cantei num dístico | |
Cheio de elipses mentais, | |
Beco das minhas tristezas, | |
Das minhas perplexidades | |
(mas também dos meus amores, | |
Dos meus beijos, dos meus sonhos), | |
Adeus para nunca mais! | |
Vão demolir esta casa. | |
Mas meu quarto vai ficar. | |
Não como forma mperfeita | |
Neste mundo de aparências: | |
Vai ficar na eternidade, | |
Com seus livros, com seus quadros, | |
Intacto, suspenso no ar! | |
Beco de sarças de fogo, | |
E paixões sem amanhãs, | |
Quanta luz mediterrânea | |
No esplendor da adolescência | |
Não reoleu nestas pedras | |
O orvalho das madrugadas, | |
A pureza das manhãs! | |
Beco das minhas tristeza. | |
Não me envergonhei de ti! | |
Foste rua de mulheres? | |
Todas são filhas de Deus! | |
Dantes foram carmelitas... | |
E eras só de pobres quando, | |
Pobre, vim morar aqui. | |
Lapa - Lapa do Desterro -, | |
Lapa que tanto pecais! | |
(Mas quando bate seis horas, | |
Na primera voz dos sinos, | |
Como na voz que anunciava | |
A conceição de Maria, | |
Que graças angelicais!) | |
Nossa Senhora do Carmo, | |
De lá de cima do altar, | |
Pede esmolas para os pobres, | |
- Para mulheres tão tristes, | |
Para mulheres tão negras, | |
Que vêm nas portas do templo | |
De noite se agasalhar. | |
Beco que nasceste à sombra | |
De paredes conventuais, | |
És como a vida, que é santa | |
Pesar de todas as quedas. | |
Por isso te amei constante, | |
E canto para dizer-te | |
Adeus para nunca mais! | |
" | |
Sílvio Romero,"Cravo e a Rosa | |
(Sergipe) | |
O cravo tem vinte folhas, | |
A rosa tem vinte e uma; | |
Anda o cravo em demanda, | |
Porque a rosa tem mais uma. | |
O cravo brigou co'a rosa | |
Debaixo de uma sacada; | |
O cravo saiu ferido, | |
E a rosa espinicada. | |
Viva o cravo, viva a rosa, | |
Viva o palácio do rei; | |
Viva o primeiro amor | |
Que nesta terra tomei! | |
O cravo caiu doente, | |
A rosa o foi visitar; | |
O cravo deu um desmaio, | |
A rosa pôs-se a chorar. | |
In: ROMERO, Sílvio. Folclore brasileiro: cantos populares do Brasil. Pref. Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985. p.181. (Reconquista do Brasil. Nova série, 86" | |
Miguel Torga,"Comunicado | |
Na frente ocidental nada de novo. | |
O povo | |
Continua a resistir. | |
Sem ninguém que lhe valha, | |
Geme e trabalha | |
Até cair. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"A Arca de Noé | |
Sete em cores, de repente | |
O arco-íris se desata | |
Na água límpida e contente | |
Do ribeirinho da mata. | |
O sol, ao véu transparente | |
Da chuva de ouro e de prata | |
Resplandece resplendente | |
No céu, no chão, na cascata. | |
E abre-se a porta da Arca | |
De par em par: surgem francas | |
A alegria e as barbas brancas | |
Do prudente patriarca | |
Noé, o inventor da uva | |
E que, por justo e temente | |
Jeová, clementemente | |
Salvou da praga da chuva. | |
Tão verde se alteia a serra | |
Pelas planuras vizinhas | |
Que diz Noé: ""Boa terra | |
Para plantar minhas vinhas!"" | |
E sai levando a família | |
A ver; enquanto, em bonança | |
Colorida maravilha | |
Brilha o arco da aliança. | |
Ora vai, na porta aberta | |
De repente, vacilante | |
Surge lenta, longa e incerta | |
Uma tromba de elefante. | |
E logo após, no buraco | |
De uma janela, aparece | |
Uma cara de macaco | |
Que espia e desaparece. | |
Enquanto, entre as altas vigas | |
Das janelinhas do sótão | |
Duas girafas amigas | |
De fora a cabeça botam. | |
Grita uma arara, e se escuta | |
De dentro um miado e um zurro | |
Late um cachorro em disputa | |
Com um gato, escouceia um burro. | |
A Arca desconjuntada | |
Parece que vai ruir | |
Aos pulos da bicharada | |
Toda querendo sair. | |
Vai! Não vai! Quem vai primeiro? | |
As aves, por mais espertas | |
Saem voando ligeiro | |
Pelas janelas abertas. | |
Enquanto, em grande atropelo | |
Junto à porta de saída | |
Lutam os bichos de pelo | |
Pela terra prometida. | |
""Os bosques são todos meus!"" | |
Ruge soberbo o leão | |
""Também sou filho de Deus!"" | |
Um protesta; e o tigre — ""Não!"" | |
Afinal, e não sem custo | |
Em longa fila, aos casais | |
Uns com raiva, outros com susto | |
Vão saindo os animais. | |
Os maiores vêm à frente | |
Trazendo a cabeça erguida | |
E os fracos, humildemente | |
Vêm atrás, como na vida. | |
Conduzidos por Noé | |
Ei-los em terra benquista | |
Que passam, passam até | |
Onde a vista não avista | |
Na serra o arco-íris se esvai . . . | |
E . . . desde que houve essa história | |
Quando o véu da noite cai | |
Na terra, e os astros em glória | |
Enchem o céu de seus caprichos | |
É doce ouvir na calada | |
A fala mansa dos bichos | |
Na terra repovoada. | |
" | |
Cecília Meireles,"O Mosquito Escreve | |
O Mosquito pernilongo | |
trança as pernas, faz um M, | |
depois, treme, treme, treme, | |
faz um O bastante oblongo, | |
faz um S. | |
O mosquito sobe e desce. | |
Com artes que ninguém vê, | |
faz um Q, | |
faz um U e faz um I. | |
Esse mosquito | |
esquisito | |
cruza as patas, faz um T. | |
E aí, se arredonda e faz outro O, | |
mais bonito. | |
Oh! | |
já não é analfabeto, | |
esse inseto, | |
pois sabe escrever o seu nome. | |
Mas depois vai procurar | |
alguém que possa picar, | |
pois escrever cansa, | |
não é, criança? | |
E ele está com muita fome. | |
(Cecília Meileles in “Ou isto ou aquilo”) | |
" | |
Eugénio de Andrade,"A Sílaba | |
Toda a manhã procurei uma sílaba. É pouca coisa,é certo:uma vogal,uma consoante,quase nada. Mas faz-me falta.Só eu seia falta que me faz. Por isso a procurava com obstinação. Só ela me podia defenderdo frio de janeiro,da estiagemdo verão.Uma sílaba. Uma única sílaba. A salvação. de Ofício de Paciência" | |
Olavo Bilac,"Dualismo | |
Não és bom, nem és mau: és triste e humano... | |
Vives ansiando, em maldições e preces, | |
Como se, a arder, no coração tivesses | |
O tumulto e o clamor de um largo oceano. | |
Pobre, no bem como no mal, padeces; | |
E, rolando num vórtice vesano, | |
Oscilas entre a crença e o desengano, | |
Entre esperanças e desinteresses. | |
Capaz de horrores e de ações sublimes, | |
Não ficas das virtudes satisfeito, | |
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: | |
E, no perpétuo ideal que te devora, | |
Residem juntamente no teu peito | |
Um demônio que ruge e um deus que chora. | |
Publicado no livro Tarde (1919). | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Fernando Pessoa,"QUANDO ELA PASSA | |
Quando eu me sento à janela | |
Plos vidros que a neve embaça | |
Vejo a doce imagem dela | |
Quando passa... passa... passa... | |
Lançou-me a mágoa seu véu: - | |
Menos um ser neste mundo | |
E mais um anjo no céu. | |
Quando eu me sento à janela, | |
Plos vidros que a neve embaça | |
Julgo ver a imagem dela | |
Que já não passa... não passa... | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Ao Miguel, no seu 4º Aniversário, e contra o nuclear, naturalmente | |
Vais crescendo, meu filho, com a difícil | |
luz do mundo. Não foi um paraíso, | |
que não é medida humana, o que para ti | |
sonhei. Só quis que a terra fosse limpa, | |
nela pudesses respirar desperto | |
e aprender que todo homem, todo, | |
tem direito a sê-lo inteiramente | |
até ao fim. Terra de sol maduro, | |
redonda terra de cavalos e maçãs, | |
terra generosa, agora atormentada | |
no próprio coração; terra onde teu pai | |
e tua mãe amaram para que fosses | |
o pulsar da vida, tornada inferno | |
vivo onde nos vão encurralando | |
o medo, a ambição, a estupidez, | |
se não for demência apenas a razão; | |
terra inocente, terra atraiçoada, | |
em que nem sequer é já possível | |
pousar num rio os olhos de alegria, | |
e partilhar o pão, ou a palavra; | |
terra onde o ódio a tanta e tão vil | |
besta fardada é tudo o que nos resta; | |
abutres e chacais que do saber fizeram | |
comércio tão contrário à natureza | |
que só crimes e crimes e crimes pariam. | |
Que faremos nós, filho, para que a vida | |
seja mais que a cegueira e cobardia? | |
" | |
Fernando Pessoa,"A mão posta sobre a mesa, | |
A MÃO POSTA sobre a mesa, | |
A mão abstrata, esquecida, | |
Imagem da minha vida... | |
A mão que pus sobre a mesa | |
Para mim mesmo é surpresa. | |
Porque a mão é o que temos | |
Ou define quem não somos. | |
Com ela aquilo que fazemos | |
[...] | |
" | |
Álvares de Azevedo,"Minha Desgraça | |
Minha desgraça não é ser poeta, | |
Nem na terra de amor não ter um eco, | |
E meu anjo de Deus, o meu planeta | |
Tratar-me como trata-se um boneco... | |
Não é andar de cotovelos rotos, | |
Ter duro como pedra o travesseiro... | |
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido | |
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro... | |
Minha desgraça, ó cândida donzela, | |
O que faz que o meu peito blasfema, | |
É ter para escrever todo um poema | |
E não ter um vintém para uma vela. | |
" | |
Miguel Torga,"Depoimento | |
Deponho | |
no processo do meu crime. | |
Sou testemunha | |
E réu | |
E vítima | |
E juiz | |
Juro | |
Que havia um muro, | |
E na face do muro uma palavra a giz. | |
MERDA! – lembro-me bem. | |
– Crianças...... | |
– disse alguém que ia a passar. | |
Mas voltei novamente a soletar | |
O vocábulo indecente, | |
E de repente | |
Como quem adivinha, | |
Numa tristeza já de penitente | |
Vi que a letra era minha..... | |
" | |
Olavo Bilac,"O Pássaro Cativo | |
Armas, num galho de árvore, o alçapão | |
E, em breve, uma avezinha descuidada, | |
Batendo as asas cai na escravidão. | |
Dás-lhe então, por esplêndida morada, | |
Gaiola dourada; | |
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo. | |
Por que é que, tendo tudo, há de ficar | |
O passarinho mudo, | |
Arrepiado e triste sem cantar? | |
É que, criança, os pássaros não falam. | |
Só gorjeando a sua dor exalam, | |
Sem que os homens os possam entender; | |
Se os pássaros falassem, | |
Talvez os teus ouvidos escutassem | |
Este cativo pássaro dizer: | |
""Não quero o teu alpiste! | |
Gosto mais do alimento que procuro | |
Na mata livre em que voar me viste; | |
Tenho água fresca num recanto escuro | |
Da selva em que nasci; | |
Da mata entre os verdores, | |
Tenho frutos e flores | |
Sem precisar de ti! | |
Não quero a tua esplêndida gaiola! | |
Pois nenhuma riqueza me consola, | |
De haver perdido aquilo que perdi... | |
Prefiro o ninho humilde construído | |
De folhas secas, plácido, escondido. | |
Solta-me ao vento e ao sol! | |
Com que direito à escravidão me obrigas? | |
Quero saudar as pombas do arrebol! | |
Quero, ao cair da tarde, | |
Entoar minhas tristíssimas cantigas! | |
Por que me prendes? Solta-me, covarde! | |
Deus me deu por gaiola a imensidade! | |
Não me roubes a minha liberdade... | |
Quero voar! Voar! | |
Estas cousas o pássaro diria, | |
Se pudesse falar, | |
E a tua alma, criança, tremeria, | |
Vendo tanta aflição, | |
E a tua mão tremendo lhe abriria | |
A porta da prisão... | |
" | |
Cruz e Sousa,"O Assinalado | |
Tu és o louco da imortal loucura, | |
O louco da loucura mais suprema. | |
A Terra é sempre a tua negra algema, | |
Prende-te nela a extrema Desventura. | |
Mas essa mesma algema de amargura, | |
Mas essa mesma Desventura extrema | |
Faz que tu'alma suplicando gema | |
E rebente em estrelas de ternura. | |
Tu és o Poeta, o grande Assinalado | |
Que povoas o mundo despovoado, | |
De belezas eternas, pouca a pouco... | |
Na Natureza prodigiosa e rica | |
Toda a audácia dos nervos justifica | |
Os teus espasmos imortais de louco! | |
Publicado no livro ÚItimos sonetos (1905). | |
In: SOUSA, Cruz e. Últimos sonetos. Texto estabelecido pelo manuscrito autógrafo e notas Adriano da Gama Kury. Est. liter. Julio Castañon Guimarães. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC: Fundação Catarinense de Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 198" | |
Al Berto,"As mãos pressentem | |
As mãos pressentem a leveza rubra do lume | |
repetem gestos semelhantes a corolas de flores | |
voos de pássaro ferido no marulho da alba | |
ou ficam assim azuis | |
queimadas pela secular idade desta luz | |
encalhada como um barco nos confins do olhar | |
ergues de novo as cansadas e sábias mãos | |
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e | |
o amargor húmido das noites e tanta ignorância | |
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva | |
quase nada" | |
Vinicius de Moraes,"Vida e poesia | |
A lua projetava o seu perfil azul | |
Sobre os velhos arabescos das flores calmas | |
A pequena varanda era como o ninho futuro | |
E as ramadas escorriam gotas que não havia. | |
Na rua ignorada anjos brincavam de roda... | |
– Ninguém sabia, mas nós estávamos ali. | |
Só os perfumes teciam a renda da tristeza | |
Porque as corolas eram alegres como frutos | |
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores | |
Eu me pus a sonhar o poema da hora. | |
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado | |
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga | |
Talvez ao pressentir na carne misteriosa | |
A germinação estranha do meu indizível apelo | |
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso | |
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada. | |
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite | |
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos | |
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo | |
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco | |
E marulhar entre os teus seios como uma onda | |
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias | |
De que me tivesses possuído antes do amor. | |
" | |
Miguel Torga,"Livro de Horas | |
Aqui diante de mim, | |
eu, pecador, me confesso | |
de ser assim como sou. | |
Me confesso o bom e o mau | |
que vão ao leme da nau | |
nesta deriva em que vou. | |
Me confesso | |
possesso | |
das virtudes teologais, | |
que são três, | |
e dos pecados mortais, | |
que são sete, | |
quando a terra não repete | |
que são mais. | |
Me confesso | |
o dono das minhas horas | |
O dos facadas cegas e raivosas, | |
e o das ternuras lúcidas e mansas. | |
E de ser de qualquer modo | |
andanças | |
do mesmo todo. | |
Me confesso de ser charco | |
e luar de charco, à mistura. | |
De ser a corda do arco | |
que atira setas acima | |
e abaixo da minha altura. | |
Me confesso de ser tudo | |
que possa nascer em mim. | |
De ter raízes no chão | |
desta minha condição. | |
Me confesso de Abel e de Caim. | |
Me confesso de ser Homem. | |
De ser um anjo caído | |
do tal céu que Deus governa; | |
de ser um monstro saído | |
do buraco mais fundo da caverna. | |
Me confesso de ser eu. | |
Eu, tal e qual como vim | |
para dizer que sou eu | |
aqui, diante de mim! | |
" | |
Cacaso,"Dentro de Mim Mora um Anjo | |
Quem me vê assim cantando | |
não sabe nada de mim | |
dentro de mim mora um anjo | |
que tem a boca pintada | |
que tem as asas pintadas | |
que tem as unhas pintadas | |
que passa horas a fio | |
no espelho do toucador | |
dentro de mim mora um anjo | |
que me sufoca de amor | |
Dentro de mim mora um anjo | |
montado sobre um cavalo | |
que ele sangra de espora | |
ele é meu lado de dentro | |
eu sou seu lado de fora | |
Quem me vê assim cantando | |
não sabe nada de mim | |
Dentro de mim mora um anjo | |
que arrasta as suas medalhas | |
e que batuca pandeiro | |
que me prendeu nos seus laços | |
mas que é meu prisioneiro | |
acho que é colombina | |
acho que é bailarina | |
acho que é brasileiro | |
Publicado no livro Mar de mineiro: poemas e canções (1982). Poema integrante da série Papos de Anjo da Guarda. | |
In: CACASO. Beijo na boca e outros poemas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.139 | |
NOTA: Música de Sueli Cost" | |
Thiago de Mello,"Canção do Amor Armado | |
Vinha a manhã no vento do verão, | |
e de repente aconteceu. | |
Melhor | |
é não contar quem foi nem como foi, | |
porque outra história vem, que vai ficar. | |
Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria, | |
onde o voto, secreto como o beijo | |
no começo do amor, e universal | |
como o pássaro voando — sempre o voto | |
era um direito e era um dever sagrado. | |
De repente deixou de ser sagrado, | |
de repente deixou de ser direito, | |
de repente deixou de ser, o voto. | |
Deixou de ser completamente tudo. | |
Deixou de ser encontro e ser caminho, | |
deixou de ser dever e de ser cívico, | |
deixou de ser apaixonado e belo | |
e deixou de ser arma — de ser a arma, | |
porque o voto deixou de ser do povo. | |
Deixou de ser do povo e não sucede, | |
e não sucedeu nada, porém nada? | |
De repente não sucede. | |
Ninguém sabe nunca o tempo | |
que o povo tem de cantar. | |
Mas canta mesmo é no fim. | |
Só porque não tem mais voto, | |
o povo não é por isso | |
que vai deixar de cantar, | |
nem vai deixar de ser povo. | |
Pode ter perdido o voto, | |
que era sua arma e poder. | |
Mas não perdeu seu dever | |
nem seu direito de povo, | |
que é o de ter sempre sua arma, | |
sempre ao alcance da mão. | |
De canto e de paz é o povo, | |
quando tem arma que guarda | |
a alegria do seu pão. | |
Se não é mais a do voto, | |
que foi tirada à traição, | |
outra há de ser, e qual seja | |
não custa o povo a saber, | |
ninguém nunca sabe o tempo | |
que o povo tem de chegar. | |
O povo sabe, eu não sei. | |
Sei somente que é um dever, | |
somente sei que é um direito. | |
Agora sim que é sagrado: | |
cada qual tenha sua arma | |
para quando a vez chegar | |
de defender, mais que a vida, | |
a canção dentro da vida, | |
para defender a chama | |
de liberdade acendida | |
no fundo do coração. | |
Cada qual que tenha a sua, | |
qualquer arma, nem que seja | |
algo assim leve e inocente | |
como este poema em que canta | |
voz de povo — um simples canto | |
de amor. | |
Mas de amor armado. | |
Que é o mesmo amor. Só que agora | |
que não tem voto, amor canta | |
no tom que seja preciso | |
sempre que for na defesa | |
do seu direito de amar. | |
O povo, não é por isso | |
que vai deixar de cantar. | |
Rio, 6 de fevereiro, 1966 | |
Imagem - 00850001 | |
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto. A Canção do Amor Armado (1966). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
Fernando Pessoa,"A pálida luz da manhã de Inverno, | |
A pálida luz da manhã de inverno, | |
O cais e a razão | |
Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer, | |
Ao meu coração. | |
O que tem que ser | |
Será, quer eu queira que seja ou que não. | |
No rumor do cais, no bulício do rio | |
Na rua a acordar | |
Não há mais sossego, nem menos sossego sequer, | |
Para o meu 'sperar. | |
O que tem que não ser | |
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar. | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"Descoberta da Literatura | |
No dia-a-dia do engenho, | |
toda a semana, durante, | |
cochichavam-me em segredo: | |
saiu um novo romance. | |
E da feira do domingo | |
me traziam conspirantes | |
para que os lesse e explicasse | |
um romance de barbante. | |
Sentados na roda morta | |
de um carro de boi, sem jante, | |
ouviam o folheto guenzo , | |
a seu leitor semelhante, | |
com as peripécias de espanto | |
preditas pelos feirantes. | |
Embora as coisas contadas | |
e todo o mirabolante, | |
em nada ou pouco variassem | |
nos crimes, no amor, nos lances, | |
e soassem como sabidas | |
de outros folhetos migrantes, | |
a tensão era tão densa, | |
subia tão alarmante, | |
que o leitor que lia aquilo | |
como puro alto-falante, | |
e, sem querer, imantara | |
todos ali, circunstantes, | |
receava que confundissem | |
o de perto com o distante, | |
o ali com o espaço mágico, | |
seu franzino com o gigante, | |
e que o acabassem tomando | |
pelo autor imaginante | |
ou tivesse que afrontar | |
as brabezas do brigante. | |
(E acabaria, não fossem | |
contar tudo à Casa-grande: | |
na moita morta do engenho, | |
um filho-engenho, perante | |
cassacos do eito e de tudo, | |
se estava dando ao desplante | |
de ler letra analfabeta | |
de curumba, no caçanje | |
próprio dos cegos de feira, | |
muitas vezes meliantes. )" | |
Miguel Torga,"Natal | |
Um anjo imaginado, | |
Um anjo diabético, atual, | |
Ergueu a mão e disse: — É noite de Natal, | |
Paz à imaginação! | |
E todo o ritual | |
Que antecede o milagre habitual | |
Perdeu a exaltação. | |
Em vez de excelsos hinos de confiança | |
No mistério divino, | |
E de mirra, e de incenso e ouro | |
Derramados | |
No presépio vazio, | |
Duas perguntas brancas, regeladas | |
Como a neve que cai, | |
E breve como o vento | |
Que entra por uma fresta, quizilento, | |
Redemoinha e sai: | |
A volta da lareira | |
Quantas almas se aquecem | |
Fraternalmente? | |
Quantas desejam que o Menino venha | |
Ouvir humanamente | |
O lancinante crepitar da lenha? | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Canção Amiga | |
Eu preparo uma canção | |
em que minha mãe se reconheça, | |
todas as mães se reconheçam, | |
e que fale como dois olhos. | |
Caminho por uma rua | |
que passa em muitos países. | |
Se não me vêem, eu vejo | |
e saúdo velhos amigos. | |
Eu distribuo um segredo | |
como quem ama ou sorri. | |
No jeito mais natural | |
dois carinhos se procuram. | |
Minha vida, nossas vidas | |
formam um só diamante. | |
Aprendi novas palavras | |
e tornei outras mais belas. | |
Eu preparo uma canção | |
que faça acordar os homens | |
e adormecer as crianças. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O Ano Passado | |
O Ano Passado | |
O ano passado não passou, | |
continua incessantemente. | |
Em vão marco novos encontros. | |
Todos são encontros passados. | |
As ruas, sempre do ano passado, | |
e as pessoas, também as mesmas, | |
com iguais gestos e falas. | |
O céu tem exatamente | |
sabidos tons de amanhecer, | |
de sol pleno, de descambar | |
como no repetidíssimo ano passado. | |
Embora sepultos, os mortos do ano passado | |
sepultam-se todos os dias. | |
Escuto os medos, conto as libélulas, | |
mastigo o pão do ano passado. | |
E será sempre assim daqui por diante. | |
Não consigo evacuar | |
o ano passado. | |
" | |
Cecília Meireles,"O Menino Azul | |
O menino quer um burrinho | |
para passear. | |
Um burrinho manso, | |
que não corra nem pule, | |
mas que saiba conversar. | |
O menino quer um burrinho | |
que saiba dizer | |
o nome dos rios, | |
das montanhas, das flores, | |
— de tudo o que aparecer. | |
O menino quer um burrinho | |
que saiba inventar histórias bonitas | |
com pessoas e bichos | |
e com barquinhos no mar. | |
E os dois sairão pelo mundo | |
que é como um jardim | |
apenas mais largo | |
e talvez mais comprido | |
e que não tenha fim. | |
(Quem souber de um burrinho desses, | |
pode escrever | |
para a Ruas das Casas, | |
Número das Portas, | |
ao Menino Azul que não sabe ler.) | |
" | |
Adélia Prado,"Explicação de poesia sem ninguém pedir | |
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, | |
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, | |
atravessou minha vida, | |
virou só sentimento. | |
(in Bagagem) | |
" | |
Charles Baudelaire,"O ALBATROZ | |
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem | |
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, | |
Que acompanha, indolente parceiro de viagem, | |
O navio a singrar por glaucos patamares. | |
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, | |
O monarca do azul, canhestro e envergonhado, | |
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, | |
As asas em que fulge um branco imaculado. | |
Antes tão belo, como é feio na desgraça | |
Esse viajante agora flácido e acanhado! | |
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, | |
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! | |
O Poeta se compara ao próncipe da altura | |
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; | |
Exilado no chão, em meio à turba obscura, | |
As asas de gigante impedem-no de andar. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Aqui está-se sossegado, | |
Aqui está-se sossegado, | |
Longe do mundo e da vida, | |
Cheio de não ter passado, | |
Até o futuro se olvida. | |
Aqui está-se sossegado. | |
Tinha os gestos inocentes, | |
Seus olhos riam no fundo. | |
Mas invisíveis serpentes | |
Faziam-a ser do mundo. | |
Tinha os gestos inocentes. | |
Aqui tudo é paz e mar. | |
Que longe a vista se perde | |
Na solidão a tornar | |
Em sombra o azul que é verde! | |
Aqui tudo é paz e mar. | |
Sim, poderia ter sido... | |
Mas vontade nem razão | |
O mundo têm conduzido | |
A prazer ou conclusão. | |
Sim, poderia ter sido... | |
Agora não esqueço e sonho. | |
Fecho os olhos, oiço o mar | |
E de ouvi-lo bem, suponho | |
Que veio azul a esverdear. | |
Agora não esqueço e sonho. | |
Não foi propósito, não. | |
Os seus gestos inocentes | |
Tocavam no coração | |
Como invisíveis serpentes. | |
Não foi propósito, não. | |
Durmo, desperto e sozinho. | |
Que tem sido a minha vida? | |
Velas de inútil moinho — | |
Um movimento sem lida... | |
Durmo, desperto e sozinho. | |
Nada explica nem consola. | |
Tudo está certo depois. | |
Mas a dor que nos desola, | |
A mágoa de um não ser dois | |
Nada explica nem consola. | |
" | |
Cesário Verde,"Deslumbramentos | |
Milady, é perigoso contemplá-la | |
Quando passa aromática e normal, | |
Com seu tipo tão nobre e tão de sala, | |
Com seus gestos de neve e de metal. | |
Sem que nisso a desgoste ou desenfade, | |
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas, | |
Eu vejo-a, com real solenidade, | |
Ir impondo toilettes complicadas!… | |
Em si tudo me atrai como um tesoiro: | |
O seu ar pensativo e senhoril, | |
A sua voz que tem um timbre de oiro | |
E o seu nevado e lúcido perfil! | |
Ah! Como me estonteia e me fascina… | |
E é, na graça distinta do seu porte, | |
Como a Moda supérflua e feminina, | |
E tão alta e serena como a Morte!… | |
Eu ontem encontrei-a, quando vinha, | |
Britânica, e fazendo-me assombrar; | |
Grande dama fatal, sempre sozinha, | |
E com firmeza e música no andar! | |
O seu olhar possui, num jogo ardente, | |
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo; | |
Como um florete, fere agudamente, | |
E afaga como o pêlo dum regalo! | |
Pois bem. Conserve o gelo por esposo, | |
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos, | |
O modo diplomático e orgulhoso | |
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos. | |
E enfim prossiga altiva como a Fama, | |
Sem sorrisos, dramática, cortante; | |
Que eu procuro fundir na minha chama | |
Seu ermo coração, como a um brilhante. | |
Mas cuidado, milady, não se afoite, | |
Que hão-de acabar os bárbaros reais; | |
E os povos humilhados, pela noite, | |
Para a vingança aguçam os punhais. | |
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas, | |
Sob o cetim do Azul e as andorinhas, | |
Eu hei-de ver errar, alucinadas, | |
E arrastando farrapos - as rainhas! | |
" | |
Olavo Bilac,"Longe de ti | |
XXXI | |
Longe de ti, se escuto, porventura, | |
Teu nome, que uma boca indiferente | |
Entre outros nomes de mulher murmura, | |
Sobe-me o pranto aos olhos, de repente... | |
Tal aquele, que, mísero, a tortura | |
Sofre de amargo exílio, e tristemente | |
A linguagem natal, maviosa e pura, | |
Ouve falada por estranha gente... | |
Porque teu nome é para mim o nome | |
De uma pátria distante e idolatrada, | |
Cuja saudade ardente me consome: | |
E ouvi-lo é ver a eterna primavera | |
E a eterna luz da terra abençoada, | |
Onde, entre flores, teu amor me espera. | |
" | |
Cecília Meireles,"Noturno | |
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa? | |
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte? | |
Que vale o pensamento humano, | |
esforçado e vencido, | |
na turbulência das horas? | |
Que valem a conversa apenas murmurada, | |
a erma ternura, os delicados adeuses? | |
Que valem as pálpebras da tímida esperança, | |
orvalhadas de trêmulo sal? | |
O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis, | |
no profundo diagrama. | |
E o homem tão inutilmente pensante e pensado | |
só tem a tristeza para distingui-lo. | |
Porque havia nas úmidas paragens | |
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano: | |
grandes como pórticos, suaves como veludo, | |
mas sem lembranças históricas, | |
sem compromissos de viver. | |
Grandes animais sem passado, sem antecedentes, | |
puros e límpidos, | |
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos | |
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas | |
e na seda longa das crinas desfraldadas. | |
Mas a noite desmanchava-se no oriente, | |
cheia de flores amarelas e vermelhas. | |
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes, | |
erguiam no ar a vigorosa cabeça, | |
e começavam a puxar as imensas rodas do dia. | |
Ah! o despertar dos animais no vasto campo! | |
Este sair do sono, este continuar da vida! | |
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite | |
ao claro dia da humana vassalagem! | |
" | |
Manuel António Pina,"O regresso | |
" | |
Fernando Pessoa,"Pequena vida consciente | |
Pequena vida consciente | |
A quem outra persegue | |
A imagem repetida | |
Do abismo onde perdê-la. | |
" | |
Marina Colasanti,"Tua mão em mim | |
Você me acorda no meio da noite | |
e eu que navegava tão distante | |
cravada a proa em espumas | |
desfraldados os sonhos | |
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis | |
a boca ainda salgada mas já amarga | |
molhada a crina | |
encharcados os pêlos | |
na maresia que do meu corpo escorre. | |
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo. | |
A correnteza arrasta. | |
Só quando o primeiro sopro escapar | |
entre os lábios da manhã | |
levantarei âncora. | |
Mas será tarde demais. | |
O sol nascente terá trancado o porto | |
e estarei prisioneira da vigília. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Estrela da Manhã | |
Eu quero a estrela da manhã | |
Onde está a estrela da manhã? | |
Meus amigos meus inimigos | |
Procurem a estrela da manhã | |
Ela desapareceu ia nua | |
Desapareceu com quem? | |
Procurem por toda a parte | |
Digam que sou um homem sem orgulho | |
Um homem que aceita tudo | |
Que me importa? | |
Eu quero a estrela da manhã | |
Três dias e três noites | |
Fui assassino e suicida | |
Ladrão, pulha, falsário | |
Virgem mal-sexuada | |
Atribuladora dos aflitos | |
Girafa de duas cabeças | |
Pecai por todos pecai com todos | |
Pecai com os malandros | |
Pecai com os sargentos | |
Pecai com os fuzileiros navais | |
Pecai de todas as maneiras | |
Com os gregos e com os troianos | |
Com o padre e com o sacristão | |
Com o leproso de Pouso Alto | |
Depois comigo | |
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadascomerei terra e direi coisas de umaternura tão simples | |
Que tu desfalecerás | |
Procurem por toda parte | |
Pura ou degradada até a última baixeza | |
Eu quero a estrela da manhã. | |
" | |
Alphonsus de Guimaraens,"Epífona | |
Nossa-Senhora, quando os meus olhos | |
Semicerrados, já na agonia, | |
Não mais louvarem os vossos olhos... | |
Valei-me, Virgem Maria. | |
Por entre escolhos, por entre sirtes, | |
Consolai os meus olhos tristes. | |
Nossa-Senhora, quando os meus braços | |
Não mais se erguerem, já na agonia, | |
Oh! dai-me o auxílio dos vossos braços... | |
Valei-me, Virgem Maria. | |
Por entre escolhos, por entre sirtes, | |
Auxiliai os meus braços tristes. | |
Nossa-Senhora, quando os meus lábios | |
Não mais falarem, já na agonia, | |
Desça o consolo dos vossos lábios... | |
Valei-me, Virgem Maria. | |
Por entre escolhos, por entre sirtes, | |
Consolai os meus lábios tristes. | |
Nossa-Senhora, quando os meus passos | |
Se transviarem, já na agonia, | |
Vinde guiar-me com os vossos passos... | |
Valei-me, Virgem Maria. | |
Por entre escolhos, por entre sirtes, | |
Sede guia aos meus passos tristes. | |
Conceição-do-Serro, 1896-1898 | |
Fim de ""Setenário das dores de Nossa-Senhora"" | |
Publicado no livro Setenário das dores de Nossa Senhora. Câmara Ardente: poemas compostos por Alphonsus de Guimaraens (1899). Poema integrante da série Setenário das Dores de Nossa Senhora. | |
In: GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho. Introdução de Eduardo Portella. Notas biográficas de João Alphonsus. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. p. 168. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira, 20)" | |
Alexandre O'Neill,"Gaivota | |
Se uma gaivota viesse | |
trazer-me o céu de Lisboa | |
no desenho que fizesse, | |
nesse céu onde o olhar | |
é uma asa que não voa, | |
esmorece e cai no mar. | |
Que perfeito coração | |
no meu peito bateria, | |
meu amor na tua mão, | |
nessa mão onde cabia | |
perfeito o meu coração. | |
Se um português marinheiro, | |
dos sete mares andarilho, | |
fosse quem sabe o primeiro | |
a contar-me o que inventasse, | |
se um olhar de novo brilho | |
no meu olhar se enlaçasse. | |
Que perfeito coração | |
no meu peito bateria, | |
meu amor na tua mão, | |
nessa mão onde cabia | |
perfeito o meu coração. | |
Se ao dizer adeus à vida | |
as aves todas do céu, | |
me dessem na despedida | |
o teu olhar derradeiro, | |
esse olhar que era só teu, | |
amor que foste o primeiro. | |
Que perfeito coração | |
morreria no meu peito morreria, | |
meu amor na tua mão, | |
nessa mão onde perfeito | |
bateu o meu coração. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Rosa do Mundo | |
Rosa. Rosa do mundo. | |
Queimada. | |
Suja de tanta palavra. | |
Primeiro orvalho sobre o rosto. | |
que foi pétala | |
a pétala lenço de soluços. | |
Obscena rosa. Repartida | |
Amada. | |
Boca ferida, sopro de ninguém. | |
Quase nada. | |
" | |
Fernando Pessoa,"21 - Se eu pudesse trincar a terra toda | |
Se eu pudesse trincar a terra toda | |
E sentir-lhe um paladar, | |
E se a terra fosse uma cousa para trincar | |
Seria mais feliz um momento... | |
Mas eu nem sempre quero ser feliz. | |
É preciso ser de vez em quando infeliz | |
Para se poder ser natural... | |
Nem tudo é dias de sol, | |
E a chuva, quando falta muito, pede-se, | |
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade | |
Naturalmente, como quem não estranha | |
Que haja montanhas e planícies | |
E que haja rochedos e erva... | |
O que é preciso é ser-se natural e calmo | |
Na felicidade ou na infelicidade, | |
Sentir como quem olha, | |
pensar como quem anda, | |
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, | |
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... | |
Assim é e assim seja... | |
" | |
Cecília Meireles,"Encomenda | |
Desejo uma fotografia | |
como esta — o senhor vê? — como esta: | |
em que para sempre me ria | |
como um vestido de eterna festa. | |
Como tenho a testa sombria, | |
derrame luz na minha testa. | |
Deixe esta ruga, que me empresta | |
um certo ar de sabedoria. | |
Não meta fundos de floresta | |
nem de arbitrária fantasia... | |
Não... Neste espaço que ainda resta, | |
ponha uma cadeira vazia. | |
" | |
Cruz e Sousa,"LIVRE | |
Últimos Sonetos | |
Livre! Ser livre da matéria escrava, | |
arrancar os grilhões que nos flagelam | |
e livre penetrar nos Dons que selam | |
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava. | |
Livre da humana, da terrestre bava | |
dos corações daninhos que regelam, | |
quando os nossos sentidos se rebelam | |
contra a Infâmia bifronte que deprava. | |
Livre! bem livre para andar mais puro, | |
mais junto à Natureza e mais seguro | |
do seu Amor, de todas as justiças. | |
Livre! para sentir a Natureza, | |
para gozar, na universal Grandeza, | |
Fecundas e arcangélicas preguiças. | |
" | |
Al Berto,"Postscriptum | |
... apercebo o lume dum coração antigo e simples | |
atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter... | |
... aqui deixo o espólio daquele cuja vida | |
é cintilação de lugares nítidos... | |
(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro) | |
... tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso | |
ficaria tudo por recomeçar... | |
... mas se aqui voltares | |
talvez encontres estes papéis escritos | |
no recanto mais esquecido da noite... talvez | |
descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou... | |
... vou destruir todas as imagens onde me reconheço | |
e passar o resto da vida assobiando ao medo... | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"Rios sem Discurso | |
A Gabino Alejandro Carriedo | |
Quando um rio corta, corta-se de vez | |
o discurso-rio de água que ele fazia; | |
cortado, a água se quebra em pedaços, | |
em poços de água, em água paralítica. | |
Em situação de poço, a água equivale | |
a uma palavra em situação dicionária: | |
isolada, estanque no poço dela mesma, | |
e porque assim estanque, estancada; | |
e mais: porque assim estancada, muda, | |
e muda porque com nenhuma comunica, | |
porque cortou-se a sintaxe desse rio, | |
o fio de água por que ele discorria. | |
* | |
O curso de um rio, seu discurso-rio, | |
chega raramente a se reatar de vez; | |
um rio precisa de muito fio de água | |
para refazer o fio antigo que o fez. | |
Salvo a grandiloquência de uma cheia | |
lhe impondo interina outra linguagem, | |
um rio precisa de muita água em fios | |
para que todos os poços se enfrasem: | |
se reatando, de um para outro poço, | |
em frases curtas, então frase e frase, | |
até a sentença-rio do discurso único | |
em que se tem voz a seca ele combate. | |
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.350-351. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Cecília Meireles,"Lua adversa | |
Tenho fases, como a lua | |
Fases de andar escondida, | |
fases de vir para a rua... | |
Perdição da minha vida! | |
Perdição da vida minha! | |
Tenho fases de ser tua, | |
tenho outras de ser sozinha. | |
Fases que vão e vêm, | |
no secreto calendário | |
que um astrólogo arbitrário | |
inventou para meu uso. | |
E roda a melancolia | |
seu interminável fuso! | |
Não me encontro com ninguém | |
(tenho fases como a lua...) | |
No dia de alguém ser meu | |
não é dia de eu ser sua... | |
E, quando chega esse dia, | |
o outro desapareceu... | |
" | |
Eugénio de Andrade,"O Inominável | |
Nunca | |
dos nossos lábios aproximaste | |
o ouvido; nunca | |
ao nosso ouvido encostaste os lábios; | |
és o silencio, | |
o duro espesso impenetrável | |
silêncio sem figura. | |
Escutamos, bebemos o silencio | |
Nas próprias mãos | |
E nada nos une | |
- nem sequer sabemos se tens nome. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Oficina Irritada | |
Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender." | |
Cora Coralina,"Poema do Milho | |
Milho . .. | |
Punhado plantado nos quintais. | |
Talhões fechados pelas roças. | |
Entremeado nas lavouras, | |
Baliza marcante nas divisas. | |
Milho verde. Milho seco . | |
Bem granado, cor de ouro. | |
Alvo. às vezes vareia, | |
- espiga roxa, vermelha, salpintada. | |
Milho virado, maduro, onde o feijão enrama | |
Milho quebrado, debulhado | |
na festa das colheitas anuais. | |
Bandeira de milho levada para os montes | |
largada pelas roças: | |
Bandeiras esquecidas na fartura. | |
Respiga descuidada | |
dos pássaros e dos bichos. | |
Milho empaiolado . | |
abastança tranqüila | |
do rato, | |
do caruncho. | |
do cupim. | |
Palha de milho para o colchão. | |
Jogada pelos pastos. | |
Mascada pelo gado. | |
Trançada em fundos de cadeiras. | |
Queimada nas coivaras. | |
Leve mortalha de cigarros. | |
Balaio de milho trocado com o vizinho | |
no tempo da planta. | |
""- Não se planta, nos sítios, semente da mcsma terra"". | |
Ventos rondando, redemoinhando. | |
Ventos de outubro. | |
Tempo mudado. Revôo de saúva. | |
Trovão surdo, tropeiro. | |
Na vazante do brejo, no lameiro, | |
o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro. | |
Acauã de rnadrugada | |
marcando o tempo, chamando chuva. | |
Roça nova encoivarada, | |
começo de brotação. | |
Roça velha destocada. | |
Palhada batida, riscada de arado. | |
Barrufo de chuva. | |
Cheiro de terra; cheiro de mato, | |
Terra molhada, Terra saroia. | |
Noite chuvada, relampeada. | |
Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais. | |
Observatório: lua virada. Lua pendida . . . | |
Circo amarelo, distanciado, | |
marcando chuva. | |
Calendário, Astronomia do lavrador. | |
planta de milho na lua-nova. | |
Sistema velho colonial. | |
Planta de enxada. | |
Seis grãos na cova, | |
quatro na regra, dois de quebra. | |
Terra arrastada com o pé , | |
pisada, incalcada, mode os bichos. | |
Lanceado certo-cabo-da-enxada.. | |
Vai, vem . . . sobe, desce . . . | |
terra molhada, terra saroia . . . | |
Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra | |
Sobe. Desce . , . | |
Camisa de riscado, calça de mescla | |
Vai, vem . . . | |
golpeando a terra, o plantador. | |
Na sombra da moita, | |
na volta do toco - o ancorote dágua: | |
Cavador de milho, que está fazendo? | |
A que milênios vem você plantando. | |
Capanga de grãos dourados a tiracolo. | |
Crente da Terra, Sacerdote da terra. | |
Pai da terra. | |
Filho da terra. | |
Ascendente da terra. | |
Descendente da terra. | |
Ele; mesmo; terra. | |
Planta com fé religiosa. | |
Planta sozinho, silencioso. | |
Cava e planta. | |
Gestos pretéritos, imemoriais.. | |
Oferta remota; patriarcal. | |
Liturgia milenária. | |
Ritual de paz. | |
Em qualquer parte da Terra | |
um homem estará sempre plantando , | |
recriando a Vida. | |
Recomeçando o Mundo. | |
Milho plantado; dormimdo no chão, aconchegados | |
seis grãos na cova. | |
Quatro na regra, dois de quebra. | |
Vida inerte que a terra vai multiplicar | |
Evém a perseguìção: | |
o bichinho anônimo que espia, pressente. | |
A formiga-cortadeira - quenquém. | |
A ratinha do chão, exploradeira. | |
A rosca vigilante na rodilha, | |
O passo-preto vagabundo, galhofeiro, | |
vaiando, sorrindo . . . | |
aos gritos arrancando, mal aponta. | |
O cupim clandestino | |
roendo, minando, | |
só de ruindade. | |
E o miho realiza o milagre genético de nascer: | |
Germina. Vence os inimigos, | |
Aponta aos milhares. | |
- Seis grãos na cova. | |
- Quatro na regra, dois de quebra, | |
Um canudinho enrolado. | |
Amarelo-pálido, | |
frágil, dourado, se levanta. | |
Cria sustância. | |
Passa a verde. | |
Liberta-se. Enraíza, | |
Abre folhas espaldeiradas. | |
Encorpa. Encana. Disciplina, | |
com os poderes de Deus. | |
Jesus e São João | |
desceram de noite na roça , | |
botaram a bênção no milho, | |
E veio com eles | |
uma chuva maneira, criadeira, fininha, | |
uma chuva velhinha, | |
de cabelos brancos, | |
abençoando | |
a infância do milho. | |
O mato vem vindo junto, | |
Sementeira. | |
As pragas todas, conluiadas. | |
Carrapicho. Amargoso. Picão. | |
Marianinha. Caruru-de-espinho. | |
Pé-de-galinha. Colchão. | |
Alcança, não alcança. | |
Competição. | |
Pac . . . Pac . . . Pac . . . | |
a enxada canta. | |
Bota o mato abaixo. | |
arrasta uma terrinha para o pé da planta. | |
""...- Carpa bem feita vale por duas . . ."" | |
Quando pode. Quando não... sarobeia. | |
Chega terra O milho avoa. | |
Cresce na vista dos olhos. | |
Aumenta de dia. Pula de noite. | |
Verde Entonado, disciplinado, sadio. | |
Agora ... | |
A lagarta da folha, | |
lagarta rendeira . . . | |
Quem é que vê ? | |
Faz a renda da folha no quieto da noite. | |
Dorme de dia no olho da planta, | |
Gorda; Barriguda. Cheia. | |
Expurgo : . . nada . . . força da lua . . , | |
Chovendo acaba - a Deus querê. | |
"" O mio tá bonito ... "" | |
""-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas . "" | |
""- O mio tá marcando . . . "" | |
Condieionando o futuro: | |
""- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto ... | |
Um refrigério "" | |
""- O mio lá tá verde qui chega a star azur..."" | |
- Conversam vizinhos e compadres. | |
Milho crescendo, garfando, | |
esporando nas defesas... | |
Milho embandeirado. | |
Embalado pelo vento. | |
""Do chão ao pendão, 60 dias vão"". | |
Passou aguaceiro, pé-de-vento. | |
"" - O milho acamou . . . "" ""- Perdido?"" . . . Nada... | |
Ele arriba com os poderes de Deus .. . "" | |
E arribou mesmo; garboso, empertigado, vertical | |
No cenário vegetal | |
um engraçado boneco de frangalhos | |
sobreleva, vigilante. | |
Alegria verde dos periquitos gritadores . . . | |
Bandos em sequência . . . Evolução . . . | |
Pouso . . . retrocesso. | |
Manobras em conjunto. | |
Desfeita formação. | |
Roedores grazinando, se fartando, | |
foliando, vaiando | |
os ingênuos espantalhos. | |
""Jesus e São João | |
andaram de noite passeando na lavoura | |
e botaram a bênção no milho"" . | |
Fala assim gente de roça e fala certo. | |
Pois não está lá na taipa do rancho | |
o quadro deles, passeando dentro dos trigais? | |
Analogias . . . Coerências. | |
Milho embandeirado | |
bonecando em gestação. | |
- Senhor! . . . Como a roça cheira bem ! | |
Flor de milho, travessa e festiva. | |
Flor feminina, esvoaçante, faceira. | |
Flor masculina - lúbrica, desgraciosa. | |
Bonecas de milho túrgidas, | |
negaceando, se mostrando vaidosas. | |
Túnicas, sobretúnicas . . . | |
saias, sobre-saias . . . | |
Anáguas . . . camisas verdes. | |
Cabelos verdes . . . | |
~Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas. . . | |
- O milharal é desfile de beleza vegetal. | |
Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas. | |
Cabelos prateados, verde-gaio. | |
Cabelos roxos, lisos, encrespados. | |
Destrançados. | |
Cabelos compridos, curtos, | |
queimados, despenteados . | |
Xampu de chuvas . . . | |
Flagrâncias novas no milharal. | |
- Senhor, como a roça cheira bem! . . . | |
As bandeiras altaneiras | |
vão se abrindo em formação. | |
Pendões ao vento. | |
Extravasão da libido vegetal. | |
procissão fálica, pagã. | |
Um sentido genésico domina o milharal. | |
Flor masculina erótica, libidinosa, | |
polinizando, fecundando | |
a florada adolescente das bonecas: | |
Boneca de milho, vestida de palha . . . | |
Sete cenários defendem o grão | |
Gordas, esguias, delgadas; alongadas | |
Cheias, fecundadas. | |
Cabelos soltos excitantes. | |
Vestidas de palha.<" | |
Eugénio de Andrade,"Última Canção | |
Se puderes ainda | |
ouve-me, rio de cristal, ave | |
matutina. ouve-me, | |
luminoso fio tecido pela neve, | |
esquivo e sempre adiado | |
aceno do paraíso. | |
Ouve-me, se puderes ainda, | |
Devastador desejo, | |
fulvo animal de alegria. | |
Se não és alucinação | |
ou miragem ou quimera, ouve-me | |
ainda: vem agora | |
e não na hora da nossa morte | |
- dá-me a beber a própria sede. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Insensatez | |
Ah, insensatez que você fez | |
Coração mais sem cuidado | |
Fez chorar de dor o seu amor | |
Um amor tão delicado | |
Ah, por que você foi tão fraco assim | |
Assim tão desalmado | |
Ah, meu coração, quem nunca amou | |
Não merece ser amado | |
Vai, meu coração, ouve a razão | |
Usa só sinceridade | |
Quem semeia vento, diz a razão | |
Colhe sempre tempestade | |
Vai, meu coração, pede perdão | |
Perdão apaixonado | |
Vai, porque quem não pede perdão | |
Não é nunca perdoado | |
" | |
Luís de Camões,"Catarina é mais fermosa | |
Mote | |
Catarina | |
bem promete; | |
Eramá! como ela mente! | |
Voltas | |
Catarina | |
é mais fermosa | |
Pera mim que a luz do dia; | |
Mas mais fermosa seria, | |
Se não fosse mentirosa. | |
Hoje a vejo piedosa; | |
Amanhã tão diferente, | |
Que sempre cuido que mente. | |
Catarina | |
me mentiu | |
Muitas vezes, sem ter lei, | |
E todas lhe perdoei | |
Por uma só que cumpriu. | |
Se como me consentiu | |
Falar-lhe, o mais me consente, | |
Nunca mais direi que mente. | |
Má, | |
mentirosa, malvada, | |
Dizei: pera que mentis? | |
Prometeis, e não cumpris? | |
Pois sem cumprir, tudo é nada. | |
Nem sois bem aconselhada; | |
Que quem promete, se mente, | |
O que perde não no sente. | |
Jurou-me | |
aquela cadela | |
De vir, pela alma que tinha; | |
Enganou-me; tinha a minha, | |
Deu-lhe pouco de perdê-la. | |
A vida gasto após ela. | |
Porque ma dá, se promete; | |
Mas tira-ma, quando mente. | |
Tudo vos consentiria | |
Quanto quisésseis fazer, | |
Se esse vosso prometer | |
Fosse por me ter um dia. | |
Todo então me desfaria | |
Convosco; e vós, de contente, | |
Zombaríeis de quem mente. | |
Prometeu-me | |
ontem de vir, | |
Nunca mais apareceu; | |
Creio que não prometeu | |
Se não só por me mentir. | |
Faz-me, enfim, chorar e rir: | |
Rio quando me promete, | |
Mas choro quando me mente. | |
Mas | |
pois folgais de mentir, | |
Prometendo de me ver, | |
Eu vos deixo o prometer, | |
Deixai-me vós o cumprir: | |
Haveis então de sentir | |
Quanto a minha vida sente | |
O servir a quem lhe mente." | |
Castro Alves,"Beijo eterno | |
Quero um beijo sem fim, | |
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo! | |
Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo, | |
Beija-me assim! | |
O ouvido fecha ao rumor | |
Do mundo, e beija-me, querida! | |
Vive só para mim, só para a minha vida, | |
Só para o meu amor! | |
Fora, repouse em paz | |
Dormindo em calmo sono a calma natureza, | |
Ou se debata, das tormentas presa, | |
Beija inda mais! | |
E, enquanto o brando calor | |
Sinto em meu peito de teu seio, | |
Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio, | |
Com o mesmo ardente amor! | |
... | |
Diz tua boca: ""Vem!"" | |
Inda mais! diz a minha, a soluçar... Exclama | |
Todo o meu corpo que o teu corpo chama: | |
""Morde também!"" | |
Ai! morde! que doce é a dor | |
Que me entra as carnes, e as tortura! | |
Beija mais! morde mais! que eu morra de ventura, | |
Morto por teu amor! | |
Quero um beijo sem fim, | |
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo! | |
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo! | |
Beija-me assim! | |
O ouvido fecha ao rumor | |
Do mundo, e beija-me, querida! | |
Vive só para mim, só para a minha vida, | |
Só para o meu amor! | |
" | |
Mário Quintana,"Canção da Garoa | |
Em cima do telhado | |
Pirulin lulin lulin, | |
Um anjo, todo molhado, | |
Soluça no seu flautim. | |
O relógio vai bater: | |
As molas rangem sem fim. | |
O retrato na parede | |
Fica olhando para mim. | |
E chove sem saber porquê | |
E tudo foi sempre assim! | |
Parece que vou sofrer: | |
Pirulin lulin lulin... | |
" | |
Al Berto,"Uma Paixão | |
Visita-me enquanto não envelheço | |
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me | |
com teu rosto de Modigliani suicidado | |
tenho uma varanda ampla cheia de malvas | |
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores | |
vem ver-me antes que a bruma contamine os alicerces | |
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo | |
subindo à boca sulfurosa dos espelhos | |
vem antes que desperte em mim o grito | |
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão | |
derrama-se quando tua ausência se prende às veias | |
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro | |
perco-te no sono das marítimas paisagens | |
estas feridas de barro e quartzo | |
os olhos escancarados para a infindável água | |
vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite | |
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te" | |
Vinicius de Moraes,"Quem é homem de bem | |
Quem é homem de bem, | |
não trai | |
O amor que lhe quer | |
seu bem | |
Quem diz muito que vai | |
não vai | |
Assim como não vai | |
não vem | |
Quem de dentro de si | |
não sai | |
Vai morrer sem amar | |
ninguém | |
O dinheiro de quem | |
não dá | |
é o trabalho de quem | |
não tem | |
Capoeira que é bom | |
não cai | |
E se um dia ele cai | |
Cai bem! | |
" | |
Miguel Torga,"SEGREDO | |
Sei um ninho. | |
E o ninho tem um ovo. | |
E o ovo, redondinho, | |
Tem lá dentro um passarinho | |
Novo. | |
Mas escusam de me atentar: | |
Nem o tiro, nem o ensino. | |
Quero ser um bom menino | |
E guardar | |
Este segredo comigo. | |
E ter depois um amigo | |
Que faça o pino | |
A voar... | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Epitáfio | |
Aqui jaz o Sol | |
Que criou a aurora | |
E deu luz ao dia | |
E apascentou a tarde | |
O mágico pastor | |
De mãos luminosas | |
Que fecundou as rosas | |
E as despetalou. | |
Aqui jaz o Sol | |
O andrógino meigo | |
E violento, que | |
Possuiu a forma | |
De todas as mulheres | |
E morreu no mar. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Gato | |
Com um lindo salto | |
Lesto e seguro | |
O gato passa | |
Do chão ao muro | |
Logo mudando | |
De opinião | |
Passa de novo | |
Do muro ao chão | |
E pega corre | |
Bem de mansinho | |
Atrás de um pobre | |
De um passarinho | |
Súbito, pára | |
Como assombrado | |
Depois dispara | |
Pula de lado | |
E quando tudo | |
Se lhe fatiga | |
Toma o seu banho | |
Passando a língua | |
Pela barriga. | |
" | |
Marina Colasanti,"Constatação Metafísica | |
Jogo o tempo | |
na água | |
E ele | |
nada. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Machado de Assis,"Livros e Flores | |
Teus olhos são meus livros. | |
Que livro há aí melhor, | |
Em que melhor se leia | |
A página do amor? | |
Flores me são teus lábios. | |
Onde há mais bela flor, | |
Em que melhor se beba | |
O bálsamo do amor? | |
" | |
José Régio,"Pérola solta | |
Sem que eu a esperasse, | |
Rolou aquela lágrima | |
No frio e na aridez da minha face. | |
Rolou devagarinho..., | |
Até à minha boca abriu caminho. | |
Sede! o que eu tenho é sede! | |
Recolhi-a nos lábios e bebi-a. | |
Como numa parede | |
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou, | |
Na boca me cantou, | |
Breve como essa lágrima, | |
Esta breve elegia. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Amor | |
Cala-te, a luz arde entre os lábios, | |
e o amor não contempla, sempre | |
o amor procura, tacteia no escuro, | |
essa perna é tua?, esse braço?, | |
subo por ti de ramo em ramo, | |
respiro rente á tua boca, | |
abre-se a alma à lingua, morreria | |
agora se mo pedisses, dorme, | |
nunca o amor foi facil, nunca, | |
também a terra morre. | |
" | |
Chacal,"Papo de Índio | |
Veiu uns ômi di saia preta | |
cheiu di caixinha e pó branco | |
qui eles disserum qui chamava açucri | |
aí eles falarum e nós fechamu a cara | |
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo | |
aí eles insistirum e nós comemu eles. | |
vocês repararam como o povo anda triste ? | |
é a cachaça que subiu de preço | |
a cachaça e outros gêneros de primeira | |
necessidade | |
cachaça a dois contos, ora veja, | |
veja a hora, | |
que horas são, | |
atenção | |
apontar: | |
FOGO | |
" | |
Marina Colasanti,"Preciso | |
Preciso que um barco atravesse o mar | |
lá longe | |
para sair dessa cadeira | |
para esquecer esse computador | |
e ter olhos de sal | |
boca de peixe | |
e o vento frio batendo nas escamas. | |
Preciso que uma proa atravesse a carne | |
cá centro | |
para andar sobre as águas | |
deitar nas ilhas e | |
olhar de longe esse prédio | |
essa sala | |
essa mulher sentada diante do computador | |
que bebe a branca luz eletrônica | |
e pensa no mar. | |
" | |
Al Berto,"Quando aqui não estás | |
Quando aqui não estás | |
o que nos rodeou põe-se a morrer | |
a janela que abre para o mar | |
continua fechada só nos sonhos | |
me ergo | |
abro-a | |
deixo a frescura e a força da manhã | |
escorrem pelos dedos prisioneiros | |
da tristeza | |
acordo | |
para a cegante claridade das ondas | |
um rosto desenvolve-se nítido | |
além | |
rasando o sal da imensa ausência | |
uma voz | |
quero morrer | |
com uma overdose de beleza | |
e num sussurro o corpo apaziguado | |
perscruta esse coração | |
esse | |
solitário caçador" | |
Paulo Leminski,"A Lua no Cinema | |
A lua foi ao cinema, | |
passava um filme engraçado, | |
a história de uma estrela | |
que não tinha namorado. | |
Não tinha porque era apenas | |
uma estrela bem pequena, | |
dessas que, quando apagam, | |
ninguém vai dizer, que pena! | |
Era uma estrela sozinha, | |
ninguém olhava pra ela, | |
e toda a luz que ela tinha | |
cabia numa janela. | |
A lua ficou tão triste | |
com aquela história de amor, | |
que até hoje a lua insiste: | |
— Amanheça, por favor! | |
Poema integrante da série Distraídos Venceremos. | |
In: LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991" | |
Álvares de Azevedo,"A lagartixa | |
A lagartixa ao sol ardente vive, | |
E fazendo verão o corpo espicha: | |
O clarão dos teus olhos me dá vida, | |
Tu és o sol e eu sol a lagartixa. | |
Amo-te como o vinho e como o sono, | |
Tu és meu copo e amoroso leito... | |
Mas teu néctar de amor jamais se esgota, | |
Travesseiro não há como teu peito. | |
Posso agora viver: para coroas | |
Não preciso no prado colher flores; | |
Engrinaldo melhor a minha fronte | |
Nas rosas mais gentis de teus amores. | |
Vale todo um harém a minha bela, | |
Em fazer-me ditoso ela capricha; | |
Vivo ao sol de seus olhos namorados, | |
Como ao sol de verão a lagartixa. | |
" | |
Lindolf Bell,"A Bomba | |
A vida esplende no subsolo. | |
Todas as mães foram derrotadas. | |
Os meninos cultivam silêncios | |
O mundo confere medalhas. | |
A bomba é um brinquedo muito mais difícil. | |
Muito mais difícil mesmo. | |
A bomba é um gorjeio mutilado. | |
A bomba não sabe fazer. | |
A bomba tem o mundo nas mãos. | |
A bomba é o não-brinquedo. | |
A bomba é uma gargalhada, | |
tubo de ensaio, | |
flor recolhida, | |
o não-homem. | |
A bomba, | |
a bomba-alimento-comum, | |
a bomba-alucinação, | |
a bomba-adeptos, | |
a bomba-hóspede de um hotel relativo | |
com a fachada escrita: MUNDO. | |
A bomba é um brinquedo muito mais difícil. | |
Muito mais difícil mesmo. | |
Poema integrante da série Arrebentação. | |
In: BELL, Lindolf. Incorporação: doze anos de poesia, 1962/1973. São Paulo: Quíron, 1974. (Sélesis, 3)" | |
Vinicius de Moraes,"A Rosa de Hiroxima | |
Pensem nas crianças | |
Mudas telepáticas | |
Pensem nas meninas | |
Cegas inexatas | |
Pensem nas mulheres | |
Rotas alteradas | |
Pensem nas feridas | |
Como rosas cálidas | |
Mas oh não se esqueçam | |
Da rosa da rosa | |
Da rosa de Hiroxima | |
A rosa hereditária | |
A rosa radioativa | |
Estúpida e inválida | |
A rosa com cirrose | |
A anti-rosa atômica | |
Sem cor sem perfume | |
Sem rosa sem nada. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Já | |
já não é hoje ? | |
não é aquioje? | |
já foi ontem? | |
será amanhã? | |
já quandonde foi? | |
quandonde será? | |
eu queria um jàzinho que fosse | |
aquijá | |
tuoje aquijá. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Hora Íntima | |
Quem pagará o enterro e as flores | |
Se eu me morrer de amores? | |
Quem, dentre amigos, tão amigo | |
Para estar no caixão comigo? | |
Quem, em meio ao funeral | |
Dirá de mim: - Nunca fez mal... | |
Quem, bêbedo, chorará em voz alta | |
De não me ter trazido nada? | |
Quem virá despetalar pétalas | |
No meu túmulo de poeta? | |
Quem jogará timidamente | |
Na terra um grão de semente? | |
Quem elevará o olhar covarde | |
Até a estrela da tarde? | |
Quem me dirá palavras mágicas | |
Capazes de empalidecer o mármore? | |
Quem, oculta em véus escuros | |
Se crucificará nos muros? | |
Quem, macerada de desgosto | |
Sorrirá: - Rei morto, rei posto. . . | |
Quantas, debruçadas sobre o báratro | |
Sentirão as dores do parto? | |
Qual a que, branca de receio | |
Tocará o botão do seio? | |
Quem, louca, se jogará de bruços | |
A soluçar tantos soluços | |
Que há de despertar receios? | |
Quantos, os maxilares contraídos | |
O sangue a pulsar nas cicatrizes | |
Dirão: - Foi um doido amigo... | |
Quem, criança, olhando a terra | |
Ao ver movimentar-se um verme | |
Observará um ar de critério? | |
Quem, em circunstância oficial | |
Há de propor meu pedestal? | |
Quais os que, vindos da montanha | |
Terão circunspecção tamanha | |
Que eu hei de rir branco de cais | |
Qual a que, o rosto sulcado de vento | |
Lançará um punhado de sal | |
Na minha cova de cimento? | |
Quem cantará canções de amigo | |
No dia do meu funeral? | |
Qual a que não estará presente | |
Por motivo circunstancial? | |
Quem cravará no seio duro | |
Uma lâmina enferrujada? | |
Quem, em seu verbo inconsútil | |
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda. | |
Qual o amigo que a sós consigo | |
Pensará: - Não há de ser nada... | |
Quem será a estranha figura | |
A um tronco de árvore encostada | |
Com um olhar frio e um ar de dúvida? | |
Quem se abraçará comigo | |
Que terá de ser arrancada? | |
Quem vai pagar o enterro e as flores | |
Se eu me morrer de amores ?" | |
Fernando Pessoa,"A montanha por achar | |
A MONTANHA por achar | |
Há de ter, quando a encontrar, | |
Um templo aberto na pedra | |
Da encosta onde nada medra. | |
O santuário que tiver, | |
Quando o encontrar, há de ser | |
Na montanha procurada | |
E na gruta ali achada. | |
A verdade, se ela existe, | |
Ver-se-á que só consiste | |
Na procura da verdade, | |
Porque a vida é só metade. | |
" | |
António Gedeão,"Dor de Alma | |
Meu pratinho de arroz doce | |
polvilhado de canela; | |
Era bom mas acabou-se | |
desde que a vida me trouxe | |
outros cuidados com ela. | |
Eu, infante, não sabia | |
as mágoas que a vida tem. | |
Ingenuamente sorria, | |
me aninhava e adormecia | |
no colo da minha mãe. | |
Soube depois que há no mundo | |
umas tantas criaturas | |
que vivem num charco imundo | |
arrancando arroz do fundo | |
de pestilentas planuras. | |
Um sol de arestas pastosas | |
cobre-os de cinza e de azebre | |
à flor das águas lodosas, | |
eclodindo em capciosas | |
intermitências de febre. | |
Já não tenho o teu engodo, | |
Ó mãe, nem desejo tê-lo. | |
Prefiro o charco e o lodo. | |
Quero o sofrimento todo, | |
Quero senti-lo, e vence-lo. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Acordar, Viver | |
Como acordar sem sofrimento? | |
Recomeçar sem horror? | |
O sono transportou-me | |
àquele reino onde não existe vida | |
e eu quedo inerte sem paixão. | |
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, | |
a fábula inconclusa, | |
suportar a semelhança das coisas ásperas | |
de amanhã com as coisas ásperas de hoje? | |
Como proteger-me das feridas | |
que rasga em mim o acontecimento, | |
qualquer acontecimento | |
que lembra a Terra e sua púrpura | |
demente? | |
E mais aquela ferida que me inflijo | |
a cada hora, algoz | |
do inocente que não sou? | |
Ninguém responde, a vida é pétrea. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Leão | |
(inspirado em William Blake) | |
Leão! Leão! Leão! | |
Rugindo como um trovão | |
Deu um pulo, e era uma vez | |
Um cabritinho montês. | |
Leão! Leão! Leão! | |
És o rei da criação! | |
Tua goela é uma fornalha | |
Teu salto, uma labareda | |
Tua garra, uma navalha | |
Cortando a presa na queda. | |
Leão longe, leão perto | |
Nas areias do deserto. | |
Leão alto, sobranceiro | |
Junto do despenhadeiro. | |
Leão na caça diurna | |
Saindo a correr da furna. | |
Leão! Leão! Leão! | |
Foi Deus que te fez ou não? | |
O salto do tigre é rápido | |
Como o raio; mas não há | |
Tigre no mundo que escape | |
Do salto que o Leão dá. | |
Não conheço quem defronte | |
O feroz rinoceronte. | |
Pois bem, se ele vê o Leão | |
Foge como um furacão. | |
Leão se esgueirando, à espera | |
Da passagem de outra fera . . . | |
Vem o tigre; como um dardo | |
Cai-lhe em cima o leopardo | |
E enquanto brigam, tranqüilo | |
O leão fica olhando aquilo. | |
Quando se cansam, o Leão | |
Mata um com cada mão. | |
Leão! Leão! Leão! | |
És o rei da criação! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Amor, pois que é palavra essencial | |
Amor – pois que é palavra essencial | |
comece esta canção e toda a envolva. | |
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, | |
reúna alma e desejo, membro e vulva. | |
Quem ousará dizer que ele é só alma? | |
Quem não sente no corpo a alma expandir-se | |
até desabrochar em puro grito | |
de orgasmo, num instante de infinito? | |
O corpo noutro corpo entrelaçado, | |
fundido, dissolvido, volta à origem | |
dos seres, que Platão viu completados: | |
é um, perfeito em dois; são dois em um. | |
Integração na cama ou já no cosmo? | |
Onde termina o quarto e chega aos astros? | |
Que força em nossos flancos nos transporta | |
a essa extrema região, etérea, eterna? | |
Ao delicioso toque do clitóris, | |
já tudo se transforma, num relâmpago. | |
Em pequenino ponto desse corpo, | |
a fonte, o fogo, o mel se concentraram. | |
Vai a penetração rompendo nuvens | |
e devassando sóis tão fulgurantes | |
que nunca a vista humana os suportara, | |
mas, varado de luz, o coito segue. | |
E prossegue e se espraia de tal sorte | |
que, além de nós, além da prórpia vida, | |
como ativa abstração que se faz carne, | |
a idéia de gozar está gozando. | |
E num sofrer de gozo entre palavras, | |
menos que isto, sons, arquejos, ais, | |
um só espasmo em nós atinge o climax: | |
é quando o amor morre de amor, divino. | |
Quantas vezes morremos um no outro, | |
no úmido subterrâneo da vagina, | |
nessa morte mais suave do que o sono: | |
a pausa dos sentidos, satisfeita. | |
Então a paz se instaura. A paz dos deuses, | |
estendidos na cama, qual estátuas | |
vestidas de suor, agradecendo | |
o que a um deus acrescenta o amor terrestre. | |
" | |
Miguel Torga,"Identidade | |
Matei a lua e o luar difuso. | |
Quero os versos de ferro e de cimento. | |
E em vez de rimas, uso | |
As consonâncias que ha no sofrimento. | |
Universal e aberto, o meu instinto acode | |
A todo o coração que se debate aflito. | |
E luta como sabe e como pode: | |
Da beleza e sentido a cada grito. | |
Mas como as inscrições nas penedias | |
Tem maior duração, | |
Gasto as horas e os dias | |
A endurecer a forma da emoção. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Debussy | |
Para cá, para lá . . . | |
Para cá, para lá . . . | |
Um novelozinho de linha . . . | |
Para cá, para lá . . . | |
Para cá, para lá . . . | |
Oscila no ar pela mão de uma criança | |
(Vem e vai . . .) | |
Que delicadamente e quase a adormecer o balança | |
— Psio . . . — | |
Para cá, para lá . . . | |
Para cá e . . . | |
— O novelozinho caiu. | |
" | |
Herberto Helder,"Do Mundo | |
Quem anel | |
a anel há-de por-me a nu os dedos | |
Quando me arrancarão a camisa, | |
Quando se verá o torso e braço a braço | |
Todo o peso | |
Apoiado á luz ? | |
Alguém me tocará para que eu estanque. | |
se tivesse escondido entre objectos exaltados | |
uma estrela e o seu combustível. | |
desfaçam devagar o que me liga | |
primeiro a cada estado do mundo, | |
depois à memória. | |
Desfaçam-me do nome, o grande coágulo de sangue, | |
umbigo que habilmente se desamarra. | |
todas as coisas pequenas que em cercam, para que servem | |
elas? Desembaracem-me: | |
o cântaro cheio da força das dedadas, | |
o copo coriscando, | |
garfos e o seu fogo, facas e o seu fogo, a carne | |
profunda na minha carne pela boca devoradora, | |
louça e o seu fogo. | |
Alguém há-de saber de tanto fôlego junto. | |
Basta a mão direita para quebrar a água | |
misteriosamente, a mão | |
para devolver-me á fonte. | |
Não é preciso que seja raiada, essa pessoa | |
Leve e potente, só | |
que finque no meio da dança um pau em brasa | |
com a floração: quero que me pare, que me abra. | |
que use a chave da minha obscuridade. | |
Antes de me terem chamado com água dentro da pedra, | |
gosto amargo, unhas | |
e dentes. | |
A seda com que teci a malha entre pedaços humanos: | |
membros criando um espaço, respiradouros, anéis rudes | |
nas cabeças, uma | |
beleza viva. | |
Alguém há-de tocar-me com um dedo, alguém | |
há-de pôr-me um selo." | |
Gonçalves de Magalhães,"Soneto à Vista dos Belos Quadros do Sr Manuel de Araújo Porto-Alegre | |
Que mágico pincel, mimo de Apolo, | |
Com muda locução, com vivas cores, | |
Faz da Pátria passar os Defensores | |
Desde o pólo do Sul do Norte ao pólo? | |
Quem tanto esmalta o Brasileiro solo? | |
Estes belos painéis, tão faladores | |
Mais encantos possuem que os Amores | |
Quando da terna mãe se erguem do colo. | |
Rafael do Brasil, eu te saúdo. | |
Tu serás entre nós das Belas Artes | |
Um novo vingador, um forte escudo. | |
Honra à Pátria não dão feroces Martes, | |
Mas Artistas quais tu! Elmano, eis tudo | |
Porque atroam do mundo as quatro partes. | |
Publicado no livro Poesias (1832). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Manuel Bandeira,"LUA NOVA | |
Meu novo quarto | |
Virado para o nascente: | |
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra. | |
Depois de dez anos de pátio | |
Volto a tomar conhecimento da aurora. | |
Volto a banhar meus olhos no mônstruo incruento das madrugadas. | |
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir: | |
Hei de aprender com ele | |
A partir de uma vez | |
- Sem medo, | |
Sem remorso, | |
Sem saudade. | |
Não pensem que estou aguardando a lua cheia | |
- Esse sol da demência | |
Vaga e noctâmbula. | |
O que eu mais quero, | |
O de que preciso | |
É de lua nova | |
" | |
José Régio,"Canção de primavera | |
Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, | |
Pois que Maio chegou, | |
Revesti-o de clâmides de cores! | |
Que eu, dar, flor, já não dou. | |
Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves, | |
Acordai desse azul, calado há tanto, | |
As infinitas naves! | |
Que eu, cantar, já não canto. | |
Eu, invernos e outonos recalcados | |
Regelaram meu ser neste arrepio... | |
Aquece tu, ó sol, jardins e prados! | |
Que eu, é de mim o frio. | |
Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, | |
Vem com tua paixão, | |
Prostrar a terra em cálido desmaio! | |
Que eu, ter Maio, já não. | |
Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto; | |
Ter sol, não tenho; e amar... | |
Mas, se não amo, | |
Como é que, Maio em flor, te chamo tanto, | |
E não por mim assim te chamo? | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Cala-te | |
Cala-te, voz que duvida | |
e me adormece | |
a dizer-me que a vida | |
nunca vale o sonho que se esquece. | |
Cala-te, voz que assevera | |
e insinua | |
que a primavera | |
a pintar-se de lua | |
nos telhados, | |
só é bela | |
quando se inventa | |
de olhos fechados | |
nas noites de chuva e de tormenta. | |
Cala-te, sedução | |
desta voz que me diz | |
que as flores são imaginação | |
sem raiz. | |
Cala-te, voz maldita | |
que me grita | |
que o sol, a luz e o vento | |
são apenas o meu pensamento | |
enlouquecido…. | |
(E sem a minha sombra | |
o chão tem lá sentido!) | |
Mas canta tu, voz desesperada | |
que me excede. | |
E ilumina o Nada | |
Com a minha sede. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"As maças | |
Da alma só sei o que sabe o corpo: | |
onde a esperança e a graça | |
aspiram ao ardor | |
da chama é a morada do homem. | |
Vê como ardem as maças | |
na frágil luz de inverno | |
uma casa devia ser | |
assim: brilhar ao crepúsculo | |
sem usura nem vileza | |
com as maças por companhia. | |
Assim: limpa, madura. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O que fizeram do Natal | |
Natal. | |
O sino longe toca fino. | |
Não tem neves, não tem gelos. | |
Natal. | |
Já nasceu o deus menino. | |
As beatas foram ver, | |
encontraram o coitadinho | |
(Natal) | |
maos o boi mais o burrinho | |
e lá em cima | |
a estrelinha alumiando | |
Natal. | |
As beatas ajoelharam | |
e adoraram o deus nuzinho | |
mas as filhas das beatas | |
e os namorados das filhas, | |
mas as filhas das beatas | |
foram dançar black-bottom | |
nos clubes sem presépio. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Não se mate | |
Carlos, sossegue, o amor | |
é isso que você está vendo: | |
hoje beija, amanhã não beija, | |
depois de amanhã é domingo | |
e segunda-feira ninguém sabe | |
o que será. | |
Inútil você resistir | |
ou mesmo suicidar-se. | |
Não se mate, oh não se mate, | |
reserve-se todo para | |
as bodas que ninguém sabe | |
quando virão, | |
se é que virão. | |
O amor, Carlos, você telúrico, | |
a noite passou em você, | |
e os recalques se sublimando, | |
lá dentro um barulho inefável, | |
rezas, | |
vitrolas, | |
santos que se persignam, | |
anúncios do melhor sabão, | |
barulho que ninguém sabe | |
de quê, praquê. | |
Entretanto você caminha | |
melancólico e vertical. | |
Você é a palmeira, você é o grito | |
que ninguém ouviu no teatro | |
e as luzes todas se apagam. | |
O amor no escuro, não, no claro, | |
é sempre triste, meu filho, Carlos, | |
mas não diga nada a ninguém, | |
ninguém sabe nem saberá. | |
" | |
Manuel Bandeira,"EPÍGRAFE | |
Sou bem-nascido. Menino, | |
Fui, como os demais, feliz. | |
Depois, veio o mau destino | |
E fez de mim o que quis. | |
Veio o mau gênio da vida, | |
Rompeu em meu coração, | |
Levou tudo de vencida, | |
Rugia e como um furacão, | |
Turbou, partiu, abateu, | |
Queimou sem razão nem dó - | |
Ah, que dor! | |
Magoado e só, | |
- Só! - meu coração ardeuu: | |
Ardeu em gritos dementes | |
Na sua paixão sombria... | |
E dessas horas ardentes | |
Ficou esta cinza fria. | |
- Esta pouca cinza fria. | |
" | |
Al Berto,"Sem Título e Bastante Breve | |
Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa | |
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e | |
com elas quero construir um templo em forma de ilha | |
ou de mãos disponíveis para o amor.... | |
na verdade, estou derrubado | |
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde, | |
não sei onde | |
procuro as aves recolhidas na tontura da noite | |
embriagado entrelaço os dedos | |
possuo os insectos duros como unhas dilacerando | |
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar... | |
dizem que ao possuir tudo isto | |
poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito | |
interrogar-se acerca da melancolia das mãos.... | |
...esta memória lamina incansável | |
um cigarro | |
outro cigarro vai certamente acalmar-me | |
....que sei eu sobre as tempestades do sangue? | |
E da água? | |
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas... | |
amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso | |
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo | |
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão" | |
Vinicius de Moraes,"A Cachorrinha | |
Mas que amor de cachorrinha! | |
Mas que amor de cachorrinha! | |
Pode haver coisa no mundo | |
Mais branca, mais bonitinha | |
Do que a tua barriguinha | |
Crivada de mamiquinha? | |
Pode haver coisa no mundo | |
Mais travessa, mais tontinha | |
Que esse amor de cachorrinha | |
Quando vem fazer festinha | |
Remexendo a traseirinha? | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Dispersão | |
Perdi-me dentro de mim | |
Porque eu era labirinto | |
E hoje, quando me sinto. | |
É com saudades de mim. | |
Passei pela minha vida | |
Um astro doido a sonhar, | |
Na ânsia de ultrapassar, | |
Nem dei pela minha vida... | |
Para mim é sempre ontem, | |
Não tenho amanhã nem hoje: | |
O tempo que aos outros foge | |
Cai sobre mim feito ontem. | |
(O Domingo de Paris | |
Lembra-me o desaparecido | |
Que sentia comovido | |
Os Domingos de Paris: | |
Porque um domingo é família, | |
É bem-estar, é singeleza, | |
E os que olham a beleza | |
Não têm bem-estar nem família). | |
Pobre moço das ânsias... | |
Tu, sim, tu eras alguém! | |
E foi por isso também | |
Que me abismastes nas ânsias. | |
A grande ave doirada | |
Bateu asas para os céus | |
Mas fechou-se saciada | |
Ao ver que ganhava os céus. | |
Como se chora um amante, | |
Assim me choro a mim mesmo: | |
Eu fui amante inconstante | |
Que se traiu a si mesmo. | |
Não sinto o espaço que encerro | |
Nem as linhas que protejo: | |
Se me olho a um espelho, erro | |
Não me acho no que projeto. | |
Regresso dentro de mim | |
Mas nada me fala, nada! | |
Tenho a alma amortalhada, | |
Sequinha dentro de mim. | |
Não perdi a minha alma, | |
Fiquei com ela, perdida. | |
Assim eu choro, da vida, | |
Eu nunca vi... mas recordo | |
A sua boca doirada | |
E o seu corpo esmaecido, | |
Em um hálito perdido | |
Que vem na tarde doirada. | |
(As minhas grandes saudades | |
São do que nunca enlacei. | |
Ai, como eu tenho saudades | |
Dos sonhos que sonhei!... ) | |
E sinto que a minha morte — | |
Minha dispersão total — | |
Existe lá longe, ao norte, | |
Numa grande capital. | |
Vejo o meu último dia | |
Pintado em rolos de fumo, | |
E todo azul-de-agonia | |
Em sombra e além me sumo. | |
Ternura feita saudade, | |
Eu beijo as minhas mãos brancas... | |
Sou amor e piedade | |
Em face dessas mãos brancas. . . | |
Tristes mãos longas e lindas | |
Que eram feitas pra se dar | |
Ninguém mas quis apertar | |
Tristes mãos longas e lindas | |
Eu tenho pena de mim, | |
Pobre menino ideal... | |
Que me faltou afinal? | |
Um elo? Um rastro?... Ai de mim! | |
Desceu-me nalma o crepúsculo; | |
Eu fui alguém que passou. | |
Serei, mas já não me sou; | |
Não vivo, durmo o crepúsculo. | |
Álcool dum sono outonal | |
Me penetrou vagamente | |
A difundir-me dormente | |
Em, uma bruma outonal. | |
Perdi a morte e a vida, | |
E, louco, não enlouqueço... | |
A hora foge vivida | |
Eu sigo-a, mas permaneço ... | |
............................................... | |
Castelos desmantelados, | |
Leões alados sem juba... | |
.............................................. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Não Passou | |
Passou? | |
Minúsculas eternidades | |
deglutidas por mínimos relógios | |
ressoam na mente cavernosa. | |
Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz. | |
A mão- a tua mão, nossas mãos- | |
rugosas, têm o antigo calor | |
de quando éramos vivos. Éramos? | |
Hoje somos mais vivos do que nunca. | |
Mentira, estarmos sós. | |
Nada, que eu sinta, passa realemente. | |
É tudo ilusão de ter passado. | |
" | |
Manuel Bandeira,"MADRIGAL | |
A luz do sol bate na lua... | |
Bate na lua, cai no mar... | |
Do mar ascende a face tua, | |
Vem reluzir em teu olhar... | |
E olhas nos olhos solitários, | |
Nos olhos que são teus... | |
É assim que eu sinto em êxtases lunários | |
A luz do sol cantar em mim... | |
" | |
Marina Colasanti,"Porta do Armário Aberta | |
Abro a porta do armário | |
como abro um diário, | |
a minha vida ali | |
dependurada | |
meu frusto cotidiano | |
sem segredos | |
intimidade exposta | |
que os botões não defendem | |
nem se veda nos bolsos, | |
espelho mais real que todo espelho | |
entregando à devassa | |
as medidas do corpo. | |
Armário | |
tabernáculo do quarto | |
que abro de manhã | |
como à janela | |
para sagrar o ritual do dia. | |
Sala de Barba Azul | |
coalhada de pingentes | |
longas saias e véus | |
emaranhados sem que sangue goteje. | |
Corpos decapitados | |
ausentes minhas mãos | |
dos murchos braços. | |
Do armário minhas roupas | |
me perseguem | |
como baú de herança ou | |
maldição. | |
Peles minhas pendentes | |
em repouso | |
silenciosas guardiãs | |
dos meus perfumes | |
tessituras de mim | |
mais delicadas | |
que a luz desbota | |
que o tempo gasta | |
que a traça rói | |
ainda assim durarão nos seus cabides | |
muito mais do que eu sobre meus ossos. | |
Nenhuma levarei. | |
Irei despida | |
deixando atrás de mim | |
a porta aberta. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Casimiro de Abreu,"Segredos | |
Eu tenho uns amores — quem é que os não tinha | |
Nos tempos antigos! — Amar não faz mal; | |
As almas que sentem paixão como a minha | |
Que digam, que falem em regra geral. | |
— A flor dos meus sonhos é moça e bonita | |
Qual flor entreaberta do dia ao raiar, | |
Mas onde ela mora, que casa ela habita, | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
Seu rosto é formoso, seu talhe elegante, | |
Seus lábios de rosa, a fala é de mel, | |
As tranças compridas, qual livre bacante, | |
O pé de criança, cintura de anel; | |
— Os olhos rasgados são cor das safiras, | |
Serenos e puros, azuis como o mar; | |
Se falam sinceros, se pregam mentiras, | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
Oh! ontem no baile com ela valsando | |
Senti as delícias dos anjos do céu! | |
Na dança ligeira qual silfo voando | |
Caiu-lhe do rosto seu cândido véu! | |
— Que noite e que baile! — Seu hálito virgem | |
Queimava-me as faces no louco valsar, | |
As falas sentidas que os olhos falavam | |
Não posso, não quero, não devo contar! | |
Depois indolente firmou-se em meu braço, | |
Fugimos das salas, do mundo talvez! | |
Inda era mais bela rendida ao cansaço, | |
Morrendo de amores em tal languidez! | |
— Que noite e que festa! e que lânguido rosto | |
Banhado ao reflexo do branco luar! | |
A neve do colo e as ondas dos seios | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
A noite é sublime! — Tem longos queixumes, | |
Mistérios profundos que eu mesmo não sei: | |
Do mar os gemidos, do prado os perfumes, | |
De amor me mataram, de amor suspirei! | |
— Agora eu vos juro... Palavra! — não minto! | |
Ouvi-a formosa também suspirar; | |
Os doces suspiros que os ecos ouviram | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
Então nesse instante nas águas do rio | |
Passava uma barca, e o bom remador | |
Cantava na flauta: — ""Nas noites d'estio | |
O céu tem estrelas, o mar tem amor!"" — | |
— E a voz maviosa do bom gondoleiro | |
Repete cantando: — ""viver é amar!"" — | |
Se os peitos respondem à voz do barqueiro... | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
Trememos de medo... a boca emudece | |
Mas sentem-se os pulos do meu coração! | |
Seu seio nevado de amor se entumece... | |
E os lábios se tocam no ardor da paixão! | |
— Depois... mas já vejo que vós, meus senhores, | |
Com fina malícia quereis me enganar. | |
Aqui faço ponto; — segredos de amores | |
Não quero, não posso, não devo contar! | |
Rio, 1857 | |
Imagem - 00300001 | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro II. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Ruy Belo,"Cadernos de Poesia - O HOMEM DOS SONHOS | |
Que nome dar ao poeta | |
esse ser dos espantos medonhos? | |
um só encontro próprio e justo: | |
o de José o homem dos sonhos | |
Eu canto os pássaros e as árvores | |
Mas uns e outros nos versos ponho-os | |
Quem é que canta sem condição? | |
É José o homem dos sonhos | |
Deus põe e o homem dispõe | |
E aquele que ao longo da vereda vem | |
homem sem pai e sem mãe | |
homem a quem a própria dor não dói | |
bíblico no nome e a comer medronhos | |
só pode ser José o homem dos sonhos | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Soneto da Perdida Esperança | |
Perdio bonde e a esperança. | |
Volto pálido para casa. | |
A rua é inútil e nenhum auto | |
passaria sobre meu corpo. | |
Vou subir a ladeira lenta | |
em que os caminhos se fundem. | |
Todos eles conduzem ao | |
princípio do drama e da flora. | |
Não sei se estou sofrendo | |
ou se é alguém que se diverte | |
por que não? na noite escassa | |
com um insolúvel flautim. | |
Entretanto há muito tempo | |
nós gritamos: sim! ao eterno." | |
Carlos Drummond de Andrade,"No corpo feminino | |
No corpo feminino, esse retiro | |
- a doce bunda - é ainda o que prefiro. | |
A ela, meu mais íntimo suspiro, | |
Pois tanto mais a apalpo quanto a miro. | |
Que tanto mais a quero, se me firo | |
Em unhas protestantes, a respiro | |
A brisa dos planetas, no seu giro | |
Lento, violento... Então, se ponho tiro | |
A mão em concha - a mão, sábio papiro, | |
Iluminando o gozo, qual lampiro. | |
Ou se, dessedentado, já me estiro, | |
Me penso, me restauro, me confiro, | |
O sentimento da morte ei que adquiro: | |
De rola, a bunda torna-se vampiro. | |
" | |
Al Berto,"hoje é dia de coisas simples | |
hoje é dia de coisas simples (Ai de mim! Que desgraça! O creme de terra não voltará a aparecer!) coisas simples como ir contigo ao restaurante ler o horóscopo e os pequenos escândalos folhear revistas pornográficas e demorarmo-nos dentro da banheira na ladeia pouco há a fazer falaremos do tempo com os olhos presos dentro das chávenas inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos e murmúrios de dedos por baixo da mesa beberemos café sorriremos à pessoas e às coisas caminharemos lado a lado os ombros tocando-se (se estivesses aqui!) em silêncio olharíamos a foz do rio é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças descalças hoje" | |
Fernando Pessoa,"Ela canta e as suas notas soltas tecem | |
ALGUNS POEMAS DE BERNARDO SOARES | |
Ela canta e as suas notas soltas tecem | |
Penumbras de sentir no (...) ar... | |
Em torno as coisas todas entristecem | |
Só para que ela lhes possa ser luar. | |
Ó alma derramando-se invisível, | |
Ó natura! requinte da expressão... | |
Rio de som em tua água | |
Via boiando em silêncio (...) e insensível | |
E debruço-se a vê-lo o inextinguível | |
Esforço de ser perfeito de imperfeição. | |
Asas de borboletas de só-espírito | |
Volteiam (...) em torno dos sons | |
Que a tua voz em espirais | |
(...) | |
15/05/1913" | |
Miguel Torga,"Guerra Civil | |
E contra mim que luto | |
Não tenho outro inimigo. | |
O que penso | |
O que sinto | |
O que digo | |
E o que faço | |
E que pede castigo | |
E desespera a lança no meu braço | |
Absurda aliança | |
De criança | |
E de adulto. | |
O que sou é um insulto | |
Ao que não sou | |
E combato esse vulto | |
Que à traição me invadiu e me ocupou | |
Infeliz com loucura e sem loucura, | |
Peco à vida outra vida, outra aventura, | |
Outro incerto destino. | |
Não me dou por vencido | |
Nem convencido | |
E agrido em mim o homem e o menino | |
" | |
Manuel Bandeira,"SEGUNDA CANÇÃO DO BECO | |
SEGUNDA CANÇÃO DO BECO | |
Teu corpo moreno | |
É da cor da praia. | |
Deve ter o cheiro | |
Da areia da praia. | |
Deve ter o cheiro | |
Que tem ao mormaço | |
A areia da praia. | |
Teu corpo moreno | |
Deve ter o gosto | |
De fruta de praia. | |
Deve ter o travo, | |
Deve ter a cica | |
Dos cajus da praia. | |
Não sei, não sei, mas | |
Uma coisa me diz | |
Que o teu corpo magro | |
Nunca foi feliz. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Amor é bicho instruído | |
Amor é bicho instruído | |
Olha: o amor pulou o muro | |
o amor subiu na árvore | |
em tempo de se estrepar. | |
Pronto, o amor se estrepou. | |
Daqui estou vendo o sangue | |
que escorre do corpo andrógino. | |
Essa ferida, meu bem | |
às vezes não sara nunca | |
às vezes sara amanhã. | |
" | |
Al Berto,"Trabalhos do Olhar | |
escrevo-te a sentir tudo istoe num instante de maior lucidez poderia ser o rioas cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografiapoderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogoe deambular trémulo com as avesou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábiospoderia imitar aquele pastorou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a sua imobilidadehabito neste país de água por enganosão-me necessárias imagens radiografias de ossosrostos desfocadosmãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhosreparanada mais possuoa não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romãreparacomo o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar" | |
Miguel Torga,"A largada | |
Foram então as ânsias e os pinhais | |
Transformados em frágeis caravelas | |
Que partiam guiadas por sinais | |
Duma agulha inquieta como elas... | |
Foram então abraços repetidos | |
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava | |
Na areia fria aos gritos e aos gemidos | |
Pela morte dos filhos que beijava. | |
Foram então as velas enfunadas | |
Por um sopro viril de reacção | |
Às palavras cansadas | |
Que se ouviam no cais dessa ilusão. | |
Foram então as horas no convés | |
Do grande sonho que mandava ser | |
Cada homem tão firme nos seus pés | |
Que a nau tremesse sem ninguém tremer. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Sugar e ser sugado pelo amor | |
Sugar e ser sugado pelo amor | |
no mesmo instante boca milvalente | |
o corpo dois em um o gozo pleno | |
que não pertence a mim nem te pertence | |
um gozo de fusão difusa transfusão | |
o lamber o chupar e ser chupado | |
no mesmo espasmo | |
é tudo boca boca boca boca | |
sessenta e nove vezes boquilíngua. | |
" | |
Pablo Neruda,"Inicial | |
O dia não é hora por hora. | |
É dor por dor, | |
o tempo não se dobra, | |
não se gasta, | |
mar, diz o mar, | |
sem trégua, | |
terra, diz a terra, | |
o homem espera. | |
E só | |
seu sino | |
está ali entre os outros | |
guardando em seu vazio | |
um silêncio implacável | |
que se repartirá | |
quando levante sua língua de metal | |
onda após onda. | |
De tantas coisas que tive, | |
andando de joelhos pelo mundo, | |
aqui, despido, | |
não tenho mais que o duro meio-dia | |
do mar, e um sino. | |
Eles me dão sua voz para sofrer | |
e sua advertência para deter-me. | |
Isto acontece para todo o mundo, | |
continua o espaço. | |
E vive o mar. | |
Existem os sinos." | |
Al Berto,"Acordar tarde | |
tocas as flores murchas que alguém te ofereceu | |
quando o rio parou de correr e a noite | |
foi tão luminosa quanto a mota que falhou | |
a curva - e o serviço postal não funcionou | |
no dia seguinte | |
procuras ávido aquilo que o mar não devorou | |
e passas a língua na cola dos selos lambidos | |
por assassinos - e a tua mão segurando a faca | |
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado | |
dos amantes ocasionais - nada a fazer | |
irás sozinho vida dentro | |
os braços estendidos como se entrasses na água | |
o corpo num arco de pedra tenso simulando | |
a casa | |
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia | |
" | |
Fernando Pessoa,"A novela inacabada, | |
A NOVELA inacabada, | |
Que o meu sonho completou, | |
Não era de rei ou fada | |
Mas era de quem não sou. | |
Para além do que dizia | |
Dizia eu quem não era... | |
A primavera floria | |
Sem que houvesse primavera. | |
Lenda do sonho que vivo, | |
Perdida por a salvar... | |
Mas quem me arrancou o livro | |
Que eu quis ter sem acabar? | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Rosa Rosae | |
Rosa | |
e todas as rimas | |
Rosa | |
e os perfumes todos | |
Rosa | |
no florindo espelho | |
Rosa | |
na brancura branca | |
Rosa | |
no carmim da hora | |
Rosa | |
no brinco e pulseira | |
Rosa | |
no deslumbramento | |
Rosa | |
no distanciamento | |
Rosa | |
no que não foi escrito | |
Rosa | |
no que deixou de ser dito | |
Rosa | |
pétala a pétala | |
despetalirosada | |
" | |
David Mourão-Ferreira,"Pele | |
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel | |
de mais que tua pele ser pele da minha pele | |
" | |
Fernando Pessoa,"Leve sonho, vais no chão | |
Leve sonho, vais no chão | |
A andares sem teres ser. | |
És como o meu coração | |
Que sente sem nada ter." | |
Vinicius de Moraes,"A Porta | |
Eu sou feita de madeira | |
Madeira, matéria morta | |
Mas não há coisa no mundo | |
Mais viva do que uma porta. | |
Eu abro devagarinho | |
Pra passar o menininho | |
Eu abro bem com cuidado | |
Pra passar o namorado | |
Eu abro bem prazenteira | |
Pra passar a cozinheira | |
Eu abro de sopetão | |
Pra passar o capitão. | |
Só não abro pra essa gente | |
Que diz (a mim bem me importa . . .) | |
Que se uma pessoa é burra | |
É burra como uma porta. | |
Eu sou muito inteligente! | |
Eu fecho a frente da casa | |
Fecho a frente do quartel | |
Fecho tudo nesse mundo | |
Só vivo aberta no céu! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A hora do cansaço | |
A hora do cansaço | |
As coisas que amamos, | |
as pessoas que amamos | |
são eternas até certo ponto. | |
Duram o infinito variável | |
no limite de nosso poder | |
de respirar a eternidade. | |
Pensá-las é pensar que não acabam nunca, | |
dar-lhes moldura de granito. | |
De outra matéria se tornam, absoluta, | |
numa outra (maior) realidade. | |
Começam a esmaecer quando nos cansamos, | |
e todos nós cansamos, por um outro itinerário, | |
de aspirar a resina do eterno. | |
Já não pretendemos que sejam imperecíveis. | |
Restituímos cada ser e coisa à condição precária, | |
rebaixamos o amor ao estado de utilidade. | |
Do sonho de eterno fica esse gosto ocre | |
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar. | |
" | |
Miguel Torga,"O regresso | |
""Lá vem a Nau Catrineta | |
Que tem muito que contar. | |
Ouvi, agora, Senhores | |
Uma história de pasmar..."" | |
A Mãe correu à varanda, | |
Bem longe de imaginar | |
Que o alarme desejado | |
Vinha dum cego a cantar: | |
""Passava mais de ano e dia | |
Que iam na volta do mar, | |
Já não tinham que comer, | |
Já não tinham que manjar..."" | |
A Mãe abriu num soluço | |
O coração a sangrar, | |
Porque a sola era tão rija | |
Que a não podiam tragar... | |
""Deitam sortes à ventura | |
Qual se havia de matar"". | |
(A Mãe tinha pão na arca | |
E não lho podia dar!) | |
""Logo foi cair a sorte..."" | |
(Que sorte tão singular!). | |
O gageiro olhava, olhava, | |
Mas só via céu e mar... | |
""Alvíssaras, Capitão..."" | |
E o vento a enrodilhar | |
A voz do homem da gávea | |
Na do ceguinho a cantar! | |
""A minha alma é só de Deus, | |
O corpo dou-o eu ao mar..."" | |
A Mãe, que nada podia, | |
Já só podia rezar... | |
""Deu um estoiro o demónio, | |
Acalmaram vento e mar."" | |
E quando o cego acabou | |
Estavam em terra a varar... | |
" | |
Nuno Júdice,"Gosto das mulheres que envelhecem | |
Gosto das | |
mulheres que envelhecem, | |
com a pressa das suas rugas, os cabelos | |
caídos pelos ombros negros do vestido, | |
o olhar que se perde na tristeza | |
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se | |
nos cantos das salas, olham para fora, | |
para o átrio que não vejo, de onde estou, | |
embora adivinhe aí a presença de | |
outras mulheres, sentadas em bancos | |
de madeira, folheando revistas | |
baratas. As mulheres que envelhecem | |
sentem que as olho, que admiro os seus gestos | |
lentos, que amo o trabalho subterrâneo | |
do tempo nos seus seios. Por isso esperam | |
que o dia corra nesta sala sem luz, | |
evitam sair para a rua, e dizem baixo, | |
por vezes, essa elegia que só os seus lábios | |
podem cantar." | |
Pablo Neruda,"Poema VI | |
Te recordo como eras no último outono. | |
Eras a boina cinza e o coração em calma. | |
Em teus olhos pelejavam as chamas do crepúsculo. | |
E as folhas caiam na água de tua alma. | |
Apegada a meus braços como uma trepadeira, | |
as folhas recolhiam tua voz lenta e em calma. | |
Figueira de estupor em que minha sede ardia. | |
Doce jacinto azul torcido sobre minha alma. | |
Sinto viajar teus olhos e é distante o outono: | |
boina cinza, voz de pássaro e coração de casa | |
fazia onde emigravam meus profundos anseios | |
e caiam meus beijos alegres como brasas. | |
Céu desde um navio. Campo desde os cerros. | |
Tua recordação é de luz, de fumaça, de tanque em calma! | |
Mais além de teus olhos ardiam os crepúsculos. | |
Folhas secas de outono giravam em tua alma. | |
(Retirado de: Vinte poemas de amor e uma canção desesperada) | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Os Pêssegos | |
Lembram adolescentes nus: | |
a doirada pele das nádegas | |
com marcas de carmim, a penugem | |
leve, mais encrespada e fulva | |
em torno do sexo distendido | |
e fácil, vulnerável aos desejos | |
de quem só o contempla e não ousa | |
aproximar dos flancos matinais | |
a crepuscular lentidão dos dedos. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O criador | |
A mão de meu irmão desenha um jardim | |
e ele surge da pedra. Há uma estrela no pátio. | |
Uma estrela de rosa e de gerânio. | |
Mas seu perfume não me encanta a mim. | |
O que respiro é a glória de meu mano. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"O Recreio | |
Na minha Alma há um balouço | |
Que está sempre a balouçar --- | |
Balouço à beira dum poço, | |
Bem difícil de montar... | |
--- E um menino de bibe | |
Sobre ele sempre a brincar... | |
Se a corda se parte um dia | |
(E já vai estando esgarçada), | |
Era uma vez a folia: | |
Morre a criança afogada... | |
--- Cá por mim não mudo a corda, | |
Seria grande estopada... | |
Se o indez morre, deixá-lo... | |
Mais vale morrer de bibe | |
Que de casaca... Deixá-lo | |
Balouçar-se enquanto vive... | |
--- Mudar a corda era fácil... | |
Tal ideia nunca tive... | |
" | |
Olavo Bilac,"Rio Abaixo | |
Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga... | |
Quase noite. Ao sabor do curso lento | |
Da água, que as margens em redor alaga, | |
Seguimos. Curva os bambuais o vento. | |
Vivo, há pouco, de púrpura, sangrento, | |
Desmaia agora o Ocaso. A noite apaga | |
A derradeira luz do firmamento... | |
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga. | |
Um silêncio tristíssimo por tudo | |
Se espalha. Mas a lua lentamente | |
Surge na fímbria do horizonte mudo: | |
E o seu reflexo pálido, embebido | |
Como um gládio de prata na corrente, | |
Rasga o seio do rio adormecido. | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). Poema integrante da série Sarças de Fogo. | |
In: BILAC, Olavo. Obra reunida. Org. e introd. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p.138. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)" | |
Pablo Neruda,"Ode ao gato | |
Os animais foram | |
imperfeitos, | |
compridos de rabo, tristes | |
de cabeça. | |
Pouco a pouco se foram | |
compondo, | |
fazendo-se paisagem, | |
adquirindo pintas, graça, vôo. | |
O gato, | |
só o gato | |
apareceu completo | |
e orgulhoso: | |
nasceu completamente terminado, | |
anda sozinho e sabe o que quer. | |
O homem quer ser peixe e pássaro, | |
a serpente quisera ter asas, | |
o cachorro é um leão desorientado, | |
o engenheiro quer ser poeta, | |
a mosca estuda para andorinha, | |
o poeta trata de imitar a mosca, | |
mas o gato | |
quer ser só gato | |
e todo gato é gato | |
do bigode ao rabo, | |
do pressentimento ao rato vivo, | |
da noite até seus olhos de ouro. | |
Não há unidade | |
como ele, | |
não tem | |
a lua nem a flor | |
tal contextura: | |
é uma só coisa | |
como o sol ou o topázio, | |
e a elástica linha em seu contorno | |
firme e sutil é como | |
a linha da proa de um navio. | |
Seus olhos amarelos | |
deixaram uma só | |
ranhura | |
para jogar as moedas da noite. | |
Oh pequeno | |
imperador sem orbe, | |
conquistador sem pátria, | |
mínimo tigre de salão, nupcial | |
sultão do céu | |
das telhas eróticas, | |
o vento do amor | |
na intempérie | |
reclamas | |
quando passas | |
e pousas | |
quatro pés delicados | |
no solo, | |
cheirando, | |
desconfiando | |
de todo o terrestre, | |
porque tudo | |
é imundo | |
para o imaculado pé do gato. | |
Oh fera independente | |
da casa, arrogante | |
vestígio da noite, | |
preguiçoso, ginástico | |
e alheio, | |
profundíssimo gato, | |
polícia secreta | |
dos quartos, | |
insígnia | |
de um | |
desaparecido veludo, | |
seguramente não há | |
enigma | |
na tua maneira, | |
talvez não sejas mistério, | |
todo o mundo sabe de ti e pertences | |
ao habitante menos misterioso, | |
talvez todos o acreditem, | |
todos se acreditem donos, | |
proprietários, tios | |
de gatos, companheiros, | |
colegas, | |
discípulos ou amigos | |
do seu gato. | |
Eu não. | |
Eu não subscrevo. | |
Eu não conheço ao gato. | |
Tudo sei, a vida e seu arquipélago, | |
o mar e a cidade incalculável, | |
a botânica, | |
o gineceu com seus extravios, | |
o pôr e o menos da matemática, | |
os funis vulcânicos do mundo, | |
a casaca irreal do crocodilo, | |
a bondade ignorada do bombeiro, | |
o atavismo azul do sacerdote, | |
mas não posso decifrar um gato. | |
Minha razão resvalou na sua indiferença, | |
o seu olho tem números de puro. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"A mulher que passa | |
Meu Deus, eu quero a mulher que passa. | |
Seu dorso frio é um campo de lírios | |
Tem sete cores nos seus cabelos | |
Sete esperanças na boca fresca! | |
Oh! Como és linda, mulher que passas | |
Que me sacias e suplicias | |
Dentro das noites, dentro dos dias! | |
Teus sentimentos são poesia | |
Teus sofrimentos, melancolia. | |
Teus pêlos são relva boa | |
Fresca e macia. | |
Teus belos braços são cisnes mansos | |
Longe das vozes da ventania. | |
Meu Deus, eu quero a mulher que passa! | |
Como te adoro, mulher que passas | |
Que vens e passas, que me sacias | |
Dentro das noites, dentro dos dias! | |
Por que me faltas, se te procuro? | |
Por que me odeias quando te juro | |
Que te perdia se me encontravas | |
E me encontravas se te perdias? | |
Por que não voltas, mulher que passas? | |
Por que não enches a minha vida? | |
Por que não voltas, mulher querida | |
Sempre perdida, nunca encontrada? | |
Por que não voltas à minha vida | |
Para o que sofro não ser desgraça? | |
Meu Deus, eu quero a mulher que passa! | |
Eu quero-a agora, sem mais demora | |
A minha amada mulher que passa! | |
No santo nome do teu martírio | |
Do teu martírio que nunca cessa | |
Meu Deus, eu quero, quero depressa | |
A minha amada mulher que passa! | |
Que fica e passa, que pacifica | |
Que é tanto pura como devassa | |
Que bóia leve como cortiça | |
E tem raízes como a fumaça. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Segundo: TORMENTA | |
SEGUNDO | |
TORMENTA | |
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? | |
Nós, Portugal, o poder ser. | |
Que inquietação do fundo nos soergue? | |
O desejar poder querer. | |
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto... | |
Mas súbito, onde o vento ruge, | |
O relâmpago, farol de Deus, um hausto | |
Brilha, e o mar scuro struge. | |
26/02/1934" | |
Tobias Barreto,"O Beija-Flor | |
Era uma moça franzina, | |
Bela visão matutina | |
Daquelas que é raro ver, | |
Corpo esbelto, colo erguido, | |
Molhando o branco vestido | |
No orvalho do amanhecer. | |
Vede-a lá: tímida, esquiva... | |
Que boca! é a flor mais viva, | |
Que agora está no jardim; | |
Mordendo a polpa dos lábios | |
Como quem suga o ressábio | |
Dos beijos de um querubim! | |
Nem viu que as auras gemeram, | |
E os ramos estremeceram | |
Quando um pouco ali se ergueu... | |
Nos alvos dentes, viçosa, | |
Parte o talo de uma rosa, | |
Que docemente colheu. | |
E a fresca rosa orvalhada, | |
Que contrasta descorada, | |
Do seu rosto a nívea tez, | |
Beijando as mãozinhas suas, | |
Parece que diz: nós duas!... | |
E a brisa emenda: nós três! ... | |
Vai nesse andar descuidoso, | |
Quando um beija-flor teimoso | |
Brincar entre os galhos vem, | |
Sente o aroma da donzela, | |
Peneira na face dela, | |
E quer-lhe os lábios também | |
Treme a virgem de surpresa, | |
Leva do braço em defesa, | |
Vai com o braço a flor da mão; | |
Nas asas d’ave mimosa | |
Quebra-se a flor melindrosa, | |
Que rola esparsa no chão. | |
Não sei o que a virgem fala, | |
Que abre o peito e mais trescala | |
Do trescalar de uma flor: | |
Voa em cima o passarinho... | |
Vai já tocando o biquinho | |
Nos beiços de rubra cor. | |
A moça, que se envergonha | |
De correr, meio risonha | |
Procura se desviar; | |
Neste empenho os seios ambos | |
Deixa ver; inconhos jambos | |
De algum celeste pomar! ... | |
Forte luta, luta incrível | |
Por um beijo! É impossível | |
Dizer tudo o que se deu. | |
Tanta coisa, que se esquece | |
Na vida! Mas me parece | |
Que o passarinho venceu! ... | |
Conheço a moça franzina | |
Que a fronte cândida inclina | |
Ao sopro de casto amor: | |
Seu rosto fica mais lindo, | |
Quando ela conta sorrindo | |
A história do beija-flor. | |
" | |
António Gedeão,"Lágrima de preta | |
Encontrei uma preta | |
que estava a chorar, | |
pedi-lhe uma lágrima | |
para a analisar. | |
Recolhi a lágrima | |
com todo o cuidado | |
num tubo de ensaio | |
bem esterilizado. | |
Olhei-a de um lado, | |
do outro e de frente: | |
tinha um ar de gota | |
muito transparente. | |
Mandei vir os ácidos, | |
as bases e os sais, | |
as drogas usadas | |
em casos que tais. | |
Ensaiei a frio, | |
experimentei ao lume, | |
de todas as vezes | |
deu-me o que é costume: | |
nem sinais de negro, | |
nem vestígios de ódio. | |
Água (quase tudo) | |
e cloreto de sódio. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"As Abelhas | |
A AAAAAAAbelha mestra | |
E aaaaaaas abelhinhas | |
Estão tooooooodas prontinhas | |
Pra iiiiiiir para a festa. | |
Num zune que zune | |
Lá vão pro jardim | |
Brincar com a cravina | |
Valsar com o jasmim. | |
Da rosa pro cravo | |
Do cravo pra rosa | |
Da rosa pro favo | |
Volta pro cravo. | |
Venham ver como dão mel | |
As abelhinhas do céu! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Valsinha | |
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar | |
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar | |
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar | |
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar | |
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar | |
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar | |
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar | |
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar | |
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou | |
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou | |
E foram tantos beijos loucos | |
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais | |
Que o mundo compreendeu | |
E o dia amanheceu | |
Em paz | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Urgentemente | |
É urgente o Amor, | |
É urgente um barco no mar. | |
É urgente destruir certas palavras | |
ódio, solidão e crueldade, | |
alguns lamentos, | |
muitas espadas. | |
É urgente inventar alegria, | |
multiplicar os beijos, as searas, | |
é urgente descobrir rosas e rios | |
e manhãs claras. | |
Cai o silêncio nos ombros, | |
e a luz impura até doer. | |
É urgente o amor, | |
É urgente permanecer. | |
" | |
Herberto Helder,"Há cidades cor de pérola onde as mulheres | |
Há cidades cor de pérola onde as mulheres | |
existem velozmente. Onde | |
às vezes param, e são morosas | |
por dentro. Há cidades absolutas, | |
trabalhadas interiormente pelo pensamento | |
das mulheres. | |
Lugares límpidos e depois nocturnos, | |
vistos ao alto como um fogo antigo, | |
ou como um fogo juvenil. | |
Vistos fixamente abaixados nas águas | |
celestes. | |
Há lugares de um esplendor virgem, | |
com mulheres puras cujas mãos | |
estremecem. Mulheres que imaginam | |
num supremo silêncio, elevando-se | |
sobre as pancadas da minha arte interior. | |
Há cidades esquecidas pelas semanas fora. | |
Emoções onde vivo sem orelhas | |
nem dedos. Onde consumo | |
uma amizade bárbara. Um amor | |
levitante. Zona | |
que se refere aos meus dons desconhecidos. | |
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos | |
pensadores. Para que algumas mulheres | |
sejam cândidas. Para que alguém | |
bata em mim no alto da noite e me diga | |
o terror de semanas desaparecidas. | |
Eu durmo no ar dessas cidades femininas | |
cujos espinhos e sangues me inspiram | |
o fundo da vida. | |
Nelas queimo o mês que me pertence. | |
o minha loucura, escada | |
sobre escada. | |
MuIheres que eu amo com um des- | |
espero .fulminante, a quem beijo os pés | |
supostos entre pensamento e movimento. | |
Cujo nome belo e sufocante digo com terror, | |
com alegria. Em que toco levemente | |
Imente a boca brutal. | |
Há mulheres que colocam cidades doces | |
e formidáveis no espaço, dentro | |
de ténues pérolas. | |
Que racham a luz de alto a baixo | |
e criam uma insondável ilusão. | |
Dentro de minha idade, desde | |
a treva, de crime em crime - espero | |
a felicidade de loucas delicadas | |
mulheres. | |
Uma cidade voltada para dentro | |
do génio, aberta como uma boca | |
em cima do som. | |
Com estrelas secas. | |
Parada. | |
Subo as mulheres aos degraus. | |
Seus pedregulhos perante Deus. | |
É a vida futura tocando o sangue | |
de um amargo delírio. | |
Olho de cima a beleza genial | |
de sua cabeça | |
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se | |
no meu pensamento quente. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Inatingível | |
O QUE SOU EU, gritei um dia para o infinito | |
E o meu grito subiu, subiu sempre | |
Até se diluir na distância. | |
Um pássaro no alto planou vôo | |
E mergulhou no espaço. | |
Eu segui porque tinha que seguir | |
Com as mãos na boca, em concha | |
Gritando para o infinito a minha dúvida. | |
Mas a noite espiava a minha dúvida | |
E eu me deitei à beira do caminho | |
Vendo o vulto dos outros que passavam | |
Na esperança da aurora. | |
Eu continuo à beira do caminho | |
Vendo a luz do infinito | |
Que responde ao peregrino a imensa dúvida. | |
Eu estou moribundo à beira do caminho. | |
O dia já passou milhões de vezes | |
E se aproxima a noite do desfecho. | |
Morrerei gritando a minha ânsia | |
Clamando a crueldade do infinito | |
E os pássaros cantarão quando o dia chegar | |
E eu já hei de estar morto à beira do caminho." | |
Marina Colasanti,"Ainda Te Levarei | |
Ainda te levarei | |
Amor | |
Para comer nozes frescas | |
Na montanha | |
E pendurar cerejas nas orelhas | |
Como se fossem flores | |
Ou rubis. | |
As nozes | |
Meu amor | |
Mancham os dedos | |
E são verdes e exatas | |
Como ovos | |
Mas as cerejas | |
Ah! As cerejas | |
São quando a cerejeira sua | |
Seu manso sangue. | |
ainda te levarei àquela casa | |
onde floriam lilases | |
e serpentes tão claras quanto a água | |
deslizavam ao pé das macieiras. | |
te mostrarei três lagos | |
no horizonte | |
três queijos maturando | |
numa adega | |
três lesmas | |
escondidas sob um vaso. | |
estará tudo lá | |
à nossa espera | |
morangueiras quebradas | |
lagartixas. | |
Só não estará meu medo | |
de menina | |
aquele mais escuro que os ciprestes | |
ecos no mato passos sobre a ponte | |
garras na saia vento nos cabelos | |
e o latejar das veias repetindo | |
estou sozinha | |
e ninguém me salva | |
" | |
Olavo Bilac,"Delírio | |
Nua, mas para o amor não cabe o pejo | |
Na minha a sua boca eu comprimia. | |
E, em frêmitos carnais, ela dizia: | |
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo! | |
Na inconsciência bruta do meu desejo | |
Fremente, a minha boca obedecia, | |
E os seus seios, tão rígidos mordia, | |
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo. | |
Em suspiros de gozos infinitos | |
Disse-me ela, ainda quase em grito: | |
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi. | |
No seu ventre pousei a minha boca, | |
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca, | |
Moralistas, perdoai! Obedeci.... | |
" | |
Manuel Bandeira,"Andorinha | |
Andorinha lá fora está dizendo: | |
— ""Passei o dia à toa, à toa!"" | |
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! | |
Passei a vida à toa, à toa . . . | |
" | |
Manuel Bandeira,"O IMPOSSÍVEL CARINHO | |
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo | |
Quero contar-te apenas a minha ternura | |
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás | |
Eu te pudesse repor | |
- Eu soubesse repor - | |
No coração despedaçado | |
As mais puras alegrias de tua infância! | |
" | |
Al Berto,"Ofício de Amar | |
Já não necessito de ti Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio De outras galáxias, e o remorso..... .....um dia pressenti a música estelar das pedras abandonei-me ao silencio..... é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração não, não preciso mais de mim possuo a doença dos espaços incomensuráveis e os secretos poços dos nómadas ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto deixei de estar disponível, perdoa-me se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo." | |
António Gedeão,"Arma secreta | |
Tenho uma arma secreta | |
ao serviço das nações. | |
Não tem carga nem espoleta | |
mas dipara em linha recta | |
mais longe que os foguetões. | |
Não é Júpiter, nem Thor, | |
nem Snark ou outros que tais. | |
É coisa muito melhor | |
que todo o vasto teor | |
dos Cabos Canaverais. | |
A potência destinada | |
às rotações da turbina | |
não vem da nafta queimada, | |
nem é de água oxigenada | |
nem de ergóis de furalina. | |
Erecta, na noite erguida, | |
em alerta permanente, | |
espera o sinal da partida. | |
Podia chamar-se VIDA. | |
Chama-se AMOR, simplesmente. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O Enterrado Vivo | |
É sempre no passado aquele orgasmo, | |
É sempre no presente aquele duplo, | |
É sempre no futuro aquele pânico. | |
É sempre no meu peito aquela garra, | |
É sempre no meu tédio aquele aceno. | |
É sempre no meu sono aquela guerra. | |
É sempre no meu trato o amplo distrato. | |
Sempre na minha firma a antiga fúria. | |
Sempre no mesmo engano outro retrato. | |
É sempre nos meus pulos o limite. | |
É sempre no meu lábio a estampilha. | |
É sempre no meu não aquele trauma. | |
Sempre no meu amor a noite rompe. | |
Sempre dentro de mim o inimigo | |
E sempre no meu sempre a mesma ausência. | |
" | |
Al Berto,"Os Amigos | |
No regresso encontrei aqueles que haviam estendido o sedento corpo sobre infindáveis areias tinham os gestos lentos das feras amansadas e o mar iluminava-lhes as máscaras esculpidas pelo dedo errante da noite prendiam sóis nos cabelos entrançados lentamente moldavam o rosto lívido como um osso mas estavam vivos quando lhes toquei depois a solidão transformou-os de novo em dor e nenhum quis pernoitar na respiração do lume ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar a flor que murcha no estremecer da luz levei-os comigo até onde o perfume insensato de um poema os transmudou em remota e resignada ausência (in 'Sete Poemas do Regresso de Lázaro' )" | |
Cecília Meireles,"A Pombinha da Mata | |
Três meninos na mata ouviram | |
uma pombinha gemer. | |
""Eu acho que ela está com fome"", | |
disse o primeiro, | |
""e não tem nada para comer."" | |
Três meninos na mata ouviram | |
uma pombinha carpir. | |
""Eu acho que ela ficou presa"", | |
disse o segundo, | |
""e não sabe como fugir."" | |
Três meninos na mata ouviram | |
uma pombinha gemer. | |
""Eu acho que ela está com saudade"", | |
disse o terceiro, | |
""e com certeza vai morrer."" | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poesia | |
Gastei uma hora pensando em um verso | |
que a pena não quer escrever. | |
No entanto ele está cá dentro | |
inquieto, vivo. | |
Ele está cá dentro | |
e não quer sair. | |
Mas a poesia deste momento | |
inunda minha vida inteira. | |
" | |
Al Berto,"Noite de lisboa com auto-retrato e sombra de ian curtis | |
filamentos de gelatinoso néon | |
invadem a catedral em celulóide do filme nocturno: | |
arquitectura de asas abóbadas de vento | |
pássaros de lixo | |
som | |
pálpebras de lodo sobre a boca do homem | |
que rasteja de engate em engate pelas avenidas da memória | |
e quando encontra a porta de um bar | |
mergulha no inferno | |
bebe furiosamente | |
o peito encostado ao zinco sujo | |
duma geração de subúrbio presentes | |
aqui os jovens, com a canga nos ombros | |
e o mundo poderia desabar dentro de 5 minutos | |
o copo estilhaça os vidros esfregados | |
nos ombros | |
no peito onde uma veia rebenta | |
para mostrar o radioso canto | |
depois dança contorce-se embriagado | |
sobre o rosto suado | |
com a ponta dos dedos espalha sangue e cuspo | |
construindo a derradeira máscara | |
cai para dentro do seu próprio labirinto | |
como se a verticalidade do corpo fosse um veneno | |
domina-o um estertor | |
uma corda invisível ata-lhe a voz | |
não se moverá mais | |
apesar de nunca ter avistado os órgãos profundos do corpo | |
sabe que também eles se calaram para sempre | |
a noite é imensa e já não tem ruídos | |
a morte vem dos pés sobe à cabeça | |
alastra ferozmente | |
mas a sua inquietante brancura só é perceptível | |
na súbita erecção do enforcado" | |
Nuno Júdice,"Ecloga | |
Sonhei contigo embora nenhum sonho possa ter habitantes, tu a quem chamo amor, cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção a esta palavra. É verdade o sonho poderá ter feito com que, nesta rarefacção de ambos, a tua presença se impusesse - como se cada gesto do poema te restituísse um corpo que sinto ao dizer o teu nome, confundindo os teus lábios com o rebordo desta chávena de café já frio. Então, bebo-o de um trago o mesmo se pode fazer ao amor, quando entre mim e ti se instalou todo este espaço - terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo que o inverno rouba à transparência da fontes. É isto, porém, que faz com que a solidão não seja mais do que um lugar comum saber que existes, aí, e estar contigo mesmo que só o silêncio me responda quando, uma vez mais te chamo." | |
Vinicius de Moraes,"Soneto de agosto | |
Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados | |
Amamos, vagamente surpreendidos | |
Pelo ardor com que estávamos unidos | |
Nós que andávamos sempre separados. | |
Espantei-me, confesso-te, dos brados | |
Com que enchi teus patéticos ouvidos | |
E achei rude o calor dos teus gemidos | |
Eu que sempre os julgara desolados. | |
Só assim arrancara a linha inútil | |
Da tua eterna túnica inconsútil... | |
E para a glória do teu ser mais franco | |
Quisera que te vissem como eu via | |
Depois, à luz da lâmpada macia | |
O púbis negro sobre o corpo branco. | |
" | |
Luís de Camões,"Tenho-me Persuadido | |
Mote | |
De | |
que me serve fugir | |
De morte, dor e perigo, | |
Se me eu levo comigo? | |
Tenho-me | |
persuadido, | |
Por razão conveniente, | |
Que não posso ser contente, | |
Pois que pude ser nascido. | |
Anda sempre tão unido | |
O meu tormento comigo, | |
Que eu mesmo sou meu perigo. | |
E, | |
se de mi me livrasse, | |
Nenhum gosto me seria. | |
Quem, não sendo eu, não teria | |
Mal que esse bem me tirasse? | |
Força é logo que assim passe: | |
Ou com desgosto comigo, | |
Ou sem gosto e sem perigo." | |
Alexandre O'Neill,"Flor em livro dormida | |
(J.C.de Melo Neto) | |
Fechado,espalmado num missal é que eu me vejo, | |
como peça de herbário dum comércio amoroso | |
que há um século se travou entre Dom Brotoejo | |
e Dona Amélia Joana Cisneiros Monterroso. | |
Antepassados meus?Qual quê!Antepassados nossos, | |
que ao santo sacrifício levavam floretas, | |
trocavam os missais(Deus meu!,hoje são ossos...) | |
olhos nos olhos(...ossos nos ossos das comuns valetas?) | |
Mais que a letra,é o espírito que no livro procuro, | |
mesmo que seja só o levante da carne | |
duns pobres queridos que transformavam tudo | |
-missa,missal,flor-em mensagem e secreto alarde! | |
Consumidores de livros,se quiserdes salvar | |
vossas almas-lombadas de bárbaros prosaicos, | |
tereis que ,furtivos,procurar,folhear | |
uns quantos alfarrábios e,neles,encontrar | |
o herbário-mensagem dos amantes heróicos! | |
in:Dezanove Poemas(1983) | |
" | |
Ruy Belo,"E tudo era possível | |
Na minha juventude antes de ter saído | |
da casa de meus pais disposto a viajar | |
eu conhecia já o rebentar do mar | |
das páginas dos livros que já tinha lido | |
Chegava o mês de maio era tudo florido | |
o rolo das manhãs punha-se a circular | |
e era só ouvir o sonhador falar | |
da vida como se ela houvesse acontecido | |
E tudo se passava numa outra vida | |
e havia para as coisas sempre uma saída | |
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer | |
Só sei que tinha o poder duma criança | |
entre as coisas e mim havia vizinhança | |
e tudo era possível era só querer" | |
Florbela Espanca,"Saudades | |
Saudades! Sim... talvez... e porque não?... | |
Se o nosso sonho foi tão alto e forte | |
Que bem pensara vê-lo até à morte | |
Deslumbrar-me de luz o coração! | |
Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão! | |
Que tudo isso, Amor, nos não importe. | |
Se ele deixou beleza que conforte | |
Deve-nos ser sagrado como pão! | |
Quantas vezes, Amor, já te esqueci, | |
Para mais doidamente me lembrar, | |
Mais doidamente me lembrar de ti! | |
E quem dera que fosse sempre assim: | |
Quanto menos quisesse recordar | |
Mais a saudade andasse presa a mim! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Canto Esponjoso | |
Bela | |
esta manhã sem carência de mito, | |
E mel sorvido sem blasfémia. | |
Bela | |
esta manhã ou outra possível, | |
esta vida ou outra invenção, | |
sem, na sombra, fantasmas. | |
Umidade de areia adere ao pé. | |
Engulo o mar, que me engole. | |
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz | |
azul completa | |
sobre formas constituídas. | |
Bela | |
a passagem do corpo, sua fusão | |
no corpo geral do mundo. | |
Vontade de cantar. Mas tão absoluta | |
que me calo, repleto. | |
" | |
Cecília Meireles,"Interlúdio | |
As palavras estão muito ditas | |
e o mundo muito pensado. | |
Fico ao teu lado. | |
Não me digas que há futuro | |
nem passado. | |
Deixa o presente — claro muro | |
sem coisas escritas. | |
Deixa o presente. Não fales, | |
Não me expliques o presente, | |
pois é tudo demasiado. | |
Em águas de eternamente, | |
o cometa dos meus males | |
afunda, desarvorado. | |
Fico ao teu lado. | |
" | |
Gregório de Matos,"Epílogos | |
Que falta nesta cidade?................Verdade | |
Que mais por sua desonra?...........Honra | |
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha. | |
O demo a viver se exponha, | |
Por mais que a fama a exalta, | |
numa cidade, onde falta | |
Verdade, Honra, Vergonha. | |
Quem a pôs neste socrócio?..........Negócio | |
Quem causa tal perdição?.............Ambição | |
E o maior desta loucura?...............Usura. | |
Notável desventura | |
de um povo néscio, e sandeu, | |
que não sabe, que o perdeu | |
Negócio, Ambição, Usura. | |
Quais são os seus doces objetos?....Pretos | |
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços | |
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos. | |
Dou ao demo os insensatos, | |
dou ao demo a gente asnal, | |
que estima por cabedal | |
Pretos, Mestiços, Mulatos. | |
Quem faz os círios mesquinhos?...Meirinhos | |
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas | |
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos. | |
Os círios lá vêm aos centos, | |
e a terra fica esfaimando, | |
porque os vão atravessando | |
Meirinhos, Guardas, Sargentos. | |
E que justiça a resguarda?.............Bastarda | |
É grátis distribuída?......................Vendida | |
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta. | |
Valha-nos Deus, o que custa, | |
o que El-Rei nos dá de graça, | |
que anda a justiça na praça | |
Bastarda, Vendida, Injusta. | |
Que vai pela clerezia?..................Simonia | |
E pelos membros da Igreja?..........Inveja | |
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha. | |
Sazonada caramunha! | |
enfim que na Santa Sé | |
o que se pratica, é | |
Simonia, Inveja, Unha. | |
E nos frades há manqueiras?.........Freiras | |
Em que ocupam os serões?............Sermões | |
Não se ocupam em disputas?.........Putas. | |
Com palavras dissolutas | |
me concluís na verdade, | |
que as lidas todas de um Frade | |
são Freiras, Sermões, e Putas. | |
O açúcar já se acabou?..................Baixou | |
E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu | |
Logo já convalesceu?.....................Morreu. | |
À Bahia aconteceu | |
o que a um doente acontece, | |
cai na cama, o mal lhe cresce, | |
Baixou, Subiu, e Morreu. | |
A Câmara não acode?...................Não pode | |
Pois não tem todo o poder?...........Não quer | |
É que o governo a convence?........Não vence. | |
Que haverá que tal pense, | |
que uma Câmara tão nobre | |
por ver-se mísera, e pobre | |
Não pode, não quer, não vence. | |
" | |
Luís de Camões,"Apartaram-se os meus Olhos | |
Mote | |
Apartaram-se | |
os meus olhos | |
De mim tão longe. | |
Falsos amores, | |
Falsos, maus, enganadores! | |
Tratam-me | |
com cautela | |
Por me enganar mais asinha; | |
Dei-lhe posse da alma minha, | |
Foram-me fugir com ela. | |
Não há vê-los, nem há vê-la, | |
De mim tão longe. | |
Falsos amores, | |
Falsos, maus, enganadores! | |
Entreguei-lhe a liberdade | |
E, enfim, da vida o melhor. | |
Foram-se e do desamor | |
Fizeram necessidade. | |
Quem teve a sua vontade | |
De mim tão longe? | |
Falsos amores, | |
E tão cruéis matadores! | |
Não se pôs terra nem mar | |
Entre nós, que foram em vão, | |
Pôs-se vossa condição | |
Que tão doce é de passar. | |
Só ela vos quis levar | |
De mim tão longe! | |
Falsos amores | |
– E oxalá que enganadores!" | |
Cruz e Sousa,"IRONIA DE LÁGRIMAS | |
Últimos Sonetos | |
Junto da morte que floresce a Vida! | |
Andamos rindo junto à sepultura. | |
A boca aberta, escancarada, escura | |
da cova é como flor apodrecida. | |
A Morte lembra a estranha Margarida | |
do nosso corpo, Fausto sem ventura... | |
ela anda em torno a toda a criatura | |
numa dança macabra indefinida. | |
Vem revestida em suas negras sedas | |
e a marteladas lúgubres e tredas | |
das Ilusões o eterno esquife prega. | |
E adeus caminhos vãos, mundos risonhos! | |
Lá vem a loba que devora os sonhos, | |
faminta, absconsa, imponderada, cega! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Soneto da devoção | |
Essa mulher que se arremessa, fria | |
E lúbrica aos meus braços, e nos seios | |
Me arrebata e me beija e balbucia | |
Versos, votos de amor e nomes feios. | |
Essa mulher, flor de melancolia | |
Que se ri dos meus pálidos receios | |
A única entre todas a quem dei | |
Os carinhos que nunca a outra daria. | |
Essa mulher que a cada amor proclama | |
A miséria e a grandeza de quem ama | |
E guarda a marca dos meus dentes nela. | |
Essa mulher é um mundo! — uma cadela | |
Talvez... — mas na moldura de uma cama | |
Nunca mulher nenhuma foi tão bela! | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"Napoleão em Waterloo | |
Tout na manqué que quand tout avait | |
réussi. | |
Napoleão em S. Helena (memorial). | |
Eis aqui o lugar onde eclipsou-se | |
O Meteoro fatal às régias frontes! | |
E nessa hora em que a glória se obumbrava, | |
Além o Sol em trevas se envolvia! | |
Rubro estava o horizonte, e a terra rubra! | |
Dous astros ao ocaso caminhavam; | |
Tocado ao seu zenite haviam ambos; | |
Ambos iguais no brilho; ambos na queda | |
Tão grandes como em horas de triunfo! | |
Waterloo! ... Waterloo! ... Lição sublime | |
Este nome revela à Humanidade! | |
Um Oceano de pó, de fogo, e fumo | |
Aqui varreu o exército invencível, | |
Como a explosão outrora do Vesúvio | |
Até seus tetos inundou Pompéia. | |
O pastor que apascenta seu rebanho; | |
O corvo que sangüíneo pasto busca, | |
Sobre o leão de granito esvoaçando; | |
O eco da floresta, e o peregrino | |
Que indagador visita estes lugares: | |
Waterloo! ... Waterloo! ... dizendo, passam. | |
Aqui morreram de Marengo os bravos! | |
Entretanto esse Herói de mil batalhas, | |
Que o destino dos Reis nas mãos continha; | |
Esse Herói, que coa ponta de seu gládio | |
No mapa das Nações traçava as raias, | |
Entre seus Marechais, ordens ditava! | |
O hálito inflamado de seu peito | |
Sufocava as falanges inimigas, | |
E a coragem nas suas acendia. | |
Sim, aqui stava o Gênio das vitórias, | |
Medindo o campo com seus olhos de águia! | |
O infernal retintim do embate de armas, | |
Os trovões dos canhões que ribombavam, | |
O sibilo das balas que gemiam. | |
O horror, a confusão, gritos, suspiros, | |
Eram como uma orquestra a seus ouvidos! | |
Nada o turbava! — Abóbadas de balas, | |
Pelo inimigo aos centos disparadas, | |
A seus pés se curvavam respeitosas, | |
Quais submissos leões; e nem ousando | |
Tocá-lo, ao seu ginete os pés lambiam. | |
Oh! por que não venceu? — Fácil lhe fora! | |
Foi destino, ou traição? — Águia sublime | |
Que devassava o céu com vôo altivo | |
Desde as margens do Sena até ao Nilo! | |
Assombrando as Nações coas largas asas, | |
Por que se nivelou aqui cos homens? | |
Oh! por que não venceu? — O Anjo da glória | |
O hino da vitória ouviu três vezes; | |
E três vezes bradou: — É cedo ainda! | |
A espada lhe gemia na bainha, | |
E inquieto relinchava o audaz ginete, | |
Que soía escutar o horror da guerra, | |
E o fumo respirar de mil bombardas. | |
Na pugna os esquadrões se encarniçavam; | |
Roncavam pelos ares os pelouros; | |
Mil vermelhos fuzis se emaranhavam; | |
Encruzadas espadas, e as baionetas, | |
E as lanças faiscavam retinindo, | |
Ele só impassível como a rocha, | |
Ou de ferro fundido estátua eqüestre, | |
Que invisível poder mágico anima, | |
Via seus batalhões cair feridos, | |
Como muros de bronze, por cem raios; | |
E no céu seu destino decifrava. | |
Pela última vez coa espada em punho, | |
Rutilante na pugna se arremessa; | |
Seu braço é tempestade, a espada é raio!... | |
Mas invencível mão lhe toca o peito! | |
É a mão do Senhor! barreira ingente; | |
Basta, guerreiro, Tua glória é minha; | |
Tua força em mim stá. Tens completado | |
Tua augusta missão. — És homem; — pára. | |
Eram poucos, é certo; mas que importa? | |
Que importa que Grouchy, surdo às trombetas, | |
Surdo aos trovões da guerra que bradavam: | |
Grouchy, Grouchy, a nós, eia, ligeiro; | |
O teu Imperador aqui te aguarda. | |
Ah! não deixes teus bravos companheiros | |
Contra a enchente lutar, que mal vencida | |
Uma após outra em turbilhões se eleva, | |
Como vagas do Oceano encapelado, | |
Que furibundas se alçam, lutam, batem | |
Contra o penedo, e como em pó recuam, | |
E de novo no pleito se arremessam. | |
Eram poucos, é certo; e contra os poucos | |
Armadas as Nações aqui pugnavam! | |
Mas esses poucos vencedores foram | |
Em Iena, em Montmirail, em Austerlitz. | |
Ante eles o Tabor, e os Alpes curvos | |
Viram passar as águias vencedoras! | |
E o Reno, e o Manzanar, e o Adige, e o Eufrates | |
Embalde à sua marcha se opuseram. | |
Eram os poucos que jamais vencidos | |
Os dias seus contavam por batalhas, | |
E de cãs se cobriram nos combates; | |
O sol do Egito ardente assoberbaram, | |
A peste em jafa, a sede nos desertos, | |
A fome, e os gelos dos Moscóvios campos; | |
Poucos que se não rendem; — mas que morrem! | |
Oh! que para vencer bastantes eram! | |
A terra em vão contra eles pleiteara, | |
Se Deus, que os via, não dissesse: Basta. | |
Dia fatal, de opróbrio aos vencedores! | |
Vergonha eterna à geração que insulta | |
O Leão que magnânimo se entrega. | |
Ei-lo sentado em cima do rochedo, | |
Ouvindo o eco fúnebre das ondas, | |
Que murmuram seu cântico de morte: | |
Braços cruzados sobre o largo peito, | |
Qual náufrago escapado da tormenta, | |
Que as vagas sobre o escolho rejeitaram; | |
Ou qual marmórea estátua sobre um túmulo. | |
Que grande idéia ocupa, e turbilhona | |
Naquela alma tão grande como o mundo? | |
Ele vê esses Reis, que levantara | |
Da linha de seus bravos, o traírem. | |
Ao longe mil pigmeus rivais divisa, | |
Que mutilam sua obra gigantesca; | |
Como do Macedônio outrora o Império | |
Entre si repartiram vis escravos. | |
Então um riso de ira, e de despeito | |
Lhe salpica o semblante de piedade. | |
O grito ainda inocente de seu filho | |
Soa em seu coração, e de seus olhos | |
A lágrima primeira se desliza. | |
E de tantas coroas que ajuntara | |
Para dotar seu filho, só lhe resta | |
Esse Nome, que o mundo inteiro sabe! | |
Ah! tudo ele perdeu! a esposa, o filho, | |
A pátria, o mundo, e seus fiéis soldados. | |
Mas firme era sua alma como o mármor, | |
Onde o raio batia, e recuava! | |
Jamais, jamais mortal subiu tão alto! | |
Ele foi o primeiro sobre a terra. | |
Só, ele brilha sobranceiro a tudo, | |
Como sobre a coluna de Vendôme | |
Sua estátua de bronze ao céu se eleva. | |
Acima dele Deus, — Deus tão-somente! | |
Da Liberdade foi o mensageiro. | |
Sua espada, cometa dos tiranos, | |
Foi o sol, que guiou a Humanidade. | |
Nós um bem lhe devemos, que gozamos; | |
E a geração futura agradecida: | |
NAPOLEÃO, dirá, cheia de assombro. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"JOSÉ | |
E agora, José? | |
A festa acabou, | |
a luz apagou, | |
o povo sumiu, | |
a noite esfriou, | |
e agora, José? | |
e agora, Você? | |
Você que é sem nome, | |
que zomba dos outros, | |
Você que faz versos, | |
que ama, protesta? | |
e agora, José? | |
Está sem mulher, | |
está sem discurso, | |
está sem carinho, | |
já não pode beber, | |
já não pode fumar, | |
cuspir já não pode, | |
a noite esfriou, | |
o dia não veio, | |
o bonde não veio, | |
o riso não veio, | |
não veio a utopia | |
e tudo acabou | |
e tudo fugiu | |
e tudo mofou, | |
e agora, José? | |
E agora, José? | |
sua doce palavra, | |
seu instante de febre, | |
sua gula e jejum, | |
sua biblioteca, | |
sua lavra de ouro, | |
seu terno de vidro, | |
sua incoerência, | |
seu ódio, - e agora? | |
Com a chave na mão | |
quer abrir a porta, | |
não existe porta; | |
quer morrer no mar, | |
mas o mar secou; | |
quer ir para Minas, | |
Minas não há mais. | |
José, e agora? | |
Se você gritasse, | |
se você gemesse, | |
se você tocasse, | |
a valsa vienense, | |
se você dormisse, | |
se você cansasse, | |
se você morresse... | |
Mas você não morre, | |
você é duro, José! | |
Sozinho no escuro | |
qual bicho-do-mato, | |
sem teogonia, | |
sem parede nua | |
para se encostar, | |
sem cavalo preto | |
que fuja do galope, | |
você marcha, José! | |
José, para onde? | |
" | |
Manoel de Barros,"I Matéria da Poesia | |
1. | |
Todas as coisas cujos valores podem ser | |
disputados no cuspe à distância | |
servem para poesia | |
O homem que possui um pente | |
e uma árvore | |
serve para poesia | |
(...) | |
O que é bom para o lixo é bom para a poesia | |
Importante sobremaneira é a palavra repositório; | |
a palavra repositório eu conheço bem: | |
tem muitas repercussões | |
como um algibe entupido de silêncio | |
sabe a destroços | |
As coisas jogadas fora | |
têm grande importância | |
— como um homem jogado fora | |
Aliás é também objeto de poesia | |
saber qual o período médio | |
que um homem jogado fora | |
pode permanecer na terra sem nascerem | |
em sua boca as raízes da escória | |
As coisas sem importância são bens de poesia | |
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega | |
ao poema, e as andorinhas de junho. | |
2. | |
Muito coisa se poderia fazer em favor da poesia: | |
a — Esfregar pedras na paisagem. | |
b — Perder a inteligência das coisas para vê-las. | |
(Colhida em Rimbaud) | |
c — Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se. | |
d — Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em | |
Carlitos. | |
e — Perguntar distraído: — O que há de você na | |
água? | |
f — Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas | |
de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as | |
crianças e as putas do jardim o entendiam. | |
g — Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, | |
terens de rua e de música, cisco de olho, moscas | |
de pensão... | |
h — Aprender a capinar com enxada cega. | |
i — Nos dias de lazer, compor um muro podre para | |
caramujos | |
j — Deixar os substantivos passarem anos no esterco, | |
deitados de barriga, até que eles possam carrear | |
para o poema um gosto de chão - como cabelos | |
desfeitos no chão — ou como o bule de Braque | |
— áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro | |
— um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de | |
folhas. | |
l — Jogar pedrinhas nim moscas... | |
(...) | |
Imagem - 00780001 | |
Publicado no livro Matéria de Poesia (1974). | |
In: BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Introd. Berta Waldman. Il. Poty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 199" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A Bomba | |
A bomba | |
é uma flor de pânico apavorando os floricultores | |
A bomba | |
é o produto quintessente de um laboratório falido | |
A bomba | |
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles | |
A bomba | |
é grotesca de tão metuenda e coça a perna | |
A bomba | |
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem | |
A bomba | |
não tem preço não tem lugar não tem domicílio | |
A bomba | |
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece | |
A bomba | |
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está | |
A bomba | |
mente e sorri sem dente | |
A bomba | |
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados | |
A bomba | |
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada | |
A bomba | |
tem horas que sente falta de outra para cruzar | |
A bomba | |
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação | |
A bomba | |
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés | |
A bomba | |
faz week-end na Semana Santa | |
A bomba | |
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia | |
A bomba | |
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos | |
interplanetários | |
A bomba | |
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, | |
de verborréia | |
A bomba | |
não é séria, é conspicuamente tediosa | |
A bomba | |
envenena as crianças antes que comece a nascer | |
A bomba | |
continnua a envenená-las no curso da vida | |
A bomba | |
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais | |
A bomba | |
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba | |
A bomba | |
é um cisco no olho da vida, e não sai | |
A bomba | |
é uma inflamação no ventre da primavera | |
A bomba | |
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, | |
cobalto e ferro além da comparsaria | |
A bomba | |
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc. | |
A bomba | |
não admite que ninguém acorde sem motivo grave | |
A bomba | |
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos | |
A bomba | |
mata só de pensarem que vem aí para matar | |
A bomba | |
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe | |
A bomba | |
saboriea a morte com marshmallow | |
A bomba | |
arrota impostura e prosopéia política | |
A bomba | |
cria leopardos no quintal, eventualmente no living | |
A bomba | |
é podre | |
A bomba | |
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado | |
A bomba | |
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo | |
A bomba | |
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade | |
A bomba | |
tem um clube fechadíssimo | |
A bomba | |
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel | |
A bomba | |
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris | |
A bomba | |
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos | |
de paz | |
A bomba | |
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas | |
A bomba | |
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger | |
velhos e criancinhas | |
A bomba | |
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer | |
A bomba | |
é câncer | |
A bomba | |
vai à Lua, assovia e volta | |
A bomba | |
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação | |
em cadeia | |
A bomba | |
está abusando da glória de ser bomba | |
A bomba | |
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba | |
o instante inefável | |
A bomba | |
fede | |
A bomba | |
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina | |
A bomba | |
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve | |
A bomba | |
não destruirá a vida | |
O homem | |
(tenho esperança) liquidará a bomba. | |
" | |
Castro Alves,"O Adeus de Teresa | |
A vez primeira que eu fitei Teresa, | |
Como as plantas que arrasta a correnteza, | |
A valsa nos levou nos giros seus | |
E amamos juntos E depois na sala | |
""Adeus"" eu disse-lhe a tremer coa fala | |
E ela, corando, murmurou-me: ""adeus."" | |
Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . . | |
E da alcova saía um cavaleiro | |
Inda beijando uma mulher sem véus | |
Era eu Era a pálida Teresa! | |
""Adeus"" lhe disse conservando-a presa | |
E ela entre beijos murmurou-me: ""adeus!"" | |
Passaram temposseclos de delírio | |
Prazeres divinaisgozos do Empíreo | |
... Mas um dia volviaos lares meus. | |
Partindo eu disse - ""Voltarei! descansa!. . . "" | |
Ela, chorando mais que uma criança, | |
Ela em soluços murmurou-me: ""adeus!"" | |
Quando voltei era o palácio em festa! | |
E a voz dEla e de um homem lá na orquesta | |
Preenchiam de amor o azul dos céus. | |
Entrei! Ela me olhou branca surpresa! | |
Foi a última vez que eu vi Teresa! | |
E ela arquejando murmurou-me: ""adeus!"" | |
" | |
Casimiro de Abreu,"Canção do Exílio | |
Se eu tenho de morrer na flor dos anos | |
Meu Deus! não seja já; | |
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, | |
Cantar o sabiá! | |
Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro | |
Respirando este ar; | |
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo | |
Os gozos do meu lar! | |
O país estrangeiro mais belezas | |
Do que a pátria não tem; | |
E este mundo não vale um só dos beijos | |
Tão doces duma mãe! | |
Dá-me os sítios gentis onde eu brincava | |
Lá na quadra infantil; | |
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria, | |
O céu do meu Brasil! | |
Se eu tenho de morrer na flor dos anos | |
Meu Deus! não seja já! | |
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, | |
Cantar o sabiá! | |
Quero ver esse céu da minha terra | |
Tão lindo e tão azul! | |
E a nuvem cor-de-rosa que passava | |
Correndo lá do sul! | |
Quero dormir à sombra dos coqueiros, | |
As folhas por dossel; | |
E ver se apanho a borboleta branca, | |
Que voa no vergel! | |
Quero sentar-me à beira do riacho | |
Das tardes ao cair, | |
E sozinho cismando no crepúsculo | |
Os sonhos do porvir! | |
Se eu tenho de morrer na flor dos anos, | |
Meu Deus! não seja já; | |
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, | |
A voz do sabiá! | |
Quero morrer cercado dos perfumes | |
Dum clima tropical, | |
E sentir, expirando, as harmonias | |
Do meu berço natal! | |
Minha campa será entre as mangueiras, | |
Banhada do luar, | |
E eu contente dormirei tranqüilo | |
À sombra do meu lar! | |
As cachoeiras chorarão sentidas | |
Porque cedo morri, | |
E eu sonho no sepulcro os meus amores | |
Na terra onde nasci! | |
Se eu tenho de morrer na flor dos anos, | |
Meu Deus! não seja já; | |
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, | |
Cantar o sabiá! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Marimbondo | |
Marimbondo furibundo | |
Vai mordendo meio mundo | |
Cuidado com o marimbondo | |
Que esse bicho morde fundo! | |
— Eta bicho danado! | |
Marimbondô | |
De chocolat | |
Saia daqui | |
Sem me morder | |
Senão eu dou | |
Uma paulada | |
Bem na cabeça | |
De você. | |
— Eta bicho danado! | |
Marimbondo . . . nem te ligo! | |
Voou e veio me espiar bem na minha cara . . . | |
— Eta bicho danado! | |
" | |
Herberto Helder,"Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos | |
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos | |
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem | |
à sua imagem. Este verão concentrado | |
em cada espelho. O próprio | |
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios | |
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias | |
internos. | |
Vou morrer assim, arfando | |
entre o mar fotográfico | |
e côncavo | |
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas | |
o sangue que se agrava. | |
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte, | |
ígneo nessa criança | |
contemplada. Eu abandono estes jardins | |
ferozes, o génio | |
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva | |
aos precipícios de agosto, e a mansidão | |
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar | |
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas. | |
Cada dia é um abismo atómico. | |
E o leite faz-se tenro durante | |
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro | |
que talha no calcário a rosa congenital. | |
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos. | |
O verão é de azulejo. | |
É em nós que se encurva o nervo do arco | |
contra a flecha. Deus ataca-me | |
na candura. Fica, fria, | |
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança | |
dá a volta à noite, acesa completamente | |
pelas mãos." | |
Ruy Belo,"A morte da água | |
Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore geneológica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida. | |
" | |
Cecília Meireles,"Os gatos da tinturaria | |
Os gatos brancos, descoloridos, | |
passeiam pela tinturaria, | |
miram policromos vestidos. | |
Com soberana melancolia, | |
brota nos seus olhos erguidos | |
o arco-íris, resumo do dia, | |
ressuscitando dos seus olvidos, | |
onde apagado cada um jazia, | |
abstratos lumes sucumbidos. | |
No vasto chão da tinturaria, | |
xadrez sem fim, por onde os ruídos | |
atropelam a geometria, | |
os grandes gatos abrem compridos | |
bocejos, na dispersão vazia | |
da voz feita para gemidos. | |
E assim proclamam a monarquia | |
da renúncia, e, tranqüilos vencidos, | |
dormem seu tempo de agonia. | |
Olham ainda para os vestidos, | |
mas baixam a pálpebra fria | |
" | |
Roberto Pontes,"Teletipo 1957 | |
hoje eclodiu a chama | |
o oriente cavalga o cosmos | |
seu cavalo sputnik | |
vai sem chouto | |
a 7 mil km por segundo | |
rompe a barra magnética | |
o cinto atmosférico | |
abre a cortina do espectro | |
e proclama nova era | |
" | |
Luís de Camões,"Eis aqui, quase cume da cabeça | |
Eis aqui, quase cume da cabeça | |
De Europa toda, o Reino Lusitano, | |
Onde a terra se acaba e o mar começa | |
E onde Febo repousa no Oceano. | |
Este quis o Céu justo que floresça | |
Nas armas contra o torpe Mauritano, | |
Deitando-o de si fora; e lá na ardente | |
África estar quieto não o consente. | |
Esta é a ditosa pátria minha amada, | |
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo | |
Torne com esta empresa já acabada, | |
Acabe-se esta luz aqui comigo. | |
Esta foi Lusitânia, derivada | |
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo | |
Filhos foram, parece, ou companheiros, | |
e nela então os íncolas primeiros. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"O Pingüim | |
Bom-dia, Pingüim | |
Onde vai assim | |
Com ar apressado? | |
Eu não sou malvado | |
Não fique assustado | |
Com medo de mim. | |
Eu só gostaria | |
De dar um tapinha | |
No seu chapéu de jaca | |
Ou bem de levinho | |
Puxar o rabinho | |
Da sua casaca. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O Arco | |
Que quer o anjo? chamá-la. | |
Que quer a alma? perder-se. | |
Perder-se em rudes guianas | |
para jamais encontrar-se. | |
Que quer a voz? encantá-lo. | |
Que quer o ouvido? embeber-se | |
de gritos blasfematórios | |
até quedar aturdido. | |
Que quer a nuvem? raptá-lo. | |
Que quer o corpo? solver-se, | |
delir memória de vida | |
e quanto seja memória. | |
Que quer a paixão? detê-lo. | |
Que quer o peito? fechar-se | |
contra os poderes do mundo | |
para na treva fundir-se. | |
Que quer a canção? erguer-se | |
em arco sobre os abismos. | |
Que quer o homem? salvar-se. | |
ao prêmio de uma canção. | |
" | |
Manuel Bandeira,"DESESPERANÇA | |
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo. | |
Como dói um pesar em cada pensamento! | |
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . . | |
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento | |
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia... | |
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento. | |
Assim deverá ser a natureza um dia, | |
Quando a vida acabar e, astro apagado, | |
Rodar sobre si mesma estéril e vazia. | |
O demônio sutil das nevroses enterra | |
A sua agulha de aço em meu crânio doído. | |
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra... | |
Minha respiração se faz como um gemido. | |
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo, | |
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido. | |
Por onde alongue o meu olhar de moribundo, | |
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto: | |
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo. | |
Vejo nele a feição fria de um desafeto. | |
Temo a monotonia e apreendo a mudança. | |
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto... | |
- Ah, como dói viver quando falta a esperança! | |
" | |
Olavo Bilac,"Ora (direis) Ouvir Estrelas! | |
""Ora (direis) ouvir estrelas! Certo | |
Perdeste o senso!"" E eu vos direi, no entanto, | |
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto | |
E abro as janelas, pálido de espanto... | |
E conversamos toda a noite, enquanto | |
A via láctea, como um pátio aberto, | |
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, | |
Inda as procuro pelo céu deserto. | |
Direis agora: ""Tresloucado amigo! | |
Que conversas com elas? Que sentido | |
Tem o que dizem, quando estão contigo?"" | |
E eu vos direi: ""Amai para entendê-las! | |
Pois só quem ama pode ter ouvido | |
Capaz de ouvir e de entender estrelas.""" | |
Mário Quintana,"Espelho | |
Por acaso, surpreendo-me no espelho: | |
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...) | |
Parece meu velho pai - que já morreu! (...) | |
Nosso olhar duro interroga: | |
""O que fizeste de mim?"" Eu pai? Tu é que me invadiste. | |
Lentamente, ruga a ruga... Que importa! | |
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre | |
E os teus planos enfim lá se foram por terra, | |
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra! | |
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."" | |
" | |
Maria Teresa Horta,"Morrer de amor | |
Morrer de amor | |
ao pé da tua boca | |
Desfalecer | |
à pele | |
do sorriso | |
Sufocar | |
de prazer | |
com o teu corpo | |
Trocar tudo por ti | |
se for preciso | |
" | |
Mário Cesariny,"O Álvaro gosta muito | |
O Álvaro gosta muito de levar no cu O Alberto nem por isso O Ricardo dá-lhe mais para ir O Fernando emociona-se e não consegue acabar. O Campos Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia Ficavam-lhe os olhos brancos E não falava, mordia. O Alberto É mais por causa da fotografia Das árvores altas nos montes perto Quando passam rapazes O que nem sempre sucedia. O Fernando o seu maior desejo desde adulto (Mas já na tenra idade lhe provia) Era ver os hètèros a foder uns com os outros Pela seguinte ordem e teoria: O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão Em não se tratando de anacreônticas) introduzia- -Se no Alberto até à base E com algum incómodo o Alberto erguiaNos pulsos a ordem da kabaliaTentando passá-la ao ÁlvaroQue enroscado no Search mordia mordiaE a mais não dava atenção.O Search tentavaApanhar o membro do BernardoQue crescia sem parança direcção espaçoE era o que mais avultava na dançaDas pernas do maço de heteronomiaA que aliás o Search era um pouco emprestadoComo de ajuda externa (de janela ao lado)Àquela endemoniaHoje em dia moderna e caso arrumado.Formado o quadradoEra quando o Aleyster Crowley aparecia.«Iô Pan! Iô Pã!», dizia,E era felatio para todose pão de ló molhado em malvasia." | |
Cecília Meireles,"Até quando terás, minha alma, esta doçura | |
Até quando terás, minha alma, esta doçura, | |
este dom de sofrer, este poder de amar, | |
a força de estar sempre – insegura – segura | |
como a flecha que segue a trajetória obscura, | |
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...? | |
" | |
Eugénio de Andrade,"As amoras | |
O meu país sabe a amoras bravas | |
no verão. | |
Ninguém ignora que não é grande, | |
nem inteligente, nem elegante o meu país, | |
mas tem esta voz doce | |
de quem acorda cedo para cantar nas silvas. | |
Raramente falei do meu país, talvez | |
nem goste dele, mas quando um amigo | |
me traz amoras bravas | |
os seus muros parecem-me brancos, | |
reparo que também no meu país o céu é azul. | |
" | |
Florbela Espanca,"A Mulher II | |
Ó mulher! Como és fraca e como és forte! | |
Como sabes ser doce e desgraçada! | |
Como sabes fingir quando em teu peito | |
A tua alma se estorce amargurada! | |
Quantas morrem saudosas duma imagem | |
Adorada que amaram doidamente! | |
Quantas e quantas almas endoidecem | |
Enquanto a boca ri alegremente! | |
Quanta paixão e amor às vezes têm | |
Sem nunca o confessarem a ninguém | |
Doces almas de dor e sofrimento! | |
Paixão que faria a felicidade | |
Dum rei; amor de sonho e de saudade, | |
Que se esvai e que foge num lamento! | |
" | |
Al Berto,"Envolver-me | |
Envolver-me | |
na mais obscura solidão das searas e gemer | |
Amassar com os dentes uma morte íntima | |
Durante a sonolência balbuciante das papoulas | |
Prolongar a vida deste verão até ao mais próximo verão | |
para que os corpos tenham tempo de amadurecer | |
...colher em tuas coxas o sumo espesso | |
e no calor molhado da noite seduzir as luas | |
o riso dos jovens pastores desprevenidos...as bocas | |
do gado triturando o restolho....as correrias inesperadas | |
das aves rasteiras | |
....e crescerei das fecundas terras ou da morte | |
que sufoca o cio da boca..... | |
....subirei com a fala ao cimo do teu corpo ausente | |
trasmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes." | |
Jorge de Lima,"O Grande Desastre Aéreo de Ontem | |
Para Cândido Portinari | |
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol. | |
LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, 2 v, v. 1, p. 237). | |
" | |
Gonçalves de Magalhães,"Entr'ato | |
(...) | |
""No Brasil, como sabes, qualquer zote | |
Um formado doutor se conceitua; | |
Quem pra trolha nasceu, ou pro rabote | |
Não creias que consulte a sorte sua; | |
Toda a baixa gentalha deste lote | |
Em política ao menos se insinua. | |
O vadio, o pedante, o mentecapto | |
Pra os públicos empregos julga-se apto. | |
""Não é com má tenção qu'isto te digo, | |
Mas sim porqu'ad reum o caso o pede, | |
Tu mesmo terás dito lá contigo | |
Que o pedantismo no Brasil tem sede: | |
Quem tem um Governante por amigo | |
Alcança tudo que deseja, e pede, | |
Não se gradua o mérito e a virtude, | |
Pra escravo, e adulador basta que estude. | |
""Há muito qu'este mal nos assolapa | |
E tem feito o Brasil andar à-toa; | |
Toma um alvar de patriota a capa, | |
E defensor da Pátria se apregoa. | |
Dos patriotas é tão grande o mapa | |
Quanto o dos asnos, qu'ela galardoa; | |
Quem talentos não tem, nem tem ofício | |
Um emprego requer em sacrifício | |
""Era o tempo da nossa Independência | |
Em que certa Família dominava, | |
E, como hoje se faz, por influência | |
D'algum patrono, tudo se alcançava. | |
Do nosso Herói não foi baldada a agência, | |
E como patriota se inculcava | |
Alegando ser Jovem Fluminense, | |
Pôde um lugar obter de Amanuense. | |
(...) | |
""Mas coitado! uma idéia o afligia, | |
Era o seu mau estado monetário; | |
Nada tinha de seu; e ele bem via | |
Que tudo no Brasil era precário. | |
Seu lugar d'um Ministro dependia; | |
Sendo tudo interino e arbitrário, | |
Tudo cair podia num instante, | |
Quanto mais ele, mísero pedante! | |
(...) | |
Publicado no livro Episódio da Infernal Comédia ou Da Minha Viagem ao Inferno (1836). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194" | |
Fernando Pessoa,"A parte do indolente é a abstracta vida. | |
A PARTE do indolente é a abstrata vida. | |
Quem não emprega o esforço em conseguir, | |
Mas o deixa ficar, deixa dormir, | |
O deixa sem futuro e sem guarida, | |
Que mais haurir pode da morta lida, | |
Da sentida vaidade de seguir | |
Um caminho, da inércia de sentir, | |
Do extinto fogo e da visão perdida, | |
Senão a calma aquiescência em ter | |
No sangue entregue, e pelo corpo todo | |
A consciência de nada qu'rer nem ser, | |
A intervisão das coisas atingíveis, | |
E o renunciá-las, como um lindo modo | |
Das mãos que a palidez torna impassíveis. | |
" | |
Nuno Júdice,"O Poeta | |
Trabalha agora na importação | |
e exportação. Importa | |
metáforas, exporta alegorias. | |
Podia ser um trabalhador | |
por conta própria, | |
um desses que preenche | |
cadernos de folha azul com | |
números | |
de deve e haver. De facto, o que | |
deve são palavras; e o que tem | |
é esse vazio de frases que lhe | |
acontece quando se encosta | |
ao vidro, no inverno, e a chuva cai | |
do outro lado. Então, pensa | |
que poderia importar o sol | |
e exportar as nuvens. | |
Poderia ser | |
um trabalhador do tempo. Mas, | |
de certo modo, a sua | |
prática confunde-se com a de um | |
escultor do movimento. Fere, | |
com a pedra do instante, o que | |
passa a caminho | |
da eternidade; | |
suspende o gesto que sonha o céu; | |
e fixa, na dureza da noite, | |
o bater de asas, o azul, a sábia | |
interrupção da morte. | |
" | |
Cecília Meireles,"Murmúrio | |
Traze-me um pouco das sombras serenas | |
que as nuvens transportam por cima do dia! | |
Um pouco de sombra, apenas, | |
- vê que nem te peço alegria. | |
Traze-me um pouco da alvura dos luares | |
que a noite sustenta no teu coração! | |
A alvura, apenas, dos ares: | |
- vê que nem te peço ilusão. | |
Traze-me um pouco da tua lembrança, | |
aroma perdido, saudade da flor! | |
- Vê que nem te digo - esperança! | |
- Vê que nem sequer sonho - amor! | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Gato | |
Que fazes por aqui, ó gato? | |
Que ambiguidade vens explorar? | |
Senhor de ti, avanças, cauto, | |
meio agastado e sempre a disfarçar | |
o que afinal não tens e eu te empresto, | |
ó gato, pesadelo lento e lesto, | |
fofo no pelo, frio no olhar! | |
De que obscura força és a morada? | |
Qual o crime de que foste testemunha? | |
Que deus te deu a repentina unha | |
que rubrica esta mão, aquela cara? | |
Gato, cúmplice de um medo | |
ainda sem palavras, sem enredos, | |
quem somos nós, teus donos ou teus servos? | |
" | |
Ruy Belo,"Algumas proposições com pássaros e árvores | |
QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO | |
Os pássaros nascem na ponta das árvores | |
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros | |
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores | |
Os pássaros começam onde as árvores acabam | |
Os pássaros fazem cantar as árvores | |
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se | |
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal | |
Como pássaros poisam as folhas na terra | |
quando o outono desce veladamente sobre os campos | |
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores | |
mas deixo essa forma de dizer ao romancista | |
é complicada e não se dá bem na poesia | |
não foi ainda isolada da filosofia | |
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros | |
Quem é que lá os pendura nos ramos? | |
De quem é a mão a inúmera mão? | |
Eu passo e muda-se-me o coração | |
" | |
Marina Colasanti,"Vincent | |
Ciprestes de Van Gogh | |
imóveis labaredas | |
verdes incêndios sobre a tela | |
verdes mulheres nuas | |
em seus cabelos. | |
Ciprestes de Van Gogh | |
bizantinas colunas | |
da paisagem | |
vórtice | |
remoinho erguido | |
como o grito | |
o fallus | |
o arremesso de gozo | |
do pintor. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993" | |
Cora Coralina,"Menina Mal Amada | |
No Passado | |
Tanta coisa me faltou. | |
Tanta coisa desejei sem alcançar. | |
Hoje, nada me falta, | |
me faltando sempre o que não tive. | |
Era eu uma pobre menina mal amada. | |
Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento. | |
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente | |
irreversível. | |
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha. | |
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos: | |
Minha bisavó e minha tia Nhorita. | |
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe. | |
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando | |
as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida, | |
me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar | |
e levar queixas doloridas para a mãe | |
que perdida no seu mundo de leitura e negócios não dava atenção. | |
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó. | |
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus mal feitos de criança | |
e exortava minhas irmãs a me aceitarem. | |
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se | |
[aguçando | |
para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs. | |
Minhas impressões foram se acumulando lentamente | |
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades. | |
E fui marcada: menina inzoneira. | |
Sem saber o significado da palavra, acostumada ao tratamento | |
[ridicularizante, | |
esta palavra me doía. | |
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência com | |
[cigarras, | |
descia na casa das formigas, brincava de roda com elas, | |
cantava ""Senhora D. Sancha"", trocava anelzinho. | |
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia. | |
Chamavam, mãe: vem ver Aninha... | |
Mãe vinha, ralhava forte. | |
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão. | |
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente. | |
Era nesse tempo, amarela, de olhos empapuçados, lábios descorados. | |
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: | |
[""Cieiro."" | |
Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas. | |
Não me deixavam participar de seus brinquedos. | |
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o | |
[braço | |
no ombro e segredava: ""Não brinca com Aninha não. Ela tem Cieiro | |
e pega na gente."" | |
Eu ia atrás, batida, enxotada. | |
Infância... Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância... | |
Infância... Hoje, será. | |
In: CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 4. ed. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 198" | |
Eugénio de Andrade,"Os amantes sem dinheiro | |
Tinham o rosto aberto a quem passava. | |
Tinham lendas e mitos | |
e frio no coração. | |
Tinham jardins onde a lua passeava | |
de mãos dadas com a água | |
e um anjo de pedra por irmão. | |
Tinham como toda a gente | |
o milagre de cada dia | |
escorrendo pelos telhados; | |
e olhos de oiro | |
onde ardiam | |
os sonhos mais tresmalhados. | |
Tinham fome e sede como os bichos, | |
e silêncio | |
à roda dos seus passos. | |
Mas a cada gesto que faziam | |
um pássaro nascia dos seus dedos | |
e deslumbrado penetrava nos espaços. | |
" | |
Luís de Camões,"Vencido está de amor | |
Vencido está de amor Meu pensamento | |
O mais que pode ser Vencida a vida, | |
Sujeita a vos servir e Instituída, | |
Oferecendo tudo A vosso intento. | |
Contente deste bem, Louva o momento | |
Outra vez renovar Tão bem perdida; | |
A causa que me guia A tal ferida, | |
Ou hora em que se viu Seu perdimento. | |
Mil vezes desejando Está segura | |
Com essa pretensão Nesta empresa, | |
Tão estranha, tão doce, Honrosa e alta | |
Voltando só por vós Outra ventura, | |
Jurando não seguir Rara firmeza, | |
Sem ser no vosso amor Achado em falta. | |
" | |
José Régio,"Sabedoria | |
Desde que tudo me cansa, | |
Comecei eu a viver. | |
Comecei a viver sem esperança... | |
E venha a morte quando | |
Deus quiser. | |
Dantes, ou muito ou pouco, | |
Sempre esperara: | |
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco | |
Voava das estrelas à mais rara; | |
Outras, tão pouco, | |
Que ninguém mais com tal se conformara. | |
Hoje, é que nada espero. | |
Para quê, esperar? | |
Sei que já nada é meu senão se o não tiver; | |
Se quero, é só enquanto apenas quero; | |
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar... | |
E venha a morte quando Deus quiser. | |
Mas, com isto, que têm as estrelas? | |
Continuam brilhando, altas e belas. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"O amor que sinto | |
O amor que sinto | |
é um labirinto. | |
Nele me perdi | |
com o coração | |
cheio de ter fome | |
do mundo e de ti | |
(sabes o teu nome), | |
sombra necessária | |
de um Sol que não vejo, | |
onde cabe o pária, | |
a Revolução | |
e a Reforma Agrária | |
sonho do Alentejo. | |
Só assim me pinto | |
neste Amor que sinto. | |
Amor que me fere, | |
chame-se mulher, | |
onda de veludo, | |
pátria mal-amada, | |
chame-se ""amar nada"" | |
chame-se ""amar tudo"". | |
E porque não minto | |
sou um labirinto. | |
" | |
Miguel Torga,"Aos Poetas | |
Somos nós | |
As humanas cigarras! | |
Nós, | |
Desde os tempos de Esopo conhecidos. | |
Nós, | |
Preguiçosos insectos perseguidos. | |
Somos nós os ridículos comparsas | |
Da fábula burguesa da formiga. | |
Nós, a tribo faminta de ciganos | |
Que se abriga | |
Ao luar. | |
Nós, que nunca passamos | |
A passar!... | |
Somos nós, e só nós podemos ter | |
Asas sonoras, | |
Asas que em certas horas | |
Palpitam, | |
Asas que morrem, mas que ressuscitam | |
Da sepultura! | |
E que da planura | |
Da seara | |
Erguem a um campo de maior altura | |
A mão que só altura semeara. | |
Por isso a vós, Poetas, eu levanto | |
A taça fraternal deste meu canto, | |
E bebo em vossa honra o doce vinho | |
Da amizade e da paz! | |
Vinho que não é meu, | |
mas sim do mosto que a beleza traz! | |
E vos digo e conjuro que canteis! | |
Que sejais menestreis | |
De uma gesta de amor universal! | |
Duma epopeia que não tenha reis, | |
Mas homens de tamanho natural! | |
Homens de toda a terra sem fronteiras! | |
De todos os feitios e maneiras, | |
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele! | |
Crias de Adão e Eva verdadeiras! | |
Homens da torre de Babel! | |
Homens do dia a dia | |
Que levantem paredes de ilusão! | |
Homens de pés no chão, | |
Que se calcem de sonho e de poesia | |
Pela graça infantil da vossa mão! | |
" | |
Nuno Júdice,"Um Rosto | |
Apenas | |
uma coisa inteiramente transparente: | |
o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte | |
nos teus olhos, que pude ver ainda | |
através de pálpebras semicerradas, pestanas húmidas | |
da geada matinal, uma névoa de palavras murmuradas | |
num silêncio de hesitações. Há quanto tempo, | |
tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo | |
se enche de bolor e fungos; limpo os papéis, | |
cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto- | |
grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos | |
por manchas vagas como aparições; e sinto, eu | |
próprio, que uma parte da minha vida se apaga | |
com esses restos. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O chão é cama | |
O chão é cama para o amor urgente, | |
amor que não espera ir para a cama. | |
Sobre tapete ou duro piso, a gente | |
compõe de corpo e corpo a úmida trama. | |
E para repousar do amor, vamos à cama. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Um Dia a Solidão | |
... | |
Um dia, a solidão | |
- que dor de vergonha! - | |
levou-me pela mão | |
para seu baluarte | |
e disse-me "" sonha! | |
O sonho é a tua lei"" | |
E eu para ali fiquei, | |
Tão farto de ser eu, | |
A ouvir o meu coração | |
Bater em toda a parte, | |
Nos astros do chão, | |
Nas pedras do céu. | |
E eu para ali fiquei | |
A arrancar a carne das unhas, | |
Sozinho no meu jardim, | |
A viver sem testemunhas | |
No espelho de mim. | |
E eu para ali fiquei | |
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos: | |
A luz, as flores, os bichos | |
E o sol enforcado na floresta, | |
Na alucinação | |
Duma corda de lava | |
A baloiçar ao vento da minhaalma à solta… | |
E eu para ali fiquei | |
- pobre de mim que ignorava | |
a dor da verdadeira solidão | |
que é esta! Que é esta!… | |
Muita gente à minha volta | |
E eu aos tombos pelas ruas, | |
longe de todos e de mim, | |
a morrer pelos outros | |
em barricadas de estrelas e de luas. | |
" | |
Fernando Pessoa,"A minha camisa rota | |
A MINHA camisa rota | |
(Pois não tenho quem me a cosa) | |
É parte minha na rota | |
Que vai para qualquer cousa, | |
Pois o estar rota denota | |
Que a minha [...] | |
Para muita coisa de volta. | |
Mas sei que a camisa é nada, | |
Que um rasgão não é mal, | |
E que a camisa rasgada | |
Não traz a alma enganada, | |
Em busca do Santo Graal. | |
" | |
Manuel António Pina,"Amor como em casa | |
Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que não é nada comigo. Distraído percorro o caminho familiar da saudade, pequeninas coisas me prendem, uma tarde num café, um livro. Devagar te amo e às vezes depressa, meu amor, e às vezes faço coisas que não devo, regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no amor como em casa." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Poema de Sete Faces | |
Quandonasci, um anjo torto | |
desses que vivem na sombra | |
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. | |
As casas espiam os homens | |
que correm atrás de mulheres. | |
A tarde talvez fosse azul, | |
não houvesse tantos desejos. | |
O bonde passa cheio de pernas: | |
pernas brancas pretas amarelas. | |
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. | |
Porém meus olhos | |
não perguntam nada. | |
O homem atrás do bigode | |
é sério, simples e forte. | |
Quase não conversa. | |
Tem poucos, raros amigos | |
o homem atrás dos óculos e do bigode. | |
Meu Deus, por que me abandonaste | |
se sabias que eu não era Deus, | |
se sabias que eu era fraco. | |
Mundo mundo vasto mundo | |
se eu me chamasse Raimundo | |
seria uma rima, não seria uma solução. | |
Mundo mundo vasto mundo, | |
mais vasto é meu coração. | |
Eu não devia te dizer | |
mas essa lua | |
mas esse conhaque | |
botam a gente comovido como o diabo. | |
" | |
Cesário Verde,"O Sentimento dum Ocidental - Horas Mortas | |
O tecto fundo de oxigénio, de ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a quimera azul de transmigrar. | |
Por baixo, que portões! Que arruamentos! Um parafuso cai nas lajes, às escuras: Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. | |
E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longínqua flauta. | |
Se eu não morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Que aninhem em mansões de vidro transparente! | |
Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, Numas habitações translúcidas e frágeis. | |
Ah! Como a raça ruiva do porvir, E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, Nós vamos explorar todos os continentes E pelas vastidões aquáticas seguir! | |
Mas se vivemos, os emparedados, Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir, estrangulados." | |
Miguel Torga,"Apelo | |
Porque | |
não vens agora, que te quero | |
E adias esta urgencia? | |
Prometes-me o futuro e eu desespero | |
O futuro é o disfarce da impotência.... | |
Hoje, aqui, já, neste momento, | |
Ou nunca mais. | |
A sombra do alento é o desalento | |
O desejo o imite dos mortais. | |
" | |
Cecília Meireles,"Discurso | |
E aqui estou, cantando. | |
Um poeta é sempre irmão do vento e da água: | |
deixa seu ritmo por onde passa. | |
Venho de longe e vou para longe: | |
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho | |
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes | |
andaram. | |
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, | |
mas houve sempre muitas nuvens. | |
E suicidaram-se os operários de Babel. | |
Pois aqui estou, cantando. | |
Se eu nem sei onde estou, | |
como posso esperar que algum ouvido me escute? | |
Ah! Se eu nem sei quem sou, | |
como posso esperar que venha alguém gostar de mim? | |
" | |
Nuno Júdice,"Arte Poética | |
com Citação de Holderlin | |
O poema lírico | |
nasceu de uma roseira. Não | |
digo que fosse a rosa de cima, aquela que todos | |
olham, primeiro que tudo, pensando | |
em cortá-la para a levarem consigo. É | |
a rosa nem branca nem vermelha, a rosa pálida, | |
vestida com a substância da terra: | |
a que toma a cor dos olhos de quem a fixa, por | |
acaso, e ela agarra, como se tivesse | |
mãos abstractas por dentro das suas folhas. | |
Colhi esse poema. Meti-o dentro de água, | |
como a rosa, para que flutuasse ao longo de um rio | |
de versos. O seu corpo, nu como o dessa mulher | |
que amei num sonho obscuro, bebeu a seiva | |
dos lagos, os veios subterrâneos das humidades | |
ancestrais, e abriu-se como o ventre da | |
própria flor. Levou atrás de si os meus olhos, | |
num barco tão fundo como a sua própria | |
morte. | |
Abracei esse poema. Estendi-o na areia | |
das margens, tapando a sua nudez com os ramos | |
de arbustos fluviais. Arranquei os botões | |
que nasciam dos seus seios, bebendo a sua cor | |
verde como os charcos coalhados do outono. Pedi-lhe | |
que me falasse, como se ele só ainda soubesse | |
as últimas palavras do amor. | |
(Metáfora | |
contínua de um único sentimento). | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"A Educação pela Pedra | |
Uma educação pela pedra: por lições; | |
para aprender da pedra, frequentá-la; | |
captar sua voz inenfática, impessoal | |
(pela de dicção ela começa as aulas). | |
A lição de moral, sua resistência fria | |
ao que flui e a fluir, a ser maleada; | |
a de poética, sua carnadura concreta; | |
a de economia, seu adensar-se compacta: | |
lições da pedra (de fora para dentro, | |
cartilha muda), para quem soletrá-la. | |
* | |
Outra educação pela pedra: no Sertão | |
(de dentro para fora, e pré-didática). | |
No Sertão a pedra não sabe lecionar, | |
e se lecionasse, não ensinaria nada; | |
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, | |
uma pedra de nascença, entranha a alma. | |
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.338. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Vinicius de Moraes,"Introspecção | |
Nuvens lentas passavam | |
Quando eu olhei o céu. | |
Eu senti na minha alma a dor do céu | |
Que nunca poderá ser sempre calmo. | |
Quando eu olhei a árvore perdida | |
Não vi ninhos nem pássaros. | |
Eu senti na minha alma a dor da árvore | |
Esgalhada e sozinha | |
Sem pássaros cantando nos seus ninhos. | |
Quando eu olhei minha alma | |
Vi a treva. | |
Eu senti no céu e na árvore perdida | |
A dor da treva que vive na minha alma." | |
Maria Teresa Horta,"Masturbação | |
Eis o centro do corpo | |
o nosso centro | |
onde os dedos escorregam devagar | |
e logo tornam onde nesse | |
centro | |
os dedos esfregam - correm | |
e voltam sem cessar | |
e então são os meus | |
já os teus dedos | |
e são meus dedos | |
já a tua boca | |
que vai sorvendo os lábios | |
dessa boca | |
que manipulo - conduzo | |
pensando em tua boca | |
Ardência funda | |
planta em movimento | |
que trepa e fende fundidas | |
já no tempo | |
calando o grito nos pulmões da tarde | |
E todo o corpo | |
é esse movimento | |
que trepa e fende fundidas | |
já no tempo | |
calando o grito nos pulmões da tarde | |
E todo o corpo | |
é esse movimento | |
em torno | |
em volta | |
no centro desses lábios | |
que a febre toma | |
engrossa | |
e vai cedendo a pouco e pouco | |
nos dedos e na palma | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A Um Ausente | |
Tenho razão de sentir saudade, | |
tenho razão de te acusar. | |
Houve um pacto implícito que rompeste | |
e sem te despedires foste embora. | |
Detonaste o pacto. | |
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência | |
de viver e explorar os rumos de obscuridade | |
sem prazo sem consulta sem provocação | |
até o limite das folhas caídas na hora de cair. | |
Antecipaste a hora. | |
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas. | |
Que poderias ter feito de mais grave | |
do que o ato sem continuação, o ato em si, | |
o ato que não ousamos nem sabemos ousar | |
porque depois dele não há nada? | |
Tenho razão para sentir saudade de ti, | |
de nossa convivência em falas camaradas, | |
simples apertar de mãos, nem isso, voz | |
modulando sílabas conhecidas e banais | |
que eram sempre certeza e segurança. | |
Sim, tenho saudades. | |
Sim, acuso-te porque fizeste | |
o não previsto nas leis da amizade e da natureza | |
nem nos deixaste sequer o direito de indagar | |
porque o fizeste, porque te foste. | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"A Coisa Pública e a Privada | |
Entre a coisa pública | |
e a privada | |
achou-se a República | |
assentada. | |
Uns queriam privar | |
da coisa pública, | |
outros queriam provar | |
da privada, | |
conquanto, é claro, | |
que, na provação, | |
a privada, publicamente, | |
parecesse perfumada. | |
Dessa luta intestina | |
entre a gula pública e a privada | |
a República | |
acabou desarranjada | |
e já ninguém sabia | |
quando era a empresa pública | |
privada pública | |
ou | |
pública privada. | |
Assim ia a rês pública: avacalhada | |
uma rês pública: charqueada | |
uma rês pública, publicamente | |
corneada, que por mais | |
que lhe batessem na cangalha | |
mais vivia escangalhada. | |
Qual o jeito? | |
Submetê-la a um jejum? | |
Ou dar purgante à esganada | |
que embora a prisão de ventre | |
tinha a pança inflacionada? | |
O que fazer? | |
Privatizar a privada | |
onde estão todos | |
publicamente assentados? | |
Ou publicar, de uma penada, | |
que a coisa pública | |
se deixar de ser privada | |
pode ser recuperada? | |
— Sim, é preciso sanear, | |
desinfetar a coisa pública, | |
limpar a verba malversada, | |
dar descarga na privada. | |
Enfim, acabar com a alquimia | |
de empresas públicas-privadas | |
que querem ver suas fezes | |
em ouro alheio transformadas. | |
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História" | |
Marina Colasanti,"Amor ao meio-dia | |
O sol | |
no pau | |
a pique. | |
A sombra | |
da vulva telha-vã. | |
" | |
Ruy Belo,"Povoamento | |
No teu amor por mim há uma rua que começa | |
nem árvores nem casas existiam | |
antes que tu tivesses palavras | |
e todo eu fosse um coração para elas | |
Invento-te e o céu azula-se sobre esta | |
triste condição de ter de receber | |
dos choupos onde cantam | |
os impossíveis pássaros | |
a nova primavera | |
Tocam sinos e levantam voo | |
todos os cuidados | |
Ó meu amor nem minha mãe | |
tinha assim um regaço | |
como este dia tem | |
E eu chego e sento-me ao lado | |
da primavera" | |
Augusto dos Anjos,"A árvore da serra | |
As árvores, meu filho, não tem alma! | |
E esta árvore me serve de empecilho... | |
É preciso cortá-la, pois, meu filho, | |
Para que eu tenha uma velhice mais calma! | |
- Meu pai, por que sua ira não se acalma?! | |
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! | |
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho... | |
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!... | |
- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa: | |
""Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"" | |
E quando a árvore, olhando a pátria serra, | |
Caiu aos golpes do machado bronco, | |
O moço triste se abraçou com o tronco | |
E nunca mais se levantou da terra. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Há dias | |
Há dias em que julgamosque todo o lixo do mundonos cai em cimadepois ao chegarmos à varanda avistamosas crianças correndo no molheenquanto cantamnão lhes sei o nomeuma ou outra parece-me comigoquero eu dizer :com o que fuiquando cheguei a ser luminosapresença da graçaou da alegriaum sorriso abre-se entãonum verão antigoe duradura ainda. de Os lugares de Lume" | |
Manuel Bandeira,"O Anel de Vidro | |
Aquele pequenino anel que tu me deste, | |
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou… | |
Assim também o eterno amor que prometeste, | |
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou. | |
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste, | |
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, – | |
Aquele pequenino anel que tu me deste, | |
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou… | |
Não me turbou, porém, o despeito que investe | |
Gritando maldições contra aquilo que amou. | |
De ti conservo no peito a saudade celeste… | |
Como também guardei o pó que me ficou | |
Daquele pequenino anel que tu me deste… | |
" | |
Olavo Bilac,"A Ronda Noturna | |
Noite cerrada, tormentosa, escura, | |
Lá fora. Dormem em trevas o convento. | |
Queda imoto o arvoredo. Não fulgura | |
Uma estrela no torvo firmamento. | |
Dentro é tudo mudez. Flébil murmura, | |
De espaço a espaço, entanto, a voz do vento: | |
E há um rasgar de sudários pela altura, | |
Passo de espectros pelo pavimento... | |
Mas, de súbito, os gonzos das pesadas | |
Portas rangem... Ecoa surdamente | |
Leve rumor de vozes abafadas. | |
E, ao clarão de uma lâmpada tremente, | |
Do claustro sob as tácitas arcadas | |
Passa a ronda noturna, lentamente... | |
Publicado no livro Poesias, 1884/1887 (1888). Poema integrante da série Panóplias. | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Herberto Helder,"Como uma rosa no fundo da cabeça | |
Como uma rosa no fundo da cabeça,que maneira obscura | |
de morte.O perfume a sangue à volta da camisa | |
fria,a boca cheia de ar,a memória | |
ecoando como as vozes | |
de agora.Onde está sentada brilha de tantas | |
moléculas | |
vivas,tanto hidrogénio,tanta seda escorregadia dos ombros | |
para baixo.Toca eu | |
de onde rompe a rosa.uma criança | |
luciferina.A mãe fechava, | |
abria em torno a torrente dos átomos | |
sobre a cara.Aquilo que a estrangula dos pulmões | |
à garganta | |
é a rosa infundida.Leva um braço às costas, | |
suando,raiando | |
pelo sono fora.Está queimada onde lhe toca.Falaria alto | |
se o peso a enterrasse à altura das vozes. | |
Via a matéria radiosa de que é feito o mundo. | |
A língua doce de leite, | |
a mão direita na massa agre,o sexo banhado | |
no manancial secreto. | |
O dom que transtorna a criança ardente é leve como | |
a respiração,leve como | |
a agonia. | |
Uma rosa no fundo da cabeça. | |
" | |
Pablo Neruda,"Poema XLIV | |
Saberás que não te amo e que te amo | |
posto que de dois modos é a vida, | |
a palavra é uma asa do silêncio, | |
o fogo tem uma metade de frio. | |
Eu te amo para começar a amar-te, | |
para recomeçar o infinito | |
e para não deixar de amar-te nunca: | |
por isso não te amo ainda. | |
Te amo e não te amo como se tivesse | |
em minhas mãos as chaves da fortuna | |
e um incerto destino desafortunado. | |
Meu amor tem duas vidas para amar-te. | |
Por isso te amo quando não te amo | |
e por isso te amo quando te amo. | |
(Retirado de: Cem sonetos de amor) | |
" | |
Cruz e Sousa,"Cárcere das Almas | |
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, | |
Soluçando nas trevas, entre as grades | |
Do calabouço olhando imensidades, | |
Mares, estrelas, tardes, natureza. | |
Tudo se veste de uma igual grandeza | |
Quando a alma entre grilhões as liberdades | |
Sonha e, sonhando, as imortalidades | |
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza. | |
Ó almas presas, mudas e fechadas | |
Nas prisões colossais e abandonadas, | |
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo! | |
Nesses silêncios solitários, graves, | |
Que chaveiro do Céu possui as chaves | |
para abrir-vos as portas do Mistério?! | |
Publicado no livro Últimos Sonetos (1905). | |
In: SOUSA, Cruz e. Últimos sonetos. Texto estabelecido pelo manuscrito autógrafo e notas Adriano da Gama Kury. Est. liter. Julio Castañon Guimarães. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC: Fundação Catarinense de Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. p.21" | |
Cesário Verde,"Sardenta | |
Tu, nesse corpo completo, | |
Ó láctea virgem doirada! | |
Tens o linfático aspecto | |
Duma camélia melada. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Porque esqueci quem fui quando criança? | |
Porque esqueci quem fui quando criança? | |
Porque deslembro quem então era eu? | |
Porque não há nenhuma semelhança | |
Entre quem sou e fui? | |
A criança que fui vive ou morreu? | |
Sou outro? Veio um outro em mim viver? | |
A vida, que em mim flui, em que é que flui? | |
Houve em mim várias almas sucessivas | |
Ou sou um só inconsciente ser? | |
1932" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Quarto em desordem | |
Na curva perigosa dos cinqüenta | |
derrapei neste amor. Que dor! que pétala | |
sensível e secreta me atormenta | |
e me provoca à síntese da flor | |
que não sabe como é feita: amor | |
na quinta-essência da palavra, e mudo | |
de natural silêncio já não cabe | |
em tanto gesto de colher e amar | |
a nuvem que de ambígua se dilui | |
nesse objeto mais vago do que nuvem | |
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo | |
verdade tão final, sede tão vária | |
a esse cavalo solto pela cama | |
a passear o peito de quem ama. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Segue o teu destino, | |
Segue o teu destino, | |
Rega as tuas plantas, | |
Ama as tuas rosas. | |
O resto é a sombra | |
De árvores alheias. | |
A realidade | |
Sempre é mais ou menos | |
Do que nós queremos. | |
Só nós somos sempre | |
Iguais a nós-próprios. | |
Suave é viver | |
só. | |
Grande e nobre é sempre | |
Viver simplesmente. | |
Deixa a dor nas aras | |
Como ex-voto aos deuses. | |
Vê de longe | |
a vida. | |
Nunca a interrogues. | |
Ela nada pode | |
Dizer-te. A resposta | |
Está além dos deuses. | |
Mas serenamente | |
Imita o Olimpo | |
No teu coração. | |
Os deuses são deuses | |
Porque não se pensam. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Poema do Beco | |
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? | |
— O que eu vejo é o beco | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"Graciliano Ramos: | |
Falo somente com o que falo: | |
com as mesmas vinte palavras | |
girando ao redor do sol | |
que as limpa do que não é faca: | |
de toda uma crosta viscosa, | |
resto de janta abaianada, | |
que fica na lâmina e cega | |
seu gosto da cicatriz clara. | |
*** | |
Falo somente do que falo: | |
do seco e de suas paisagens, | |
Nordestes, debaixo de um sol | |
ali do mais quente vinagre: | |
que reduz tudo ao espinhaço, | |
cresta o simplesmente folhagem, | |
folha prolixa, folharada, | |
onde possa esconder-se a fraude. | |
*** | |
Falo somente por quem falo: | |
por quem existe nesses climas | |
condicionados pelo sol, | |
pelo gavião e outras rapinas: | |
e onde estão os solos inertes | |
de tantas condições caatinga | |
em que só cabe cultivar | |
o que é sinônimo da míngua. | |
*** | |
Falo somente para quem falo: | |
quem padece sono de morto | |
e precisa um despertador | |
acre, como o sol sobre o olho: | |
que é quando o sol é estridente, | |
a contrapelo, imperioso, | |
e bate nas pálpebras como | |
se bate numa porta a socos. | |
Publicado no livro Terceira feira (1961). Poema integrante da série Serial. | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.311-312. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
João Cabral de Melo Neto,"Fábula de um Arquiteto | |
A arquitetura como construir portas, | |
de abrir; ou como construir o aberto; | |
construir, não como ilhar e prender, | |
nem construir como fechar secretos; | |
construir portas abertas, em portas; | |
casas exclusivamente portas e teto. | |
O arquiteto: o que abre para o homem | |
(tudo se sanearia desde casas abertas) | |
portas por-onde, jamais portas-contra; | |
por onde, livres: ar luz razão certa. | |
2. | |
Até que, tantos livres o amedrontando, | |
renegou dar a viver no claro e aberto. | |
Onde vãos de abrir, ele foi amurando | |
opacos de fechar; onde vidro, concreto; | |
até refechar o homem: na capela útero, | |
com confortos de matriz, outra vez feto. | |
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345-346. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
José Régio,"Onomatopeia | |
Menino franzino, | |
Quase pequenino, | |
Pequenino, triste, | |
Neste mundo só..., | |
Menino, desiste | |
De que tenham dó! | |
Desiste, menino, | |
Que o mundo é cretino... | |
Deixa o teu violino, | |
Toca o sol-e-dó. | |
Cada teu suspiro | |
Cai ao chão no pó... | |
Canta o tiro-liro | |
Tiro-liro-ló. | |
Deixa o teu violino, | |
Que não te é destino. | |
Desiste, menino, | |
De que tenham dó! | |
Menino franzino, | |
Triste e pequenino, | |
Pequenino, triste, | |
Neste mundo só..., | |
Menino, desiste! | |
Toca o sol-e-dó. | |
Canta o tiro-liro, repipiro-piro, | |
Canta o repipiro, tiro-liro-ló. | |
" | |
Adélia Prado,"Ensinamento | |
Minha | |
mãe achava estudo | |
a coisa mais fina do mundo. | |
Não é | |
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. | |
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, | |
ela falou comigo: | |
""Coitado, até essa hora no serviço pesado"". | |
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água | |
quente. | |
Não me falou em amor. | |
Essa palavra de luxo. | |
" | |
Pablo Neruda,"ODE À POESIA | |
Perto de cinqüenta anos | |
caminhando | |
contigo, Poesia. | |
A princípio | |
me emaranhavas os pés | |
e eu caía de bruços | |
sobre a terra escura | |
ou enterrava os olhos | |
na poça | |
para ver as estrelas. | |
Mais tarde te apertaste | |
a mim com os dois braços da amante | |
e subiste | |
pelo meu sangue | |
como uma trepadeira. | |
E logo | |
te transformaste em taça. | |
Maravilhoso | |
foi | |
ir derramando-te sem que te consumisses, | |
ir entregando tua água inesgotável, | |
ir vendo que uma gota | |
caia sobre um coração queimado | |
que de suas cinzas revivia. | |
Mas | |
ainda não me bastou. | |
Andei tanto contigo | |
que te perdi o respeito. | |
Deixei de ver-te como | |
náiade vaporosa, | |
te pus a trabalhar de lavadeira, | |
a vender pão nas padarias, | |
a tecer com as simples tecedoras, | |
a malhar ferros na metalurgia. | |
E seguiste comigo | |
andando pelo mundo, | |
contudo já não eras | |
a florida | |
estátua de minha infância. | |
Falavas | |
agora | |
com voz de ferro. | |
Tuas mãos | |
foram duras como pedras. | |
Teu coração | |
foi um abundante | |
manancial de sinos, | |
produziste pão a mãos cheias, | |
me ajudaste | |
a não cair de bruços, | |
me deste companhia, | |
não uma mulher, | |
não um homem, | |
mas milhares, milhões. | |
Juntos, Poesia, | |
fomos | |
ao combate, à greve, | |
ao desfile, aos portos, | |
à mina | |
e me ri quando saíste | |
com a fronte tisnada de carvão | |
ou coroada de serragem cheirosa | |
das serrarias. | |
Já não dormíamos nos caminhos. | |
Esperavam-nos grupos | |
de operários com camisas | |
recém-lavadas e bandeiras rubras. | |
E tu, Poesia, | |
antes tão desventuradamente tímida, | |
foste | |
na frente | |
e todos | |
se acostumaram ao teu traje | |
de estrela cotidiana, | |
porque mesmo se algum relâmpago delatou tua família, | |
cumpriste tua tarefa, | |
teu passo entre os passos dos homens. | |
Eu te pedi que fosses | |
utilitária e útil, | |
como metal ou farinha, | |
disposta a ser arada, | |
ferramenta, | |
pão e vinho, | |
disposta, Poesia, | |
a lutar corpo-a-corpo | |
e cair ensangüentada. | |
E agora, | |
Poesia, | |
obrigado, esposa, | |
irmã ou mãe | |
ou noiva, | |
obrigado, onda marinha, | |
jasmim e bandeira, | |
motor de música, | |
longa pétala de ouro, | |
campana submarina, | |
celeiro | |
inextinguível, | |
obrigado | |
terra de cada um | |
de meus dias, | |
vapor celeste e sangue | |
de meus anos, | |
porque me acompanhaste | |
desde a mais diáfana altura | |
até a simples mesa | |
dos pobres, | |
porque puseste em minha alma | |
sabor ferruginoso | |
e fogo frio, | |
porque me levantaste | |
até a altura insigne | |
dos homens comuns, | |
Poesia, | |
porque contigo, | |
enquanto me fui gastando, | |
tu continuaste | |
desabrochando tua frescura firme, | |
teu ímpeto cristalino, | |
como se o tempo | |
que pouco a pouco me converte em terra | |
fosse deixar correndo eternamente | |
as águas de meu canto. | |
(Tradução | |
de Thiago de Mello) | |
" | |
Paulo Leminski,"KAI | |
Mínimo templo | |
para um deus pequeno, | |
aqui vos guarda, | |
em vez da dor que peno, | |
meu extremo anjo de vanguarda. | |
De que máscara | |
se gaba sua lástima, | |
de que vaga | |
se vangloria sua história, | |
saiba quem saiba. | |
A mim me basta | |
a sombra que se deixa, | |
o corpo que se afasta. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Vontade de dormir | |
Fios de oiro puxam por mim | |
a soerguer-me na poeira — | |
Cada um para seu fim, | |
Cada um para seu norte... | |
..................................................................... | |
— Ai que saudade da morte... | |
..................................................................... | |
Quero dormir... ancorar... | |
..................................................................... | |
Arranquem-me esta grandeza! | |
— P’ra que me sonha a beleza | |
Se a não posso transmigrar?... | |
" | |
Cecília Meireles,"Gargalhada | |
Homem vulgar! Homem de coração mesquinho! | |
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir. | |
Dobra essa orelha grosseira, e escuta | |
o ritmo e o som da minha gargalhada: | |
Ah! Ah! Ah! Ah! | |
Ah! Ah! Ah! Ah! | |
Não vês? | |
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro. | |
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais, | |
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas, | |
destruir as lâmpadas, abater cúpulas, | |
e atirar para longe os pandeiros e as liras... | |
O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada. | |
Mas é preciso ter baixelas de ouro, | |
compreendes? | |
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas. | |
E as lâmpadas, Deus do céu! | |
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas... | |
Escuta bem: | |
Ah! Ah! Ah! Ah! | |
Ah! Ah! Ah! Ah! | |
Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica: | |
do céu que venta, | |
do mar que dança, | |
e de mim. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"In Memorian | |
Esses mortos difíceis | |
Que não acabam de morrer | |
Dentro de nós; o sorriso | |
De fotografia, | |
A carícia suspensa, as folhas | |
Dos estios persistindo | |
Na poeira; difíceis; | |
O suor dos cavalos, o sorriso, | |
Como já disse, nos lábios, | |
Nas folhas dos livros; | |
Não acabam de morrer; | |
Tão difíceis, os amigos | |
" | |
Jorge de Sena,"Camões dirige-se aos seus contemporâneos | |
Podereis roubar-me tudo: | |
as ideias, as palavras, as imagens, | |
e também as metáforas, os temas, os motivos, | |
os símbolos, e a primazia | |
nas dores sofridas de uma língua nova, | |
no entendimento de outros, na coragem | |
de combater, julgar, de penetrar | |
em recessos de amor para que sois castrados. | |
E podereis depois não me citar, | |
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até | |
outros ladrões mais felizes. | |
Não importa nada: que o castigo | |
será terrível. Não só quando | |
vossos netos não souberem já quem sois | |
terão de me saber melhor ainda | |
do que fingis que não sabeis, | |
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, | |
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, | |
tido por meu, contado como meu, | |
até mesmo aquele pouco e miserável | |
que, só por vós. sem roubo, haveríeis feito. | |
Nada tereis, mas nada: nem os ossos, | |
que um vosso esqueleto há-de ser buscado, | |
para passar por meu. E para outros ladrões, | |
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo. | |
de Metamorfoses(1963) | |
" | |
Fernando Pessoa,"Se estou só, quero não estar, | |
Se estou só, quero não star, | |
Se não stou, quero star só, | |
Enfim, quero sempre estar | |
Da maneira que não estou. | |
Ser feliz é ser aquele. | |
E aquele não é feliz, | |
Porque pensa dentro dele | |
E não dentro do que eu quis. | |
A gente faz o que quer | |
Daquilo que não é nada, | |
Mas falha se o não fizer, | |
Fica perdido na estrada. | |
02/07/1931" | |
Cesário Verde,"Manias! | |
O mundo é velha cena ensanguentada, | |
Coberta de remendos, picaresca; | |
A vida é chula farsa assobiada, | |
Ou selvagem tragédia romanesca. | |
Eu sei um bom rapaz, -- hoje uma ossada, -- | |
Que amava certa dama pedantesca, | |
Perversíssima, esquálida e chagada, | |
Mas cheia de jactância quixotesca. | |
Aos domingos a deia já rugosa, | |
Concedia-lhe o braço, com preguiça, | |
E o dengue, em atitude receosa, | |
Na sujeição canina mais submissa, | |
Levava na tremente mão nervosa, | |
O livro com que a amante ia ouvir missa! | |
" | |
Miguel Torga,"Exortação | |
Em nome do teu nome, | |
Que é viril, | |
E leal, | |
E limpo, na concisa brevidade | |
— Homem, lembra-te bem! | |
Sê viril, | |
E leal, | |
E limpo, na concisa condição. | |
Traz à compreensão | |
Todos os sentimentos recalcados | |
De que te sentes dono envergonhado; | |
Leva, dourado, | |
O sol da consciência | |
As íntimas funduras do teu ser, | |
Onde moram | |
Esses monstros que temes enfrentar. | |
Os leões da caverna só devoram | |
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar, | |
" | |
Cecília Meireles,"Romance XXI ou das Idéias | |
A vastidão desses campos. | |
A alta muralha das serras. | |
As lavras inchadas de ouro. | |
Os diamantes entre as pedras. | |
Negros, índios e mulatos. | |
Almocrafes e gamelas. | |
Os rios todos virados. | |
Toda revirada, a terra. | |
Capitães, governadores, | |
padres intendentes, poetas. | |
Carros, liteiras douradas, | |
cavalos de crina aberta. | |
A água a transbordar das fontes. | |
Altares cheios de velas. | |
Cavalhadas. Luminárias. | |
Sinos, procissões, promessas. | |
Anjos e santos nascendo | |
em mãos de gangrena e lepra. | |
Finas músicas broslando | |
as alfaias das capelas. | |
Todos os sonhos barrocos | |
deslizando pelas pedras. | |
Pátios de seixos. Escadas. | |
Boticas. Pontes. Conversas. | |
Gente que chega e que passa. | |
E as idéias. | |
Amplas casas. Longos muros. | |
Vida de sombras inquietas. | |
Pelos cantos da alcovas, | |
histerias de donzelas. | |
Lamparinas, oratórios, | |
bálsamos, pílulas, rezas. | |
Orgulhosos sobrenomes. | |
Intrincada parentela. | |
No batuque das mulatas, | |
a prosápia degenera: | |
pelas portas dos fidalgos, | |
na lã das noites secretas, | |
meninos recém-nascidos | |
como mendigos esperam. | |
Bastardias. Desavenças. | |
Emboscadas pela treva. | |
Sesmarias, salteadores. | |
Emaranhadas invejas. | |
O clero. A nobreza. O povo. | |
E as idéias. | |
E as mobílias de cabiúna. | |
E as cortinas amarelas. | |
Dom José. Dona Maria. | |
Fogos. Mascaradas. Festas. | |
Nascimentos. Batizados. | |
Palavras que se interpretam | |
nos discursos, nas saúdes . . . | |
Visitas. Sermões de exéquias. | |
Os estudantes que partem. | |
Os doutores que regressam. | |
(Em redor das grandes luzes, | |
há sempre sombras perversas. | |
Sinistros corvos espreitam | |
pelas douradas janelas.) | |
E há mocidade! E há prestígio. | |
E as idéias. | |
As esposas preguiçosas | |
na rede embalando as sestas. | |
Negras de peitos robustos | |
que os claros meninos cevam. | |
Arapongas, papagaios, | |
passarinhos da floresta. | |
Essa lassidão do tempo | |
entre imbaúbas, quaresmas, | |
cana, milho, bananeiras | |
e a brisa que o riacho encrespa. | |
Os rumores familiares | |
que a lenta vida atravessam: | |
elefantíase; partos; | |
sarna; torceduras; quedas; | |
sezões; picadas de cobras; | |
sarampos e erisipelas . . . | |
Candombeiros. Feiticeiros. | |
Ungüentos. Emplastos. Ervas. | |
Senzalas. Tronco. Chibata. | |
Congos. Angolas. Benguelas. | |
Ó imenso tumulto humano! | |
E as idéias. | |
Banquetes. Gamão. Notícias. | |
Livros. Gazetas. Querelas. | |
Alvarás. Decretos. Cartas. | |
A Europa a ferver em guerras. | |
Portugal todo de luto: | |
triste Rainha o governa! | |
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro! | |
E sugestões indiscretas: | |
Tão longe o trono se encontra! | |
Quem no Brasil o tivera! | |
Ah, se Dom José II | |
põe a coroa na testa! | |
Uns poucos de americanos, | |
por umas praias desertas, | |
já libertaram seu povo | |
da prepotente Inglaterra! | |
Washington. Jefferson. Franklin. | |
(Palpita a noite, repleta | |
de fantasmas, de presságios . . .) | |
E as idéias. | |
Doces invenções da Arcádia! | |
Delicada primavera: | |
pastoras, sonetos, liras, | |
— entre as ameaças austeras | |
de mais impostos e taxas | |
que uns protelam e outros negam. | |
Casamentos impossíveis. | |
Calúnias. Sátiras. Essa | |
paixão da mediocridade | |
que na sombra se exaspera. | |
E os versos de asas douradas, | |
que amor trazem e amor levam . . . | |
Anarda. Nise. Marília . . . | |
As verdades e as quimeras. | |
Outras leis, outras pessoas. | |
Novo mundo que começa. | |
Nova raça. Outro destino. | |
Planos de melhores eras. | |
E os inimigos atentos, | |
que, de olhos sinistros, velam. | |
E os aleives. E as denúncias. | |
E as idéias. | |
" | |
Pablo Neruda,"Poema LXVI | |
Não te quero senão porque te quero | |
e de querer-te a não querer-te chego | |
e de esperar-te quando não te espero | |
passa meu coração do frio ao fogo. | |
Te quero só porque a ti te quero, | |
te odeio sem fim, e odiando-te te rogo, | |
e a medida de meu amor viageiro | |
é não ver-te e amar-te como um cego. | |
Talvez consumirá a luz de janeiro, | |
seu raio cruel, meu coração inteiro, | |
roubando-me a chave do sossego. | |
Nesta história só eu morro | |
e morrerei de amor porque te quero, | |
porque te quero, amor, a sangue e fogo. | |
(Retirado de: Cem sonetos de amor) | |
" | |
José Régio,"O amor e a morte | |
Canção cruel | |
Corpo de ânsia. | |
Eu sonhei que te prostava, | |
E te enleava | |
Aos meus músculos! | |
Olhos de êxtase, | |
Eu sonhei que em vós bebia | |
Melancolia | |
De há séculos! | |
Boca sôfrega, | |
Rosa brava | |
Eu sonhei que te esfolhava | |
Petala a pétala! | |
Seios rígidos, | |
Eu sonhei que vos mordia | |
Até que sentia | |
Vómitos! | |
Ventre de mármore, | |
Eu sonhei que te sugava, | |
E esgotava | |
Como a um cálice! | |
Pernas de estátua, | |
Eu sonhei que vos abria, | |
Na fantasia, | |
Como pórticos! | |
Pés de sílfide, | |
Eu sonhei que vos queimava | |
Na lava | |
Destas mãos ávidas! | |
Corpo de ânsia, | |
Flor de volúpia sem lei! | |
Não te apagues, sonho! mata-me | |
Como eu sonhei. | |
" | |
Florbela Espanca,"Desejos Vãos | |
Eu queria ser o Mar de altivo porte | |
Que ri e canta, a vastidão imensa! | |
Eu queria ser a Pedra que não pensa, | |
A pedra do caminho, rude e forte! | |
Eu queria ser o sol, a luz intensa | |
O bem do que é humilde e não tem sorte! | |
Eu queria ser a árvore tosca e densa | |
Que ri do mundo vão e até da morte! | |
Mas o mar também chora de tristeza... | |
As árvores também, como quem reza, | |
Abrem, aos céus, os braços, como um crente! | |
E o sol altivo e forte, ao fim de um dia, | |
Tem lágrimas de sangue na agonia! | |
E as pedras... essas... pisa-as toda a gente!..." | |
Álvares de Azevedo,"Último Soneto | |
Já da noite o palor me cobre o rosto, | |
Nos lábios meus o alento desfalece, | |
Surda agonia o coração fenece, | |
E devora meu ser mortal desgosto! | |
Do leito, embalde num macio encosto, | |
Tento o sono reter!... Já esmorece | |
O corpo exausto que o repouso esquece... | |
Eis o estado em que a mágoa me tem posto! | |
O adeus, o teu adeus, minha saudade, | |
Fazem que insano do viver me prive | |
E tenha os olhos meus na escuridade. | |
Dá-me a esperança com que o ser mantive! | |
Volve ao amante os olhos, por piedade, | |
Olhos por quem viveu quem já não vive! | |
" | |
Marina Colasanti,"No Dormitório do Colégio Interno | |
A Lua tinha | |
uma trança longa e negra | |
e dormia na cama | |
junto à minha | |
debaixo da janela. | |
Era asmática a Lua | |
e o ar da noite fria | |
o ar todo ao redor | |
não era suficiente | |
para ela. | |
Eu ia buscar-lhe água, | |
os pés descalços | |
sobre os azulejos | |
nos corredores cheios | |
de fantasmas, | |
e ela se debruçava | |
sobre o copo | |
sorvendo lentos goles | |
de via-láctea. | |
Mas só com a chegada | |
da manhã | |
quando tocava o sino da capela | |
cessava a asma. | |
A luz branca se punha | |
sob a pele | |
e vinha então o sol | |
tomar-lhe a boca. | |
In: COLASANTI, Marina. Rota da Colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 34" | |
Alexandre O'Neill,"Cão | |
Cão passageiro, cão estrito | |
Cão rasteiro cor de luva amarela, | |
Apara lápis, fraldiqueiro, | |
Cão liquefeito, cão estafado | |
Cão de gravata pendente, | |
Cão de orelhas engomadas, | |
de remexido rabo ausente, | |
Cão ululante, cão coruscante, | |
Cão magro, tétrico, maldito, | |
a desfazer-se num ganido, | |
a refazer-se num latido, | |
cão disparado: cão aqui, | |
cão ali, e sempre cão. | |
Cão marrado, preso a um fio de cheiro, | |
cão a esburgar o osso | |
essencial do dia a dia, | |
cão estouvado de alegria, | |
cão formal de poesia, | |
cão-soneto de ão-ão bem martelado, | |
cão moido de pancada | |
e condoído do dono, | |
cão: esfera do sono, | |
cão de pura invenção, | |
cão pré fabricado, | |
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija, | |
cão de olhos que afligem, | |
cão problema... | |
Sai depressa, ó cão, deste poema! | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Não sei | |
Não sei porque diabo escolheste | |
janeiro para morrer: a terra | |
está tão fria. | |
É muito tarde para as lentas | |
narrativas do coração, | |
o vento continua | |
a tarefa das folhas: | |
cobre o chão de esquecimento. | |
Eu sei:tu querias durar. | |
Pelo menos durar tanto como o tronco | |
da oliveira que teu avô | |
tinha no quintal.Paciência, | |
querido,também Mozart morreu. | |
Só a morte é imortal." | |
Carlos Drummond de Andrade,"Cantiga de viúvo | |
A noite caiu na minh'alma, | |
fiquei triste sem querer. | |
Uma sombra veio vindo, | |
veio vindo, me abraçou. | |
Era a sombra de meu bem | |
que morreu há tanto tempo. | |
Me abraçou com tanto amor | |
me apertou com tanto fogo | |
me beijou, me consolou. | |
Depois riu devagarinho, | |
me disse adeus com a cabeça | |
e saiu. Fechou a porta. | |
Ouvi seus passos na escada. | |
Depois mais nada... | |
acabou. | |
" | |
Cláudio Manuel da Costa,"Temei, Penhas | |
Destes penhascos fez a natureza | |
O berço em que nasci: oh! quem cuidara | |
Que entre penhas tão duras se criara | |
Uma alma terna, um peito sem dureza! | |
Amor, que vence os tigres, por empresa | |
Tomou logo render-me; ele declara | |
Contra meu coração guerra tão rara | |
Que não me foi bastante a fortaleza. | |
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano | |
A que dava ocasião minha brandura, | |
Nunca pude fugir ao cego engano; | |
Vós que ostentais a condição mais dura, | |
Temei, penhas, temei: que Amor tirano | |
Onde há mais resistência mais se apura. | |
" | |
Luís de Camões,"Porque quereis, Senhora, que ofereça | |
Porque quereis, Senhora, que ofereça | |
A vida a tanto mal como padeço? | |
Se vos nasce do pouco que mereço, | |
Bem por nascer está quem vos mereça. | |
Sabei que, enfim, por muito que vos peça, | |
Que posso merecer quanto vos peço; | |
Que não consente Amor que em baixo preço | |
Tão alto pensamento se conheça. | |
Assi que a paga igual de minhas dores | |
Com nada se restaura; mas deveis-ma, | |
Por ser capaz de tantos desfavores. | |
E se o valor de vossos servidores | |
Houver de ser igual convosco mesma, | |
Vós só convosco mesma andai de amores." | |
Reinaldo Ferreira,"A Fernando Pessoa (ele mesmo) | |
Cada verso é uma esfinge ter falado. | |
Mas quanto mais explícito ela o diz, | |
Mais tudo permanece inexplicado | |
E menos se apreende o que ela quis. | |
Erra um sussurro, tão etéreo e alado | |
Que nem mesmo silêncio o contradiz. | |
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado | |
Na busca dum segredo sem raiz, | |
É como se em pensar - um descampado - | |
Passasse fugitiva e intensamente | |
O Tempo todo inteiro projectado | |
E a sombra ali marcasse, na corrente | |
Do nada para o nada, inda passado | |
E já futuro, a ficção do presente. | |
" | |
Florbela Espanca,"Lágrimas Ocultas | |
Se me ponho a cismar em outras eras | |
Em que ri e cantei, em que era q'rida, | |
Parece-me que foi noutras esferas, | |
Parece-me que foi numa outra vida... | |
E a minha triste boca dolorida | |
Que dantes tinha o rir das Primaveras, | |
Esbate as linhas graves e severas | |
E cai num abandono de esquecida! | |
E fico, pensativa, olhando o vago... | |
Toma a brandura plácida dum lago | |
O meu rosto de monja de marfim... | |
E as lágrimas que choro, branca e calma, | |
Ninguém as vê brotar dentro da alma! | |
Ninguém as vê cair dentro de mim!" | |
Herberto Helder,"O amor em visita | |
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra | |
e seu arbusto de sangue. Com ela | |
encantarei a noite. | |
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. | |
Seus ombros beijarei, a pedra pequena | |
do sorriso de um momento. | |
Mulher quase incriada, mas com a gravidade | |
de dois seios, com o peso lúbrico e triste | |
da boca. Seus ombros beijarei. | |
Cantar? Longamente cantar. | |
Uma mulher com quem beber e morrer. | |
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave | |
o atravessar trespassada por um grito marítimo | |
e o pão for invadido pelas ondas - | |
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. | |
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento | |
de alegria e de impudor. | |
Seu corpo arderá para mim | |
sobre um lençol mordido por flores com água. | |
Em cada mulher existe uma morte silenciosa. | |
E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos, | |
os bordões da melodia, | |
a morte sobe pelos dedos,navega o sangue, | |
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. | |
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob | |
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, | |
mulher de pés no branco, transportadora | |
da morte e da alegria. | |
Dai-me uma mulher tão nova como a resina | |
e o cheiro da terra. | |
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. | |
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, | |
cantarei seu sorriso ardendo, | |
suas mamas de pura substância, | |
a curva quente dos cabelos. | |
Beberei sua boca, para depois cantar a morte | |
e a alegria da morte. | |
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro | |
pescoço de planta, | |
onde uma chama comece a florir o espírito. | |
À tona da sua face se moverão as águas, | |
dentro da sua face estará a pedra da noite. | |
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. | |
Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela | |
despenhada de sua órbita viva. | |
- Porém, tu sempre me incendeias. | |
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite | |
imagem pungente | |
com seu deus esmagado e ascendido. | |
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. | |
Entontece meu hálito com a sombra, | |
tua boca penetra a minha voz como a espada | |
se perde no arco. | |
E quando gela a mãe em sua distãncia amarga, a lua | |
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo | |
se desfibra - invento para ti a música, a loucura, | |
e o mar. | |
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, | |
a inspiração. | |
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. | |
Vou para ti com a beleza partida, | |
os ombros violados, | |
o sangue penetrado de paredes nuas. | |
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos | |
se transfiguram, tuas mãos descobrem | |
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça | |
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou | |
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo - | |
eu sou a beleza. | |
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem | |
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada | |
beleza. | |
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti | |
que me vem o fogo. | |
Não há gesto ou verdade onde não dormissem | |
tua sombra e loucura, | |
não há vindima ou água | |
em que não estivesses pousando o silêncio criador. | |
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos | |
originais. | |
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra | |
a carne transcendente. E em ti | |
principiam o mar e o mundo. | |
Minha memória perde em sua espuma | |
o sinal e a vinha. | |
Plantas, bichos, águas cresceram como religião | |
sobre a vida - e eu nisso demorei | |
meu frágil instante. Porém, | |
teu silêncio de fogo e leite repõe a força | |
maternal, e tudo circula entre teu sopro | |
e teu amor. As coisas nascem de ti | |
como as luas nascem dos campos fecundos, | |
os instantes começam da tua oferenda | |
como as guitarras tiram seu início da música nocturna. | |
Mais inocente que as árvores, mais vasta | |
que a pedra e a morte, | |
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, | |
tinge a aurora pobre, | |
insiste de violência a imobilidade aquática. | |
E os astros quebram-se em luz sobre | |
as casas, a cidade arrebata-se, | |
os bichos erguem seus olhos dementes, | |
arde a madeira - para que tudo cante | |
por teu poder angélico e fechado. | |
Com minha face cheia de teu espanto e beleza, | |
eu sei quanto és o íntimo pudor | |
e a água inicial de outros sentidos. | |
Começa o tempo onde a mulher começa, | |
é sua carne que do minuto obscuro e morto | |
se devolve à luz. | |
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras | |
com uma imagem. | |
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito | |
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade | |
uma ideia de pedra e de brancura. | |
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, | |
que te alimentas de desejos puros. | |
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, | |
a sombra canta baixo. | |
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, | |
onde a beleza que transportas como um peso árduo | |
se quebra em glória junto ao meu flanco | |
martirizado e vivo. | |
- Para consagração da noite erguerei um violino, | |
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada | |
darei minha voz confundida com a tua. | |
Oh teoria dos instintos, dom de inocência, | |
taça para beber junto à perturbada intimidade | |
em que me acolhes. | |
Começa o tempo na insuportável ternura | |
com que te adivinho, o tempo onde | |
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde | |
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida | |
ingénua e cara, o que pressente o coração | |
engasta seu contorno de lume ao longe. | |
Bom será o tempo, bom será o espírito, | |
boa será nossa carne presa e morosa. | |
- Começa o tempo onde se une a vida | |
à nossa gratidão. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata | |
NA" | |
Al Berto,"Clamor | |
Tudo bem ao chamamento | |
Noite após noite o que dissemos e | |
O que nunca diremos - a viagem | |
Com uma giesta de algodão presa nos cabelos e | |
A sensação fresca de um sulco de aves na pele | |
Tudo vem ao chamamento- os lobos | |
Os anões as fadas as putas as bichas e | |
A redenção dos maus momentos - enquanto te barbeias | |
Vês no espelho o homem | |
Cuja solidão atravessou quase cinco décadas e | |
Está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse | |
Da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez | |
Num deslize perto da asa do nariz | |
Não sei quem é - sei porém que vai afogar-se | |
Naquela superfície clara quando dela se afastar e | |
Abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo | |
Vem ao chamamento | |
Por dentro do clamor da noite. | |
" | |
Luís de Camões,"Sempre a Razão vencida foi de Amor | |
Sempre a Razão vencida foi de Amor; | |
Mas, porque assim o pedia o coração, | |
Quis Amor ser vencido da Razão. | |
Ora que caso pode haver maior! | |
Novo modo de morte e nova dor! | |
Estranheza de grande admiração, | |
Que perde suas forças a afeição, | |
Por que não perca a pena o seu rigor. | |
Pois nunca houve fraqueza no querer, | |
Mas antes muito mais se esforça assim | |
Um contrário com outro por vencer. | |
Mas a Razão, que a luta vence, enfim, | |
Não creio que é Razão; mas há-de ser | |
Inclinação que eu tenho contra mim. | |
" | |
Herberto Helder,"Se houvesse degraus na terra | |
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, | |
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. | |
No céu podia tecer uma nuvem toda negra. | |
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, | |
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse. | |
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, | |
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. | |
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, | |
e a fímbria do mar, e o meio do mar, | |
e vermelhas se volveram as asas da águia | |
que desceu para beber, | |
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas. | |
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo. | |
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata. | |
Correram os rapazes à procura da espada, | |
e as raparigas correram à procura da mantilha, | |
e correram, correram as crianças à procura da maçã. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Natal | |
De repente o sol raiou | |
E o galo cocoricou: | |
— Cristo nasceu! | |
O boi, no campo perdido | |
Soltou um longo mugido: | |
— Aonde? Aonde? | |
Com seu balido tremido | |
Ligeiro diz o cordeiro: | |
— Em Belém! Em Belém! | |
Eis senão quando, num zurro | |
Se ouve a risada do burro: | |
— Foi sim que eu estava lá! | |
E o papagaio que é gira | |
Pôs-se a falar: — É mentira! | |
Os bichos de pena, em bando | |
Reclamaram protestando. | |
O pombal todo arrulhava: | |
— Cruz credo! Cruz credo! | |
Brava | |
A arara a gritar começa: | |
— Mentira! Arara. Ora essa! | |
— Cristo nasceu! canta o galo. | |
— Aonde? pergunta o boi. | |
— Num estábulo! — o cavalo | |
Contente rincha onde foi. | |
Bale o cordeiro também: | |
— Em Belém! Mé! Em Belém! | |
E os bichos todos pegaram | |
O papagaio caturra | |
E de raiva lhe aplicaram | |
Uma grandíssima surra. | |
" | |
Fernando Pessoa,"O amor é que é essencial. | |
O amor é que é essencial. | |
O sexo é só um acidente. | |
Pode ser igual | |
Ou diferente. | |
O homem não é um animal: | |
É uma carne inteligente, | |
Embora às vezes doente. | |
05/04/1935" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Epitáfio para o Séc XX | |
1. Aqui jaz um século | |
onde houve duas ou três guerras | |
mundiais e milhares | |
de outras pequenas | |
e igualmente bestiais. | |
2. Aqui jaz um século | |
onde se acreditou | |
que estar à esquerda | |
ou à direita | |
eram questões centrais. | |
3. Aqui jaz um século | |
que quase se esvaiu | |
na nuvem atômica. | |
Salvaram-no o acaso | |
e os pacifistas | |
com sua homeopática | |
atitude | |
— nux-vômica. | |
4. Aqui jaz o século | |
que um muro dividiu. | |
Um século de concreto | |
armado, canceroso, | |
drogado, empestado, | |
que enfim sobreviveu | |
às bactérias que pariu. | |
5. Aqui jaz um século | |
que se abismou | |
com as estrelas | |
nas telas | |
e que o suicídio | |
de supernovas | |
contemplou. | |
Um século filmado | |
que o vento levou. | |
6.Aqui jaz um século | |
semiótico e despótico, | |
que se pensou dialético | |
e foi patético e aidético. | |
um século que decretou | |
a morte de Deus, | |
a morte da história, | |
a morte do homem, | |
em que se pisou na Lua | |
e se morreu de fome. | |
7.Aqui jaz um século | |
que opondo classe a classe | |
quase se desclassificou. | |
Século cheio de anátemas | |
e antenas, sibérias e gestapos | |
e ideológicas safenas; | |
século tecnicolor | |
que tudo transplantou | |
e o branco, do negro, | |
a custo aproximou. | |
8. Aqui jaz um século | |
que se deitou no divã. | |
Século narciso & esquizo, | |
que não pôde computar | |
seus neologismos. | |
Século vanguardista, | |
marxista, guerrilheiro, | |
terrorista, freudiano, | |
proustiano, joyciano, | |
borges-kafkiano. | |
Século de utopias e hippies | |
que caberiam num chip. | |
9. Aqui jaz um século | |
que se chamou moderno | |
e olhando presunçoso | |
o passsado e o futuro | |
julgou-se eterno; | |
século que de si | |
fez tanto alarde | |
e, no entanto, | |
— já vai tarde. | |
(...) | |
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História" | |
Gregório de Matos,"Ao Braço do Mesmo Menino Jesus Quando Apareceu | |
O todo sem a parte não é todo, | |
A parte sem o todo não é parte, | |
Mas se a parte o faz todo, sendo parte, | |
Não se diga, que é parte, sendo todo. | |
Em todo o Sacramento está Deus todo, | |
E todo assiste inteiro em qualquer parte, | |
E feito em partes todo em toda a parte, | |
Em qualquer parte sempre fica o todo. | |
O braço de Jesus não seja parte, | |
Pois que feito Jesus em partes todo, | |
Assiste cada parte em sua parte. | |
Não se sabendo parte deste todo, | |
Um braço, que lhe acharam, sendo parte, | |
Nos disse as partes todas deste todo. | |
In: MATOS, Gregório de. Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992" | |
Ruy Belo,"VAT 69 | |
Era depois da morte herberto helder | |
Ia fazer três anos que morrêramos | |
três anos dia a dia descontados no relógio | |
da torre que de sombra nos cobriu a infância: | |
rodas no adro - gira a borboleta que se atira ao ar | |
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas | |
nas cabeças nos ninhos nas vidraças | |
Foi quando verdadeiramente começou | |
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas | |
na mina onde molhámos nossos jovens pés | |
e tirámos retratos pra morrer mais uma vez | |
Os nossos filhos - nós outra vez crianças - | |
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas | |
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal | |
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado | |
Era a seguir à morte meu poeta | |
era na meninice havia festa e na sala da entrada | |
pensávamos na morte - nunca mais - pela primeira vez | |
Trincávamos cheirávamos maças no muro sobre a praia | |
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos | |
Era nas férias havia o mar e íamos à missa | |
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós | |
-orate frates - ou íamos ao cemitério apesar do catitinha | |
Era depois da morte sobre a plana infância | |
o primeiro natal o cheiro do jornal | |
lido na adega ou na casa do forno | |
sentados pensativos sobre a terra húmida | |
Era na infância o sol caía enquanto água corria | |
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras | |
calcados prontamente pelas botas | |
soprava o vento e vinha a moinha da eira | |
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira | |
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores | |
Havia casamentos o meu pai falava | |
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças | |
E os registos mistério tempo da prenhez | |
Era talvez no outono havia asma | |
havia a festa da azeitona havia os fritos | |
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas | |
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia | |
Era a primavera o rio rápido subia | |
os barcos navegavam entre a vinha | |
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se | |
num espesso e branco nevoeiro de algodão | |
noite dos candeeiros sombras nas paredes | |
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela | |
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe | |
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel | |
a sesta a monda das mulheres | |
a queda do bizarro exposto na igreja | |
isso e o almoço a saber mal | |
quando vinham da escola pra saber significados | |
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens | |
Eram as festas era o roubo dos melões | |
era a menstruação oculta da criada | |
Era talvez em tempos de tormenta | |
havia ferros entre a palha por baixo da galinha | |
que chocava os ovos dentro de um velho cesto | |
eram as nossas casa em adobe | |
e era o carnaval os bailes os cortejos | |
Íamos para a praia e eu lia camilo | |
ouvia o mar bater sem conseguir compreender | |
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio | |
Era o tempo dos primeiros amores | |
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia | |
o trecho que me competia entre as amadas raparigas | |
A casa não ficava muito longe dos montes | |
não havia a cidade nem os outros | |
punham ainda em causa o meu reino de deus | |
senhor de tudo o que depois não tive | |
Era depois da morte ou era antes da morte? | |
Mas haveria a morte verdadeiramente? | |
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava | |
se tudo aquilo tinha acontecido | |
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível | |
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias | |
Eram as folhas novas eram os perdigotos | |
saídos não há muito ainda da casca | |
Era era tanta coisa | |
Seria realmente após a morte herberto helder" | |
Machado de Assis,"A Mosca Azul | |
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, | |
Filha da China ou do Indostão. | |
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada. | |
Em certa noite de verão. | |
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, | |
Refulgindo ao clarão do sol | |
E da lua — melhor do que refulgiria | |
Um brilhante do Grão-Mogol. | |
Um poleá que a viu, espantado e tristonho, | |
Um poleá lhe perguntou: | |
— ""Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, | |
Dize, quem foi que te ensinou?"" | |
Então ela, voando e revoando, disse: | |
— ""Eu sou a vida, eu sou a flor | |
Das graças, o padrão da eterna meninice, | |
E mais a glória, e mais o amor"". | |
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo | |
E tranqüilo, como um faquir, | |
Como alguém que ficou deslembrado de tudo, | |
Sem comparar, nem refletir. | |
Entre as asas do inseto a voltear no espaço, | |
Uma coisa me pareceu | |
Que surdia, com todo o resplendor de um paço, | |
Eu vi um rosto que era o seu. | |
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, | |
Que tinha sobre o colo nu | |
Um imenso colar de opala, e uma safira | |
Tirada ao corpo de Vixnu. | |
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, | |
Aos pés dele, no liso chão, | |
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas, | |
E todo o amor que têm lhe dão. | |
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios, | |
Com grandes leques de avestruz, | |
Refrescam-lhes de manso os aromados seios. | |
Voluptuosamente nus. | |
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos, | |
E enfim as páreas triunfais | |
De trezentas nações, e os parabéns unidos | |
Das coroas ocidentais. | |
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto | |
Das mulheres e dos varões, | |
Como em água que deixa o fundo descoberto, | |
Via limpos os corações. | |
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca. | |
Afeita a só carpintejar, | |
Com um gesto pegou na fulgurante mosca, | |
Curioso de a examinar. | |
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. | |
E, fechando-a na mão, sorriu | |
De contente, ao pensar que ali tinha um império, | |
E para casa se partiu. | |
Alvoroçado chega, examina, e parece | |
Que se houve nessa ocupação | |
Miudamente, como um homem que quisesse | |
Dissecar a sua ilusão. | |
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, | |
Rota, baça, nojenta, vil | |
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela | |
Visão fantástica e sutil. | |
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo | |
Na cabeça, com ar taful | |
Dizem que ensandeceu e que não sabe como | |
Perdeu a sua mosca azul. | |
" | |
Jorge de Sena,"É Tarde, Muito Tarde da Noite | |
É tarde, muito tarde da noite, | |
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente, | |
voltei, ouço musica, estou terrivelmente cansado. | |
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade | |
é o que pode dar a medida do meu cansaço. | |
Como estou cansado. De Ter trabalhado muito, | |
ter feito um grande esforço para depois | |
interessar-me por outras pessoas | |
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas. | |
É tarde, devia Ter-me deitado mais cedo, | |
há muito que devera estar a dormir. | |
Mas estou acordado com o meu cansaço | |
e a ouvir música. Desfeito de cansaço | |
incapaz de pensar, incapaz de olhar, | |
totalmente incapaz até de repousar á força de | |
cansaço. Um cansaço terrível | |
da vida, das pessoas, de mim, de tudo. | |
E fumo cigarro após cigarro no desespero | |
de estar tão cansado. E ouço música | |
(por sinal a sonata para violino e piano | |
de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder) | |
num puro cansaço de dissolver-me | |
como Brunhilda ou como Isolda | |
no que não aceitarei nunca | |
l amor che muove il sole e l altre stelle. | |
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado, | |
e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja | |
dissolução no espaço e no tempo em que vivo | |
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas | |
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno. | |
Eu estou cansado de não me dissolver | |
continuamente em cada instante da vida, | |
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo. | |
Qu ai-je á faire de l eternel? I live here. | |
Non abbiamo confusion. E aqui é que | |
morrerei danado de cansaço, como hoje estou | |
tão terrivelmente cansado." | |
Cecília Meireles,"Suavíssima | |
Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
No céu de outono, anda um langor final de pluma | |
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente . . . | |
Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . . | |
Fica-se longe, quase morta, como ausente . . . | |
Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma . . . | |
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente, | |
De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma . . . | |
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
A alma das flores, suave e tácita, perfuma | |
A solitude nebulosa e irreal do ambiente . . . | |
Os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
Tão para lá! . . . No fim da tarde . . . além da bruma . . . | |
E silenciosos, como alguém que se acostuma | |
A caminhar sobre penumbras, mansamente, | |
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma . . . | |
Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . . | |
E os galos cantam, no crepúsculo dormente . . . | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Quase nada | |
O amor | |
é uma ave a tremer | |
nas mãos de uma criança. | |
Serve-se de palavras | |
por ignorar | |
que as manhãs mais limpas | |
não têm voz. | |
" | |
Marina Colasanti,"Escuros Tempos | |
As noites | |
nas cidades da guerra | |
eram mudas e escuras | |
como os campos | |
apagadas as ruas | |
as praças quedos lagos | |
falsa ausência | |
deitava-se nas sombras. | |
uma ave nos céus | |
chamada morte | |
caçava guiada pela luz. | |
Cuidado crianças com a lâmpada acesa | |
mulheres não esqueçam o pano negro | |
diante das janelas | |
basta uma friesta | |
para apagar a vida. | |
Quando a guerra acabou | |
na minha terra | |
janelas continuaram pintadas de preto | |
esquecimento ou luto | |
os vidros | |
como almas | |
precisaram de um tempo | |
para deixar passar a claridade. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"7 | |
Eu não sou eu nem sou o outro, | |
Sou qualquer coisa de intermédio: | |
Pilar da ponte de tédio | |
Que vai de mim para o Outro. | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Indagação | |
Como é o corpo? | |
Como é o corpo da mulher? | |
Onde começa: aqui no chão | |
Ou na cabeleira, e vem descendo? | |
Como é a perna subindo e vai subindo | |
Até onde? | |
Vê-la num corisco é uma dor | |
No peito, a terra treme. | |
Diz-que na mulher tem partes linda | |
E nunca se revelam. Maciezas | |
Redondas. Como fazem | |
Nuas, na bacia, se lavando, | |
Para não se verem nuas nuas nuas? | |
Por que dentro do vestido muitos outros | |
vestidos e brancuras e engomados, | |
Até onde? Quando é que já sem roupa | |
É ela mesma, só mulher? E como que faz | |
Quando que faz | |
Se é que faz | |
O que fazemos todos porcamente? | |
" | |
Eugénio de Andrade,"O amigo | |
Não voltará-o que dele me ficoué como no inverno entre cortinasde chuva um tímido fio de sol:ilumina mas não aquece as mãos. de Pequeno Formato" | |
Vicente de Carvalho,"Palavras ao Mar | |
Mar, belo mar selvagem | |
Das nossas praias solitárias! Tigre | |
A que as brisas da terra o sono embalam, | |
A que o vento do largo erriça o pêlo! | |
Junto da espuma com que as praias bordas, | |
Pelo marulho acalentada, à sombra | |
Das palmeiras que arfando se debruçam | |
Na beirada das ondas — a minha alma | |
Abriu-se para a vida como se abre | |
A flor da murta para o sol do estio. | |
Quando eu nasci, raiava | |
O claro mês das garças forasteiras; | |
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros, | |
Nadando em luz na oscilação das ondas, | |
Desenrolava a primavera de ouro: | |
E as leves garças, como folhas soltas | |
Num leve sopro de aura dispersadas, | |
Vinham do azul do céu turbilhonando | |
Pousar o vôo à tona das espumas... | |
É o tempo em que adormeces | |
Ao sol que abrasa: a cólera espumante, | |
Que estoura e brame sacudindo os ares, | |
Não os sacode mais, nem brame e estoura; | |
Apenas se ouve, tímido e plangente, | |
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias, | |
Langue, numa carícia de amoroso, | |
As largas ondas marulhando estendes... | |
Ah! vem daí por certo | |
A voz que escuto em mim, trêmula e triste, | |
Este marulho que me canta na alma, | |
E que a alma jorra desmaiado em versos; | |
De ti, de ti unicamente, aquela | |
Canção de amor sentida e murmurante | |
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam, | |
Pela manhã de sol dos meus vinte anos. | |
Ó velho condenado | |
Ao cárcere das rochas que te cingem! | |
Em vão levantas para o céu distante | |
Os borrifos das ondas desgrenhadas. | |
Debalde! O céu, cheio de sol se é dia, | |
Palpitante de estrelas quando é noute, | |
Paira, longínquo e indiferente, acima | |
Da tua solidão, dos teus clamores... | |
Condenado e insubmisso | |
Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo | |
Uma alma sobre a qual o céu resplende | |
— Longínquo céu — de um esplendor distante. | |
Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas, | |
Meu tumultuoso coração revolto | |
Levanta para o céu, como borrifos, | |
Toda a poeira de ouro dos meus sonhos. | |
(...) | |
Imagem - 00160009 | |
Publicado no livro Poemas e Canções (1908). | |
In: CARVALHO, Vicente de. Poemas e canções. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 196" | |
Marina Colasanti,"Corpo adentro | |
Teu corpo é canoa | |
em que desço | |
vida abaixo | |
morte acima | |
procurando o naufrágio | |
me entregando à deriva. | |
Teu corpo é casulo | |
de infinitas sedas | |
onde fio | |
me afio e enfio | |
invasor recebido | |
com licores. | |
Teu corpo é pele exata para o meu | |
pena de garça | |
brilho de romã | |
aurora boreal | |
do longo inverno. | |
" | |
Nuno Júdice,"Princípios | |
Podíamos saber um pouco mais | |
da morte. Mas não seria isso que nos faria | |
ter vontade de morrer mais | |
depressa. | |
Podíamos saber um pouco mais | |
da vida. Talvez não precisássemos de viver | |
tanto, quando só o que é preciso é saber | |
que temos de viver. | |
Podíamos saber um pouco mais | |
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar | |
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou | |
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada | |
sabemos do amor. | |
" | |
Carlos Alberto Pessoa Rosa,"Tertúlia erótica | |
chula | |
boceta tem o clitóris no b | |
a uretra no c | |
e a vagina no a | |
não | |
solta nenhum rapé | |
mas é cheia | |
de pastilhas e docinhos literários | |
guloseimas | |
que somente um poeta aprendeu | |
a cultuar | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Não quero ser o último a comer-te | |
Não quero ser o último a comer-te. | |
Se em tempo não ousei, agora é tarde. | |
Nem sopra a flama antiga nem beber-te | |
aplacaria sede que não arde | |
em minha boca seca de querer-te, | |
de desejar-te tanto e sem alarde, | |
fome que não sofria padecer-te | |
assim pasto de tantos, e eu covarde | |
a esperar que limpasses toda a gala | |
que por teu corpo e alma ainda resvala, | |
e chegasses, intata, renascida, | |
para travar comigo a luta extrema | |
que fizesse de toda a nossa vida | |
um chamejante, universal poema. | |
" | |
Olavo Bilac,"A Velhice | |
Olha estas velhas árvores, mais belas | |
Do que as árvores moças, mais amigas, | |
Tanto mais belas quanto mais antigas, | |
Vencedoras da idade e das procelas... | |
O homem, a fera e o inseto, à sombra delas | |
Vivem, livres da fome e de fadigas: | |
E em seus galhos abrigam-se as cantigas | |
E os amores das aves tagarelas. | |
Não choremos, amigo, a mocidade! | |
Envelheçamos rindo. Envelheçamos | |
Como as árvores fortes envelhecem, | |
Na glória de alegria e da bondade, | |
Agasalhando os pássaros nos ramos, | |
Dando sombra e consolo aos que padecem! | |
" | |
Florbela Espanca,"Eu | |
Até agora eu não me conhecia. | |
Julgava que era Eu e eu não era | |
Aquela que em meus versos descrevera | |
Tão clara como a fonte e como o dia. | |
Mas que eu não era eu não o sabia | |
E, mesmo que o soubesse, não o dissera... | |
Olhos fitos em rútila quimera | |
Andava atrás de mim... e não me via! | |
Andava a procurar-me - pobre louca! - | |
E achei o meu olhar no teu olhar, | |
E a minha boca sobre a tua boca! | |
E esta ânsia de viver, que nada acalma, | |
É a chama da tua alma a esbrasear | |
As apagadas cinzas da minha alma! | |
" | |
Ulisses Tavares,"Biografia | |
quando sozinho, sofro. | |
com gente, finjo. | |
se amado, fujo. | |
amante, disfarço. | |
permanecendo, inquieto. | |
calado, penso. | |
pensando, calo. | |
tocado, tremo. | |
tocando, recuo. | |
vencedor, desinteresso. | |
vencido, odeio. | |
quase morto, | |
vivo assustado. | |
quase vivo, | |
morro de medo. | |
In: TAVARES, Ulisses. O eu entre nós. São Paulo: Núcleo Pindaíba Edições e Debates, 1979. (Coleção PF)" | |
Cacaso,"Terceiro Amor | |
O primeiro amor já passou | |
o segundo amor já passou | |
como passam os afluentes | |
como passam as correntes | |
que desencontram do mar | |
Como qualquer atitude | |
também passa a juventude | |
que nem findou de chegar | |
O primeiro amor já passou | |
o segundo amor já passou | |
como passam os espelhos | |
como passam os conselhos | |
ilusões de pedra e cal | |
Como passam os perigos | |
e tantos muitos amigos | |
sem deixar nenhum sinal | |
O primeiro amor já passou | |
o segundo amor já passou | |
como passam as gaivotas | |
as vitórias as derrotas | |
fantasias carnavais | |
as inocências perdidas | |
como passam avenidas | |
corredores temporais | |
A correnteza dos rios | |
como passam os navios | |
que a gente acena do cais | |
In: CACASO. Mar de mineiro: poemas e canções. Fotos de Pedro de Moraes. Il. Malena Barreto. Rio de Janeiro: Grafit Gráf. e Impressos, 1982. Poema integrante da série Papos de Anjo da Guarda. | |
NOTA: Música de Francis Hime. Referência ao poema ""Consolo na Praia"", do livro A ROSA DO POVO (1945), de Carlos Drummond de Andrad" | |
Fernando Pessoa,"O PESO DE HAVER O MUNDO | |
O peso de haver o mundo | |
Passa no sopro de aragem | |
Que um momento o levantou, | |
Um vago anseio de viagem | |
Que o coração me toldou. | |
Será que em seu movimento | |
A brisa lembre a partida | |
Ou que a largueza do vento | |
Lembre o ar livre da ida? | |
Não sei, mas subitamente | |
Sinto a tristeza de estar | |
O sonho triste que há rente | |
Entre sonhar e sonhar." | |
Al Berto,"Lisboa | |
por trás dos muros dacidade | |
no seu coração profundo de alicerces | |
de argilas ede sísmicos arroios - cresce uma voz | |
que sobe efende a brandura das casas | |
da escrita dosenumeráveis povos quase | |
nada resta - deitas-te exausto nalâmina da lua | |
sem saberes que o tejo te corrói e tesuprime | |
de todas as idades da Europa | |
mais além -para os lados do corpo - permanece | |
a tosse doscacilheiros os olhos revirados | |
dos mendigos - o tecto ondeum navio | |
nos separa de um vácuo alimentado asoro | |
plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar | |
dequem nos olha contra um céu desesperado - jardim | |
deiris açucenas palmeiras cobertas de rocio e | |
a ponteque nos leva aos campos do sul - lisboa | |
lugar derradeiro do riso | |
que já não te pode salvardo cemitério dos prazeres | |
emorres | |
carregado de tristezas e de mistérios -morres | |
algures | |
sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo | |
noinferno marítimo das aves" | |
Artur de Azevedo,"Velha Anedota | |
Tertuliano, frívolo peralta, | |
Que foi um paspalhão desde fedelho, | |
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho, | |
Tipo que, morto, não faria falta; | |
Lá um dia deixou de andar à malta, | |
E, indo à casa do pai, honrado velho, | |
A sós na sala, diante de um espelho, | |
À própria imagem disse em voz bem alta: | |
— Tertuliano, és um rapaz formoso! | |
És simpático, és rico, és talentoso! | |
Que mais no mundo se te faz preciso? — | |
Penetrando na sala, o pai sisudo, | |
Que por trás da cortina ouvira tudo, | |
Severamente respondeu: — Juízo. — | |
In: AZEVEDO, Artur. Sonetos e peças líricas. Pref. Julio de Freitas J. Rio de Janeiro: Garnier, s.d" | |
Alice Ruiz,"boca da noite | |
boca da noite | |
na calada em silêncio | |
grandes lábios | |
se abrem em sim | |
In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.16. (Cantadas literárias, 24)" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Esperança | |
Esperança: | |
isto de sonhar bom para diante | |
eu fi-lo perfeitamente, | |
Para diante de tudo foi bom | |
bom de verdade | |
bem feito de sonho | |
podia segui-lo como realidade | |
Esperança: | |
isto de sonhar bom para diante | |
eu sei-o de cor. | |
Até reparo que tenho só esperança | |
nada mais do que esperança | |
pura esperança | |
esperança verdadeira | |
que engana | |
e promete | |
e só promete. | |
Esperança: | |
pobre mãe louca | |
que quer pôr o filho morto de pé? | |
Esperança | |
único que eu tenho | |
não me deixes sem nada | |
promete | |
engana | |
engano que seja | |
engana | |
não me deixes sozinho | |
esperança. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"A Galinha-DAngola | |
Coitada | |
Da galinha- | |
DAngola | |
Não anda | |
Regulando | |
Da bola | |
Não pára | |
De comer | |
A matraca | |
E vive | |
A reclamar | |
Que está fraca: | |
— ""Tou fraca! Tou fraca!"" | |
" | |
Florbela Espanca,"Poetas | |
Ai as almas dos poetas | |
Não as entende ninguém; | |
São almas de violetas | |
Que são poetas também. | |
Andam perdidas na vida, | |
Como as estrelas no ar; | |
Sentem o vento gemer | |
Ouvem as rosas chorar! | |
Só quem embala no peito | |
Dores amargas e secretas | |
É que em noites de luar | |
Pode entender os poetas | |
E eu que arrasto amarguras | |
Que nunca arrastou ninguém | |
Tenho alma pra sentir | |
A dos poetas tarnbém! | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Elegia 1938 | |
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, | |
onde as formas e as nações não encerram nenhum exemplo. | |
Praticas laboriosamente os gestos universais, | |
sentes calor e frio, falta dinheiro, fome e desejo sexual. | |
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, | |
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. | |
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze | |
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. | |
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra | |
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. | |
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina | |
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. | |
Caminhas entre mortos e com eles conversas | |
sobre coisas do tempo futuro e negócio do espírito. | |
A literatura estragou tuas melhores horas de amor. | |
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear. | |
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota | |
e adiar para outro século a felicidade coletiva. | |
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição | |
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. | |
" | |
Al Berto,"eras novo ainda | |
mal sabia reconhecer os teus própios erros | |
e o uso violento que de noite eu fazia deles | |
esta cama de minerais acesos | |
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo | |
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca | |
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido | |
onde a memória te imobilizou | |
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis | |
surpreendo-te quando me surpreendes | |
pela janela espio a paisagem destruída | |
e o coração triste dos pássaros treme | |
quando escrevo mar | |
o mar todo entra pela janela | |
onde debruço a noite do rosto tocado...me despeço" | |
José Régio,"Epitáfio para um poeta | |
As asas não lhe cabem no caixão! | |
A farpela de luto não condiz | |
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz; | |
A gravata e o calçado também não. | |
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela! | |
Descalcem-lhe os sapatos de verniz! | |
Nao vêem que ele, nu, faz mais figura, | |
Como uma pedra, ou uma estrela? | |
Pois atirem-no assim à terra dura, | |
Ser-lhe-á conforto: | |
Deixem-no respirar ao menos morto! | |
" | |
Luís Gama,"Quem Sou Eu? | |
Quem sou eu? que importa quem? | |
Sou um trovador proscrito, | |
Que trago na fronte escrito | |
Esta palavra — Ninguém! — | |
A. E. ZALUAR - Dores e Flores | |
(...) | |
O que sou e como penso, | |
Aqui vai com todo o senso, | |
Posto que já veja irados | |
Muitos lorpas enfunados, | |
Vomitando maldições | |
Contra as minhas reflexões. | |
Eu bem sei que sou qual Grilo | |
De maçante e mau estilo; | |
E que os homens poderosos | |
Desta arenga receosos, | |
Hão de chamar-me tarelo, | |
Bode, negro, Mongibelo; | |
Porém eu, que não me abalo, | |
Vou tangendo o meu badalo | |
Com repique impertinente, | |
Pondo a trote muita gente. | |
Se negro sou, ou sou bode, | |
Pouca importa. O que isto pode? | |
Bodes há de toda a casta, | |
Pois que a espécie é muita vasta... | |
Há cinzentos, há rajados, | |
Baios, pampas e malhados, | |
Bodes negros, bodes brancos, | |
E, sejamos todos francos, | |
Uns plebeus, e outros nobres, | |
Bodes ricos, bodes pobres, | |
Bodes sábios, importantes, | |
E também alguns tratantes... | |
Aqui, nesta boa terra, | |
Marram todos, tudo berra; | |
Nobres Condes e Duquesas, | |
Ricas Damas e Marquesas, | |
Deputados, senadores, | |
Gentis-homens, vereadores; | |
Belas Damas emproadas, | |
De nobreza empantufadas; | |
Repimpados principotes, | |
Orgulhosos fidalgotes, | |
Frades, Bispos, Cardeais, | |
Fanfarrões imperiais. | |
Gentes pobres, nobres gentes, | |
Em todos há meus parentes. | |
Entre a brava militança | |
Fulge e brilha alta bodança; | |
Guardas, Cabos, Furriéis, | |
Brigadeiros, Coronéis, | |
Destemidos Marechais, | |
Rutilantes Generais, | |
Capitães de mar e guerra, | |
— Tudo marra, tudo berra — | |
Na suprema eternidade, | |
Onde habita a Divindade, | |
Bodes há santificados, | |
Que por nós são adorados. | |
Entre o coro dos Anjinhos | |
Também há muitos bodinhos. — | |
O amante de Siringa | |
Tinha pêlo e má catinga; | |
O deu Mendes, pelas contas, | |
Na cabeça tinha pontas; | |
Jove quando foi menino, | |
Chupitou leite caprino; | |
E, segundo o antigo mito, | |
Também Fauno foi cabrito. | |
Nos domínios de Plutão, | |
Guarda um bode o Alcorão; | |
Nos lundus e nas modinhas | |
São cantadas as bodinhas: | |
Pois se todos têm rabicho, | |
Para que tanto capricho? | |
Haja paz, haja alegria, | |
Folgue e brinque a bodaria; | |
Cesse, pois, a matinada, | |
Porque tudo é bodarrada! | |
Imagem - 00270001 | |
Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861). | |
In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.97-100. (Últimas gerações, 4" | |
Herberto Helder,"Afrodite Formosa | |
Esses peitos pequenos, cheios. | |
Esse ventre, o seu redondo espraiado! | |
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido | |
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado, | |
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo, | |
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha | |
cariciosa do ombro... | |
Afrodite, não chorei quando te descobri? | |
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia | |
e de Roma! | |
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de | |
frontes tranquilas, abstractas... | |
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole. | |
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga- | |
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca | |
desprezadas razões formais. | |
Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo... | |
O descanso desse teu gesto! | |
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo. | |
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre. | |
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro- | |
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de | |
abandono... | |
Já passaram sobre ti dois mil anos? | |
Estranha obra de um homem! | |
Que doçura espalhas e que grandeza... | |
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão | |
corpo. | |
Não és mística, não exacerbas, não | |
angústias. | |
Geras o sonho do amor. | |
Praxíteles. | |
Como pudeste criar Afrodite? | |
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de | |
a vencer, gozar! | |
Tinha de assim ser. | |
Eternizaste-a! | |
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne..." | |
Maria Teresa Horta,"Invento | |
Deponho | |
suponho e descrevo | |
a pulso | |
subindo pela fímbria | |
do despido | |
Porque nada é verdade | |
se eu invento | |
o avesso daquilo que é vestido | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Poema pouco original do medo | |
O medo vai ter tudo | |
pernas | |
ambulâncias | |
e o luxo blindado | |
de alguns automóveis | |
Vai ter olhos onde ninguém o veja | |
mãozinhas cautelosas | |
enredos quase inocentes | |
ouvidos não só nas paredes | |
mas também no chão | |
no teto | |
no murmúrio dos esgotos | |
e talvez até (cautela!) | |
ouvidos nos teus ouvidos | |
O medo vai ter tudo | |
fantasmas na ópera | |
sessões contínuas de espiritismo | |
milagres | |
cortejos | |
frases corajosas | |
meninas exemplares | |
seguras casas de penhor | |
maliciosas casas de passe | |
conferências várias | |
congressos muitos | |
ótimos empregos | |
poemas originais | |
e poemas como este | |
projetos altamente porcos | |
heróis | |
(o medo vai ter heróis!) | |
costureiras reais e irreais | |
operários | |
(assim assim) | |
escriturários | |
(muitos) | |
intelectuais | |
(o que se sabe) | |
a tua voz talvez | |
talvez a minha | |
com a certeza a deles | |
Vai ter capitais | |
países | |
suspeitas como toda a gente | |
muitíssimos amigos | |
beijos | |
namorados esverdeados | |
amantes silenciosos | |
ardentes | |
e angustiados | |
Ah o medo vai ter tudo | |
tudo | |
(Penso no que o medo vai ter | |
e tenho medo | |
que é justamente | |
o que o medo quer) | |
O medo vai ter tudo | |
quase tudo | |
e cada um por seu caminho | |
havemos todos de chegar | |
quase todos | |
a ratos | |
" | |
José Régio,"Adão e Eva | |
Olhámo-nos um dia, | |
E cada um de nós sonhou que achara | |
O par que a alma e a carne lhe pedia. | |
- E cada um de nós sonhou que o achara... | |
E entre nós dois | |
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente, | |
...Se deu, e se dará continuamente: | |
Na palma da tua mão, | |
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado. | |
- O meu nome é Adão... | |
E em que furor sagrado | |
Os nossos corpos nus e desejosos | |
Como serpentes brancas se enroscaram, | |
Tentando ser um só! | |
Ó beijos angustiados e raivosos | |
Que as nossas pobres bocas se atiraram, | |
Sobre um leito de terra, cinza e pó! | |
Ó abraços que os braços apertaram, | |
Dedos que se misturaram! | |
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri, | |
Sede que nada mata, ânsia sem fim! | |
- Tu de entrar em mim, | |
Eu de entrar em ti. | |
Assim toda te deste, | |
E assim todo me dei: | |
Sobre o teu longo corpo agonizante, | |
Meu inferno celeste, | |
Cem vezes morri, prostrado... | |
Cem vezes ressuscitei | |
Para uma dor mais vibrante | |
E um prazer mais torturado. | |
E enquanto as nossas bocas se esmagavam, | |
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam | |
Às linhas fortes do meu, | |
Os nossos olhos muito perto, imensos | |
No desespero desse abraço mudo, | |
Confessaram-me tudo! | |
...Enquanto nós pairávamos, suspensos | |
Entre a terra e o céu. | |
Assim as almas se entregaram, | |
Como os corpos se tinham entregado. | |
Assim duas metades se amoldaram | |
Ante as barbas, que tremeram, | |
Do velho Pai desprezado! | |
E assim Adão e Eva se conheceram: | |
Tu conheceste a força dos meus pulsos, | |
A miséria do meu ser, | |
Os recantos da minha humanidade, | |
A grandeza do meu amor cruel, | |
Os veios de oiro que o meu barro trouxe... | |
Eu os teus nervos convulsos, | |
O teu poder, | |
A tua fragilidade, | |
Os sinais da tua pele, | |
O gosto do teu sangue doce... | |
Depois... | |
Depois o quê, amor? Depois, mais nada, | |
- Que Jeová não sabe perdoar! | |
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada... | |
Continuámos a ser dois, | |
E nunca nos pudemos penetrar! | |
" | |
Alexandre O'Neill,"O teu nome | |
Flor de acaso ou ave deslumbrante, | |
Palavra tremendo nas redes da poesia, | |
O teu nome,como o destino,chega, | |
O teu nome,meu amor,o teu nome nascendo | |
De todas as cores do dia! | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Quem anda nos meus olhos | |
Quem anda nos meus olhos | |
A querer salvar o mundo | |
Com espadas de lágrimas? | |
És tu D. Quixote, e vou matar-te. | |
Quem anda na minha sombra | |
A arrastar a armadura negra | |
Do Cavaleiro da Resignação | |
És tu D. Quixote, e vou matar-te. | |
Quem anda na minhaalma | |
A querer estrangular gigantes | |
Com mãos de adormecer lírios ? | |
És tu D. Quixote, e vou matar-te. | |
Quem anda na minha ira | |
A enterrar punhais de solidão | |
Nos monstros dos Desvios Nevoentos? | |
És tu D. Quixote , e vou matar-te. | |
Quem anda no meu sonho | |
A ressuscitar filhos mortos nos regaços, | |
Para morrerem outra vez de fome? | |
És tu D. Quixote, e vou matar-te. | |
Quem anda na minha voz, | |
A iludir-me de clangores de peleja | |
Na cidade dos inimigos trocados? | |
És tu D. Quixote, e vou matar-te. | |
Sim, matar-te | |
Para nunca mais sentir na cara | |
o frio de lâmina das tuas lágrimas | |
E ficar diante da vida, | |
Terrível e seco | |
De mãos nuas | |
- à espera de outras mãos de algum dia, | |
Suadas da camaradagem do mundo novo." | |
Herberto Helder,"Os Animais Carnívoros | |
Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo | |
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia | |
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um | |
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais | |
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco- | |
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava | |
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o | |
que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e | |
urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às | |
nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então | |
os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha | |
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora | |
era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos | |
eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era | |
uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas | |
abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas." | |
Eugénio de Andrade,"Rotina | |
Passamos pelas coisas sem as ver, | |
gastos, como animais envelhecidos: | |
se alguém chama por nós não respondemos, | |
se alguém nos pede amor não estremecemos, | |
como frutos de sombra sem sabor, | |
vamos caindo ao chão, apodrecidos. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Homens do futuro | |
Homens do futuro: | |
ouvi, ouvi este poeta ignorado | |
que cá de longe fechado numa gaveta | |
no suor do século vinte | |
rodeado de chamas e de trovões, | |
vai atirar para o mundo | |
versos duros e sonâmbulos como eu. | |
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria. | |
Versos agrestes como azorragues de nojo. | |
Versos rudes como machados de decepar. | |
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo | |
— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos | |
para adormecer os poetas. | |
Fora, fora do planeta, | |
tu, mulher lânguida | |
de braços verdes | |
e cantos de pássaros no coração! | |
Fora, fora as árvores inúteis | |
— ninfas paradas | |
para o cio dos faunos | |
escondidos no vento... | |
Fora, fora o céu | |
com nuvens onde não há chuva | |
mas cores para quadros de exposição! | |
Fora, fora os poentes | |
com sangue sem cadáveres | |
a iludiremos de campos de batalha suspensos! | |
Fora, fora as rosas vermelhas, | |
flâmulas de revolta para enterros na primavera | |
dos revolucionários mortos na cama! | |
Fora, fora as fontes | |
com água envenenada da solidão | |
para adormecer o desespero dos homens! | |
Fora, fora as heras nos muros | |
a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre | |
de pé! | |
Fora, fora os rios | |
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres! | |
Fora, fora as papoilas, | |
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum | |
fantasma ferido! | |
Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites | |
a teima das nossas garras | |
curvas de futuro! | |
Fora! Fora! Fora! Fora! | |
Deixem-nos o planeta descarnado e áspero | |
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens. | |
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos úmidos | |
nem mulheres de flores nas planícies estendidas. | |
Uma planeta feito de lágrimas e montes de sucata | |
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas. | |
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos! | |
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas! | |
E flores de punhos cerrados das multidões em alma! | |
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos | |
a suarem um simulacro de vida | |
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres, | |
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres | |
e pedras! | |
Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas | |
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros | |
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens | |
— terríveis, à espera, na sombra do chão | |
sujo da nossa morte. | |
" | |
Marina Colasanti,"Sangue de mênstruo | |
Paixão se escreve | |
em folha vermelha | |
de papel de seda | |
selada com lacre. | |
Paixão te escrevo | |
em língua de fogo | |
pena de flamingo | |
flor de gravatá. | |
Minha tinta é sumo | |
de morango e amora | |
suco de cereja. | |
Mas no fim do escrito | |
só sangue me assina | |
sangue de mênstruo | |
fúria de assassina. | |
" | |
Al Berto,"Encomenda Postal | |
destino-te a tarefa de me sepultares | |
no segredo mineral da noite | |
com um lápis e uma máquina fotográfica | |
depois | |
fica atento ao correio | |
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei | |
devidamente autografado | |
o retrato da solidão que te pertenceu | |
e numa encomenda à parte receberás | |
a revelação desta arte | |
onde a vida cinzelou o precário corpo | |
na luz afiada de um vestígio de tinta" | |
Angela Santos,"Viva Voz | |
Da | |
tua voz vivo agora | |
e se chega eu esqueço | |
o vazio que me farta… | |
mordo e deixo em tua boca | |
a marca de um beijo | |
e parto... | |
a cabeça repleta e o coração faminto | |
e pergunto – me sem fim | |
até quando… | |
até quando… | |
até quando..? | |
" | |
Al Berto,"Truque do Meu Amigo da Rua | |
ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina | |
olhar vazio varrendo a multidão, parei | |
sorri e tu vieste, fomos andando | |
os ombros tocavam-se, em direcção a casa | |
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me | |
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo da cidade e de engates | |
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive | |
esperei-te deitado, outro cigarro | |
e ainda espero | |
gosto dos corpos que riem, frescos | |
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo | |
húmido da boca, que sempre percorre e descobre | |
tacteio-te de alto a baixo | |
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro | |
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te | |
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via | |
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão | |
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio | |
de autocolantes, | |
peúgas encortiçadas pelo suor | |
as cuecas rotas, sujas de merda | |
e tuas mãos, recordo-me | |
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito | |
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono." | |
Eugénio de Andrade,"As mãos | |
Que tristeza tão inútil essas mãos | |
que nem sequer são flores | |
que se dêem: | |
abertas são apenas abandono, | |
fechadas são pálpebras imensas | |
carregadas de sono. | |
" | |
Machado de Assis,"A Carolina | |
Querida, ao pé do leito derradeiro | |
Em que descansas dessa longa vida, | |
Aqui venho e virei, pobre querida, | |
Trazer-te o coração do companheiro. | |
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro | |
Que, a despeito de toda a humana lida, | |
Fez a nossa existência apetecida | |
E num recanto pôs um mundo inteiro. | |
Trago-te flores, — restos arrancados | |
Da terra que nos viu passar unidos | |
E ora mortos nos deixa e separados. | |
Que eu, se tenho nos olhos malferidos | |
Pensamentos de vida formulados, | |
São pensamentos idos e vividos. | |
Publicado no livro Relíquias de Casa Velha (1906). | |
In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3, p.313. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
José Régio,"Ode a Eros | |
Eros, Cupido, Amor, pequeno Deus travesso | |
Com quem todos brincamos! | |
Brincando nos ferimos, | |
Ferindo-nos gozamos, | |
Se rimos já choramos, | |
Mal que choramos rimos... | |
Já, voltados do avesso, | |
Por igual o voltamos, | |
O torturamos nós como ele nos tortura, | |
Descemos aos recessos da criatura... | |
Pequenino gigante! | |
Sonhava, ou não sonhava, | |
Quem te representou risonho e pequenino | |
Que de Hércules a clava | |
Não pesa como pesa a tua mão de infante, | |
Nem seu furor destrói | |
Como nos dói | |
Teu riso de menino? | |
Nas tuas leves setas | |
Nas flâmulas gentis | |
Que cantam os poetas | |
E os namorados juvenis, | |
Que longos ópios e letais licores, | |
Que pântanos de lodo e que furores, | |
Que grinaldas de louros e de espinhos, | |
Que abissais labirintos de caminhos! | |
Mascarilha de seda e de veludo | |
Sob a qual o olhar brilha, a boca ri, | |
Que olhar ambíguo ou mudo, | |
Que boca atormentada | |
Não terás além ti | |
Na mascarada? | |
Pai da Crueldade e da Piedade, | |
Filho do Crime e da Beleza, | |
Que infante serás tu, que, desde que há Idade, | |
Aos Ícaros opões a mesma astral parede, | |
E os Lázaros susténs dos restos dessa mesa | |
Em que se bebe sempre a mesma sede, | |
Se come | |
A mesma fome? | |
Divindade nocturna | |
Que te cinges de rosas, | |
Suprema fúria mascarada | |
Que a porta abres do céu... escancarada | |
Sobre o negro vazio duma furna, | |
Que a urna de cristal nas mãos formosas | |
Vens ofertar às bocas sequiosas | |
E escorres sangue do cristal da urna, | |
Que tens tu afinal, ao fundo da caverna | |
Sempre aos mortais vedada: | |
A eterna morte... o nada, | |
Ou a vida eterna? | |
" | |
José Régio,"Cântico | |
Num impudor de estátua ou de vencida, | |
coxas abertas, sem defesa... nua | |
ante a minha vigília, a noite, e a lua, | |
ela, agora, descansa, adormecida. | |
Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida, | |
meu olhar desce aonde o sexo estua. | |
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua | |
sobre funduras e confins da vida. | |
Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos... | |
enquanto o luar a numba, inerte, gasta | |
da ternura feroz do meu amplexo. | |
Cantam-me as veias poemas nunca feitos... | |
e eu pouso a boca, religiosa e casta, | |
sobre a flor esmagada do seu sexo. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Como se houvesse uma tempestade | |
Como se houvesse uma tempestade | |
escurecendo os teus cabelos, | |
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos | |
carregada de flor e dos teus dedos; | |
como se houvesse uma criança cega | |
aos tropeções dentro de ti, | |
eu falei em neve - e tu calavas | |
a voz onde contigo me perdi. | |
Como se a noite se viesse e te levasse, | |
eu era só fome o que sentia; | |
Digo-te adeus, como se não voltasse | |
ao país onde teu corpo principia. | |
Como se houvesse nuvens sobre nuvens | |
e sobre as nuvens mar perfeito, | |
ou, se preferes, a tua boca clara | |
singrando largamente no meu peito. | |
" | |
Herberto Helder,"Súmula | |
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. Falo, penso. Sonho sobre os tremendos ossos dos pés. É sempre outra coisa, uma só coisa coberta de nomes. E a morte passa de boca em boca com a leve saliva, com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas. E às vezes estou na frente dos campos como se morresse; outras, como se agora somente eu pudesse acordar. | |
Por vezes tudo se ilumina. Por vezes canta e sangra. Eu digo que ninguém se perdoa no tempo. Que a loucura tem espinhos como uma garganta. Eu digo: roda ao longe o outono, e o que é o outono? As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento. | |
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas. | |
- Era uma casa - como direi? - absoluta. | |
Eu jogo, eu juro. Era uma casinfância. Sei como era uma casa louca. Eu metias as mãos na água: adormecia, relembrava. Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade. | |
Apalpo agora o girar das brutais, líricas rodas da vida. Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas, uma rosa como uma alta cabeça, um peixe como um movimento rápido e severo. Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada. Há copos, garfos inebriados dentro de mim. - Porque o amor das coisas no seu tempo futuro é terrivelmente profundo, é suave, devastador. | |
As cadeiras ardiam nos lugares. Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento como seres pasmados. Às vezes riam alto. Teciam-se em seu escuro terrífico. A menstruação sonhava podre dentro delas, à boca da noite. Cantava muito baixo. Parecia fluir. Rodear as mesas, as penumbras fulminadas. Chovia nas noites terrestres. Eu quero gritar paralém da loucura terrestre. - Era húmido, destilado, inspirado. Havia rigor. Oh, exemplo extremo. Havia uma essência de oficina. Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras, com as suas maçãs centrípetas e as uvas pendidas sobre a maturidade. Havia a magnólia quente de um gato. Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura. Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa. As mãos tocavam por cima do ardor a carne como um pedaço extasiado. | |
Era uma casabsoluta - como direi? - um sentimento onde algumas pessoas morreriam. Demência para sorrir elevadamente. Ter amoras, folhas verdes, espinhos com pequena treva por todos os cantos. Nome no espírito como uma rosapeixe. | |
- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados agora nas palavras. Prefiro cantar nas varandas interiores. Porque havia escadas e mulheres que paravam minadas de inteligência. O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar. O leite cantante. | |
Eu agora mergulho e ascendo como um copo. Trago para cima essa imagem de água interna. - Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema. Ou o poema subindo pela caneta, atravessando seu próprio impulso, poema regressando. Tudo se levanta como um cravo, uma faca levantada. Tudo morre o seu nome noutro nome. | |
Poema não saindo do poder da loucura. Poema como base inconcreta de criação. Ah, pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade. Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção. Com alguma ironia furibunda. | |
Sou uma devastação inteligente. Com malmequeres fabulosos. Ouro por cima. A madrugada ou a noite triste tocadas em trompete. Sou alguma coisa audível, sensível. Um movimento. Cadeira congeminando-se na bacia, feita o sentar-se. Ou flores bebendo a jarra. O silêncio estrutural das flores. E a mesa por baixo. A sonhar. In «Ou o Poema Contínuo», Assírio & Alvim, 2001" | |
Eugénio de Andrade,"Frente a frente | |
Nada podeis contra o amor, | |
Contra a cor da folhagem, | |
contra a carícia da espuma, | |
contra a luz, nada podeis. | |
Podeis dar-nos a morte, | |
a mais vil, isso podeis | |
- e é tão pouco! | |
" | |
Al Berto,"Amor dos Fogos | |
.....vêm sôfregos os peixes da madrugada | |
beber o marítimo veneno das grandes travessias | |
trazem nas escamas a primavera sombria do mar | |
largam minúsculos cristais de areia junto à boca | |
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos | |
.... vem deitar-te comigo no feno dos romances | |
para que a manhã não solte o ciúme | |
e de novo nos obrigue a fugir.... | |
.... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito | |
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça | |
ergue-te e regressa | |
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças | |
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras.... | |
.... iremos pelos campos | |
à procura do silente lume das cassiopeias... | |
" | |
Stéphane Mallarmé,"Angústia | |
Não vim domar teu corpo esta noite, ó cadela | |
Que encerras os pecados de um povo, ou cavar | |
Em teus cabelos torpes a triste procela | |
No incurável fastio em meu beijo a vazar: | |
Busco em teu leito o sono atroz sem devaneios | |
Pairando sob ignotas telas do remorso, | |
E que possas gozar após negros enleios, | |
Tu que acima do nada sabes mais que os mortos: | |
Pois o Vício, a roer minha nata nobreza, | |
Tal como a ti marcou-me de esterilidade, | |
Mas enquanto teu seio de pedra é cidade. | |
De um coração que crime algum fere com presas, | |
Pálido, fujo, nulo, envolto em meu sudário, | |
Com medo de morrer pois durmo solitário. | |
" | |
Vinicius de Moraes,"São Francisco | |
Lá vai São Francisco | |
Pelo caminho | |
De pé descalço | |
Tão pobrezinho | |
Dormindo à noite | |
Junto ao moinho | |
Bebendo a água | |
Do ribeirinho. | |
Lá vai São Francisco | |
De pé no chão | |
Levando nada | |
No seu surrão | |
Dizendo ao vento | |
Bom-dia, amigo | |
Dizendo ao fogo | |
Saúde, irmão. | |
Lá vai São Francisco | |
Pelo caminho | |
Levando ao colo | |
Jesuscristinho | |
Fazendo festa | |
No menininho | |
Contando histórias | |
Pros passarinhos. | |
" | |
Florbela Espanca,"Vaidade | |
Sonho que sou a Poetisa eleita, | |
Aquela que diz tudo e tudo sabe, | |
Que tem a inspiração pura e perfeita, | |
Que reúne num verso a imensidade! | |
Sonho que um verso meu tem claridade | |
Para encher o mundo! E que deleita | |
Mesmo aqueles que morrem de saudade! | |
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! | |
Sonho que sou Alguém cá neste mundo... | |
Aquela de saber vasto e profundo, | |
Aos pés de quem a Terra anda curvada! | |
E quando mais no céu eu vou sonhando, | |
E quando mais no alto ando voando, | |
Acordo do meu sonho... E não sou nada!... | |
" | |
Cecília Meireles,"Herança | |
Eu vim de infinitos caminhos, | |
e os meus sonhos choveram lúcido pranto | |
pelo chão. | |
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos, | |
essa vida, que era tão viva, tão fecunda, | |
porque vinha de um coração? | |
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos, | |
do pranto que caiu dos meus olhos passados, | |
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão? | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"A Escola das Facas | |
O alísio ao chegar ao Nordeste | |
baixa em coqueirais, canaviais; | |
cursando as folhas laminadas, | |
se afia em peixeiras, punhais. | |
Por isso, sobrevoada a Mata, | |
suas mãos, antes fêmeas, redondas, | |
ganham a fome e o dente da faca | |
com que sobrevoa outras zonas. | |
O coqueiro e a cana lhe ensinam, | |
sem pedra-mó, mas faca a faca, | |
como voar o Agreste e o Sertão: | |
mão cortante e desembainhada. | |
Publicado no livro A escola das facas (1980). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.429. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Paulo Leminski,"Merda e ouro | |
Merda é veneno. | |
No entanto, não há nada | |
que seja mais bonito | |
que uma bela cagada. | |
Cagam ricos, cagam pobres, | |
cagam reis e cagam fadas. | |
Não há merda que se compare | |
à bosta da pessoa amada. | |
" | |
Cecília Meireles,"Fio | |
No fio da respiração, | |
rola a minha vida monótona, | |
rola o peso do meu coração. | |
Tu não vês o jogo perdendo-se | |
como as palavras de uma canção. | |
Passas longe, entre nuvens rápidas, | |
com tantas estrelas na mão... | |
— Para que serve o fio trêmulo | |
em que rola o meu coração? | |
" | |
Cesário Verde,"O Sentimento dum Ocidental III - Ao gás | |
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos | |
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. | |
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras | |
Um sopro que arripia os ombros quase nus. | |
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso | |
Ver círios laterais, ver filas de capelas, | |
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas, | |
Em uma catedral de um comprimento imenso. | |
As burguesinhas do Catolicismo | |
Resvalam pelo chão minado pelos canos; | |
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, | |
As freiras que os jejuns matavam de histerismo. | |
Num cutileiro, de avental, ao torno, | |
Um forjador maneja um malho, rubramente; | |
E de uma padaria exala-se, inda quente, | |
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno. | |
E eu que medito um livro que exacerbe, | |
Quisera que o real e a análise mo dessem; | |
Casas de confecções e modas resplandecem; | |
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe. | |
Longas descidas! Não poder pintar | |
Com versos magistrais, salubres e sinceros, | |
A esguia difusão dos vossos reverberos, | |
E a vossa palidez romântica e lunar! | |
Que grande cobra, a lúbrica pessoa, | |
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo! | |
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo, | |
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa. | |
E aquela velha, de bandós! Por vezes, | |
A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto, | |
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto, | |
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses. | |
Desdobram-se tecidos estrangeiros; | |
Plantas ornamentais secam nos mostradores; | |
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores, | |
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros. | |
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes | |
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; | |
Da solidão regouga um cauteleiro rouco; | |
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes. | |
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, | |
Pede-me esmola um homenzinho idoso, | |
Meu velho professor nas aulas de Latim! | |
" | |
Casimiro de Abreu,"Risos | |
Ri, criança, a vida é curta, | |
O sonho dura um instante. | |
Depois... o cipreste esguio | |
Mostra a cova ao viandante! | |
A vida é triste — quem nega? | |
— Nem vale a pena dizê-lo. | |
Deus a parte entre seus dedos | |
Qual um fio de cabelo! | |
Como o dia, a nossa vida | |
Na aurora é — toda venturas, | |
De tarde — doce tristeza, | |
De noite — sombras escuras! | |
A velhice tem gemidos, | |
— A dor das visões passadas — | |
A mocidade — queixumes, | |
Só a infância tem risadas! | |
Ri, criança, a vida é curta, | |
O sonho dura um instante. | |
Depois... o cipreste esguio | |
Mostra a cova ao viandante! | |
Rio, 1858 | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro III. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Maria Teresa Horta,"Pequena Cantiga à Mulher | |
Onde uma tem | |
O cetim | |
A outra tem a rudeza | |
Onde uma tem | |
A cantiga | |
A outra tem a firmeza | |
Tomba o cabelo | |
Nos ombros | |
O suor pela | |
Barriga | |
Onde uma tem | |
A riqueza | |
A outra tem | |
A fadiga | |
Tapa a nudez | |
Com as mãos | |
Procura o pão | |
Na gaveta | |
Onde uma tem | |
O vestígio | |
Tem a outra | |
A pele seca | |
Enquanto desliza | |
O fato | |
Pega a outra na | |
Enxada | |
Enquanto dorme | |
Na cama | |
A outra arranja-lhe | |
A casa" | |
Fernando Pessoa,"Não quero ir onde não há a luz, | |
Não quero ir onde não há a luz, | |
Do outro lado abóbada do solo, | |
Ínfera imensa cripta, não mais ver | |
As flores, nem o curso ao sol de rios, | |
Nem onde as estações que se sucedem | |
Mudam no campo o campo. Ali, no escuro, | |
Só sombras múrmuras, êxuis de tudo, | |
Salvo da saudade, eternas moram; | |
Região aos mesmos íncolas incógnita, | |
Dos naturais, se os tem, desconhecida. | |
Ali talvez só lírios cor de cinza | |
Surgirão pálidos da noite imota. | |
Ali talvez só gelo com as águas, | |
Como a cegos, serão, e o surdo curso, | |
No côncavo sossego lamentoso, | |
Se acaso à vista habituada aclare, | |
Será como um cinzento tédio externo. | |
Não quero o pátrio sol de toda a terra | |
Deixar atrás, descendo, passo a passo, | |
A escadaria cujos degraus são | |
Sucessivos aumentos de negrume, | |
Até ao extremo solo e noite inteira. | |
Para que vim a esta clara vida? | |
Para que vim, se um dia hei-de cair | |
Da haste dela? Para que no solo | |
Se abre o poço da ida? Porque não | |
Será sem fim (...) | |
16/11/1932" | |
Thiago de Mello,"Rumo | |
A Geir Campos | |
Somente sou quando em verso. | |
Minhas faces mais diversas | |
são labirintos antigos | |
que me confundem e perdem | |
Meu pensamento perfura | |
muros de nada, à procura | |
do que não fui nem serei. | |
Ante a carne fêmea e branca | |
meu corpo se recompõe | |
ofertando o que não sou. | |
Meu caminhar e meus gestos | |
mal e apenas anunciam | |
minha ainda permanência. | |
Para chegar até onde | |
não me presumo, mas sou. | |
sigo em forma de palavra. | |
Publicado no livro Silêncio e Palavra (1951). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
José Gomes Ferreira,"Poesia III | |
Hoje acordei na dispersão cinzenta | |
" | |
Florbela Espanca,"Súplica | |
Olha pra mim, amor, olha pra mim; | |
Meus olhos andam doidos por te olhar! | |
Cega-me com o brilho de teus olhos | |
Que cega ando eu há muito por te amar. | |
O meu colo é arrninho imaculado | |
Duma brancura casta que entontece; | |
Tua linda cabeça loira e bela | |
Deita em meu colo, deita e adormece! | |
Tenho um manto real de negras trevas | |
Feito de fios brilhantes dastros belos | |
Pisa o manto real de negras trevas | |
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos! | |
Os meus braços são brancos como o linho | |
Quando os cerro de leve, docemente... | |
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te | |
Nessa cadeia assim etemamente! ... | |
Vem para mim,amor...Ai não desprezes | |
A minha adoração de escrava louca! | |
Só te peço que deixes exalar | |
Meu último suspiro na tua boca!... | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Sob o chuveiro amar | |
Sob o chuveiro amar, sabão e beijos, | |
ou na banheira amar, de água vestidos, | |
amor escorregante, foge, prende-se, | |
torna a fugir, água nos olhos, bocas, | |
dança, navegação, mergulho, chuva, | |
essa espuma nos ventres, a brancura | |
triangular do sexo -- é água, esperma, | |
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fontes? | |
" | |
Florbela Espanca,"Sonhos | |
Ter um sonho, um sonho lindo, | |
Noite branda de luar, | |
Que se sonhasse a sorrir... | |
Que se sonhasse a chorar... | |
Ter um sonho, que nos fosse | |
A vida, a luz, o alento, | |
Que a sonhar beijasse doce | |
A nossa boca... um lamento... | |
Ser pra nós o guia, o norte, | |
Na vida o único trilho; | |
E depois ver vir a morte | |
Despedaçar esses laços!... | |
...É pior que ter um filho | |
Que nos morresse nos braços! | |
" | |
Vinicius de Moraes,"Rosário | |
E eu que era um menino puro | |
Não fui perder minha infância | |
No mangue daquela carne! | |
Dizia que era morena | |
Sabendo que era mulata | |
Dizia que era donzela | |
Nem isso não era ela | |
Era uma môça que dava. | |
Deixava... mesmo no mar | |
Onde se fazia em água | |
Onde de um peixe que era | |
Em mil se multiplicava | |
Onde suas mãos de alga | |
Sobre o meu corpo boiavam | |
Trazendo à tona águas-vivas | |
Onde antes não tinha nada. | |
Quanto meus olhos não viram | |
No céu da areia da praia | |
Duas estrelas escuras | |
Brilhando entre aquelas duas | |
Nebulosas desmanchadas | |
E não beberam meus beijos | |
Aqueles olhos noturnos | |
Luzinho de luz parada | |
Na imensa noite da ilha! | |
Era minha namorada | |
Primeiro nome de amada | |
Primeiro chamar de filha | |
Grande filha de uma vaca! | |
Como não me seduzia | |
Como não me alucinava | |
Como deixava, fingindo | |
Fingindo que não deixava! | |
Aquela noite entre todas | |
Que cica os cajus! travavam! | |
Como era quieto o sossego | |
Cheirando a jasmim-do-Cabo! | |
Lembro que nem se mexia | |
O luar esverdeado. | |
Lembro que longe, nos longes | |
Um gramofone tocava, | |
Lembro dos seus anos vinte | |
Junto aos meus quinze deitados | |
Sob a luz verde da lua. | |
Ergueu a saia de um gesto | |
Por sobre a perna dobrada | |
Mordendo a carne da mão | |
Me olhando sem dizer nada | |
Enquanto jazente eu via | |
Como uma anêmona nágua | |
A coisa que se movia | |
Ao vento que a farfalhava. | |
Toquei-lhe a dura pevide | |
Entre o pêlo que a guardava | |
Beijando-lhe a coxa fria | |
Com gosto de cana-brava. | |
Senti, à pressão do dedo | |
Desfazer-se desmanchada | |
Como um dedal de segredo | |
A pequenina castanha | |
Gulosa de ser tocada. | |
Era uma dança morena | |
Era uma dança mulata | |
Era o cheiro de amarugem | |
Era a lua cor de prata | |
Mas foi só aquela noite! | |
Passava dando risada | |
Carregando os peitos loucos | |
Quem sabe pra quem, quem sabe! | |
Mas como me perseguia | |
A negra visão escrava | |
Daquele feixe de águas | |
Que sabia ela guardava | |
No fundo das coxas frias! | |
Mas como me desbragava | |
Na areia mole e macia! | |
A areia me recebia | |
E eu baixinho me entregava | |
Com medo que Deus ouvisse | |
Os gemidos que não dava! | |
Os gemidos que não dava | |
Por amor do que ela dava | |
Aos outros de mais idade | |
Que a carregaram da ilha | |
Para as ruas da cidade. | |
Meu grande sonho da infância | |
Angústia da mocidade. | |
" | |
Cesário Verde,"Cinismos | |
Eu hei-de lhe falar lugubremente | |
Do meu amor enorme e massacrado, | |
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente. | |
Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado, | |
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário, | |
E ser menos que um Judas empalhado. | |
Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário | |
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo, | |
Como um velho filósofo lendário. | |
Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso, | |
Os pegos abismais da minha vida, | |
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso, | |
Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida, | |
Cheia de dor, tremente, alucinada, | |
E há-de chorar, chorar enternecida! | |
E eu hei-de, então, soltar uma risada. | |
Lisboa, 1871 | |
" | |
Marina Colasanti,"Nem Tão Nuas | |
Ah! Cranach, como eu gosto | |
dessas mulheres nuas que você pinta | |
com seus pequenos seios | |
suas barrigas | |
e ao alto os chapelões cheios de plumas. | |
E as Salomés, que graça | |
segurando cabeças de Batista | |
com a mesma elegante displicência | |
com que outras, no colo, | |
afagam cães de raça. | |
Mas há nessas mulheres | |
escondido | |
atrás da boca fina | |
ou do olhar oblíquo | |
um luzir de punhal | |
um gelo ambíguo que | |
embora estando nuas | |
lhes põe vestido. | |
" | |
Manuel Bandeira,"O EXEMPLO DAS ROSAS | |
Uma mulher queixava-se do silêncio do amante: | |
- Já não gostas de mim, pois nnão encontras palavras para me louvar! | |
Então ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio: | |
- Não será insensato pedir a eesta rosa que fale? | |
Não vês que ela se dá toda no seu perfume? | |
" | |
Al Berto,"Framentos de um Diário | |
Amo | |
as águas no instante em que não são do rio | |
Nem pertencem ainda ao mar..... | |
.....árduas planícies rosto incendiado pesando-me | |
nos ombros | |
hirto....tatuado no entardecer de magoada cocaína..... | |
.....leio baixinho aquele poema Eu de Belaflor | |
nocturna sombra de corpo embriagado | |
fogos por descuido acesos no húmido leito dos juncos... | |
...altíssima margem....inacessível noite de Florbela | |
e o soneto dizia: Sou aquela que passa e ninguém vê | |
sou a que chamam triste sem o ser | |
sou a que chora sem saber porquê | |
...apesar de tudo conheço bem este rio | |
e o cuspo diáfano do coral o sono letárgico | |
dos reduzidos seres marinhos esmagados | |
na pressa do mar...possuo este resíduo de vida estelar | |
gravada na pele está a cabeça de medusa loura....dói | |
nas comissuras penumbrosas das falésias | |
que me evocam | |
os ternos lábios das grandes bocas fluviais..... | |
...sinto o rigor das plantas erectas as vozes esparsas | |
os corpos de ouro enleados na violência das maresias.... | |
...junto á foz de meu inseguro desaguar...continuo sentado | |
escrevo a desordem urgente das horas...medito-me | |
cuidadosamente o tabaco amargo pressente-te na garganta | |
e no fundo inóspito do corpo desenvolve-se | |
o desejo de fugir.... | |
.... espero o cortante sal-gema das ilhas.....a ilusão | |
conseguir prolongar-me na secreta noite dos peixes.... | |
...adormeço enfim | |
para que estes dias aconteçam mais lentos | |
nas proximidades inalteráveis deste mar...." | |
Tobias Barreto,"Que Mimo! | |
Tu és morena e sublime | |
Como a hora do sol posto. | |
E, no crepúsculo eterno | |
Que te envolve o lindo rosto, | |
O céu desfolha canduras | |
De alvoradas e jasmins, | |
E passam roçando n'alma | |
As asas dos querubins... | |
Teu corpo que tem o cheiro | |
De cem capelas de rosas, | |
Que t'enche a roupa de quebros, | |
De ondulações graciosas, | |
Teu corpo derrama essências | |
Como uma campina em flor: | |
Beijá-lo!... fôra loucura; | |
Gozá-lo!... morrer de amor... | |
1874 | |
Publicado no livro Dias e Noites (1893). Poema integrante da série Parte IV - Amorosas. | |
In: BARRETO, Tobias. Dias e noites. Org. Luiz Antonio Barreto. Introd. e notas Jackson da Silva Lima. 7.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1989. p.280. (Obras completas" | |
Herberto Helder,"a carta da paixão | |
Esta mão que escreve a ardente melancolia | |
da idade | |
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça, | |
que à imagem do mundo aberta de têmpora | |
a têmpora | |
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra | |
a sua queimadura desde os seus recessos negros | |
onde se formam | |
as estações até ao cimo, | |
nas sedas que se escoam com a largura | |
fluvial | |
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas | |
e o silêncio todo branco. | |
Os dedos. | |
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua | |
alumia-se: O mel escurece dentro da veia | |
jugular talhando | |
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se | |
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas | |
obscuras, essa lua | |
tece as ramas de um sangue mais salgado | |
e profundo. E o marfim amadurece na terra | |
como uma constelação. O dia leva-o, a noite | |
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso | |
vivo. A idade que escrevo | |
escreve-se | |
num braço fincado em ti, uma veia | |
dentro | |
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta | |
da figura cavada | |
no espelho. Ou ainda a fenda | |
na fronte por onde começa a estrela animal. | |
Queima-te a espaçosa | |
desarrumação das imagens. E trabalha em ti | |
o suspiro do sangue curvo, um alimento | |
violento cheio | |
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força | |
desde a raiz | |
dos braços a força | |
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda | |
fechada, a límpida | |
ferida que me atravessa desde essa tua leveza | |
sombria como uma dança até | |
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma | |
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum | |
astro | |
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros | |
do teu vestido. | |
As palavras que escrevo correndo | |
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso, | |
arterial. | |
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado. | |
A paixão é voraz, o silêncio | |
alimenta-se | |
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te | |
toda | |
no cometa que te envolve as ancas como um beijo. | |
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem | |
nos quartos. | |
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a | |
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel | |
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta | |
pelo meio | |
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras | |
um pouco loucas | |
engolfadas, entre as mãos sumptuosas. | |
A doçura mata. | |
A luz salta às golfadas. | |
A terra é alta. | |
Tu és o nó de sangue que me sufoca. | |
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões | |
da madeira fria. És uma faca cravada na minha | |
vida secreta. E como estrelas | |
duplas | |
consanguíneas, luzimos de um para o outro | |
nas trevas." | |
Chacal,"Reclame | |
se o mundo não vai bem | |
a seus olhos, use lentes | |
...ou transforme o mundo. | |
ótica olho vivo | |
agradece a preferência. | |
Publicado no livro Olhos vermelhos (1979). | |
In: CHACAL. Drops de abril. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.53. (Cantadas literárias, 16)" | |
Cecília Meireles,"De um Lado Cantava o Sol | |
De um lado cantava o sol, | |
do outro, suspirava a lua. | |
No meio, brilhava a tua | |
face de ouro, girassol! | |
Ó montanha da saudade | |
a que por acaso vim: | |
outrora, foste um jardim, | |
e és, agora, eternidade! | |
De longe, recordo a cor | |
da grande manhã perdida. | |
Morrem nos mares da vida | |
todos os rios do amor? | |
Ai! celebro-te em meu peito, | |
em meu coração de sal, | |
Ó flor sobrenatural, | |
grande girassol perfeito! | |
Acabou-se-me o jardim! | |
Só me resta, do passado, | |
este relógio dourado | |
que ainda esperava por mim . . . | |
" | |
Gonçalves Dias,"As Artes São Irmãs | |
As artes são irmãs, e os seus cultores | |
Do fogo criador nas mesmas chamas, | |
Perante o mesmo altar, coroam-se, ardendo. | |
A mesma inspiração, que acende o estro, | |
Guia a mão do pintor quando debuxa | |
Do rosto nas feições o brilho interno, | |
Dá linguagem sublime à estátua muda, | |
Ou lânguida na lira se transforma | |
Em sons cadentes, que derramam n'alma | |
Idéias do prazer — do mal no olvido! | |
O mesmo entusiasmo as vivifica, | |
São iguais, são irmãs no amor do belo! | |
4 de junho de 1852 | |
Publicado no livro Obras Póstumas: precedidas de uma notícia da sua vida e obras pelo Dr. Antônio Henriques Leal (1868/1869). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Régis Bonvicino,"Espaço Sideral | |
o que me diz | |
dos planetas, | |
dos anéis de saturno, | |
e da origem dos rios, | |
que aqui reúno. | |
o que me diz | |
de mercúrio, | |
de seu brilho escuro? | |
de marte | |
de sua superfície escarlate, | |
do mistério, | |
espalhado por toda parte. | |
o que me diz | |
de júpiter. | |
da lua | |
que atravessa olhares. | |
o que me diz | |
das nebulosas, | |
que fazem da terráquea existência | |
poeira e gás: | |
não origem, não fim, | |
que não há. | |
o que me diz | |
de plutão, | |
afastado do sol | |
como qualquer | |
compreensão. | |
tudo existe. | |
homem, morte, | |
vida real. | |
que tudo se explique, | |
será só eclipse | |
no espaço sideral. | |
In: BONVICINO, Régis. 33 poemas. São Paulo: Iluminuras: Secretaria de Estado da Cultura, 1990" | |
Cesário Verde,"Vaidosa | |
Dizem que tu és pura como um lírio | |
E mais fria e insensível que o granito, | |
E que eu que passo aí por favorito | |
Vivo louco de dor e de martírio. | |
Contam que tens um modo altivo e sério, | |
Que és muito desdenhosa e presumida, | |
E que o maior prazer da tua vida, | |
Seria acompanhar-me ao cemitério. | |
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, | |
a déspota, a fatal, o figurino, | |
E afirmam que és um molde alabastrino, | |
E não tens coração como as estátuas. | |
E narram o cruel martirológio | |
Dos que são teus, ó corpo sem defeito, | |
E julgam que é monótono o teu peito | |
Como o bater cadente dum relógio. | |
Porém eu sei que tu, que como um ópio | |
Me matas, me desvairas e adormeces | |
És tão loira e doirada como as messes | |
E possuis muito amor... muito ""amor próprio"". | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Hah! | |
Há a mulher que me ama e eu não amo. | |
Há as mulheres que me acamam e eu acamo. | |
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama. | |
Ah essa mulher! | |
Tu eras mais feliz,Apollinaire. | |
montado num obus,voavas à mulher. | |
Tu foste mais feliz,meu artilheiro. | |
tiveste amor e guerra. | |
Eu andei pra marinheiro, | |
mas pus óculos e fiquei em terra. | |
Upa garupa na mulher que me acama, | |
que a outra é contigo,coração que bem queres | |
sofrer pelas mulheres... | |
in:De ombro na ombreira,1969 | |
" | |
Gregório de Matos,"Pondera Agora com Mais Atenção a Formosura de D Ângela | |
Não vi em minha vida a formosura, | |
Ouvia falar nela cada dia, | |
E ouvida me incitava, e me movia | |
A querer ver tão bela arquitetura. | |
Ontem a vi por minha desventura | |
Na cara, no bom ar, na galhardia | |
De uma Mulher, que em Anjo se mentia, | |
De um Sol, que se trajava em criatura. | |
Me matem (disse então vendo abrasar-me) | |
Se esta a cousa não é, que encarecer-me. | |
Saiba o mundo, e tanto exagerar-me. | |
Olhos meus (disse então por defender-me) | |
Se a beleza hei de ver para matar-me, | |
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me. | |
In: MATOS, Gregório de. Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992" | |
Olavo Bilac,"As Velhas Árvores | |
Olha estas velhas árvores, — mais belas, | |
Do que as árvores mais moças, mais amigas, | |
Tanto mais belas quanto mais antigas, | |
Vencedoras da idade e das procelas . . . | |
O homem, a fera e o inseto à sombra delas | |
Vivem livres de fomes e fadigas; | |
E em seus galhos abrigam-se as cantigas | |
E alegria das aves tagarelas . . . | |
Não choremos jamais a mocidade! | |
Envelheçamos rindo! envelheçamos | |
Como as árvores fortes envelhecem, | |
Na glória da alegria e da bondade | |
Agasalhando os pássaros nos ramos, | |
Dando sombra e consolo aos que padecem! | |
" | |
José Craveirinha,"Fábula | |
Menino gordo comprou um balão | |
e assoprou | |
assoprou com força o balão amarelo. | |
Menino gordo assoprou | |
assoprou | |
assoprou | |
o balão inchou | |
inchou | |
e rebentou! | |
Meninos magros apanharam os restos | |
e fizeram balõezinhos." | |
José Régio,"Metafísica | |
De cada vez que nos teus braços | |
Por uns momentos morro, | |
Nos abismos de mim o meu amor pede socorro | |
Como se à força alguém lhe desatasse os laços. | |
De cada vez apreendo | |
Que fica em muito pouco, ou nada, aquele tanto | |
Que o querer ter promete, enquanto | |
Se não tendo. | |
Desejar é que é ter! mas não nos basta. | |
Sonhar é que é possuir sem tédio nem cansaços. | |
Sei-o, mas só já morto nos teus braços. | |
Sofre a carne de ter, ou de ser casta. | |
Sobre o desejo farto, a alma se debruça, | |
Contempla o nada a que o fartá-lo aponta. | |
E atrás do mesmo nada eis que ela mesma, tonta, | |
Vai, se a carne reacende a escaramuça. | |
Entrar num corpo até onde se oculte | |
O para Lá do corpo - eis o supremo sonho. | |
De que desejos o componho, | |
Se ei-lo se descompõe quando o desejo avulte? | |
Sôfrega, a carne pede carne. Saciada, | |
Pede, ela própria, o que jamais sacia. | |
Para de novo se inflamar, é um dia. | |
Para de novo desgostar, um nada. | |
Ai, como não te amar e não te aborrecer, | |
Carne de leite e rosas, - terra inglória | |
Do longo prélio-entendimento sem vitória | |
Que é carne e alma, ter-não ter? | |
" | |
Alexandre O'Neill,"A Bicicleta | |
O meu marido | |
saiu de casa no dia | |
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta | |
a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, | |
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, | |
blusão cinzento, tipo militar, e calçava | |
botas de borracha e tinha chapéu cinzento | |
e levava na bicicleta um saco com uma manta | |
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo | |
e uma panela de esmalte azul. | |
Como não tive mais notícias, espero o pior. | |
in:As | |
horas já de números vestidas(1981) | |
" | |
José Régio,"Fado português | |
O Fado nasceu um dia, | |
quando o vento mal bulia | |
e o céu o mar prolongava, | |
na amurada dum veleiro, | |
no peito dum marinheiro | |
que, estando triste, cantava, | |
que, estando triste, cantava. | |
Ai, que lindeza tamanha, | |
meu chão, meu monte, meu vale, | |
de folhas, flores, frutas de oiro, | |
vê se vês terras de Espanha, | |
areias de Portugal, | |
olhar ceguinho de choro. | |
Na boca dum marinheiro | |
do frágil barco veleiro, | |
morrendo a canção magoada, | |
diz o pungir dos desejos | |
do lábio a queimar de beijos | |
que beija o ar, e mais nada, | |
que beija o ar, e mais nada. | |
Mãe, adeus. Adeus, Maria. | |
Guarda bem no teu sentido | |
que aqui te faço uma jura: | |
que ou te levo à sacristia, | |
ou foi Deus que foi servido | |
dar-me no mar sepultura. | |
Ora eis que embora outro dia, | |
quando o vento nem bulia | |
e o céu o mar prolongava, | |
à proa de outro veleiro | |
velava outro marinheiro | |
que, estando triste, cantava, | |
que, estando triste, cantava. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Cinco Horas | |
Minha mesa no Café, | |
Quero-lhe tanto... A garrida | |
Toda de pedra brunida | |
Que linda e fresca é! | |
Um sifão verde no meio | |
E, ao seu lado, a fosforeira | |
Diante ao meu copo cheio | |
Duma bebida ligeira. | |
(Eu bani sempre os licores | |
Que acho pouco ornamentais: | |
Os xaropes têm cores | |
Mais vivas e mais brutais.) | |
Sobre ela posso escrever | |
Os meu versos prateados, | |
Com estranheza dos criados | |
Que me olham sem perceber... | |
Sobre ela descanso os braços | |
Numa atitude alheada, | |
Buscando pelo ar os traços | |
Da minha vida passada. | |
Ou acendendo cigarros, | |
— Pois há um ano que fumo — | |
Imaginário presumo | |
Os meus enredos bizarros. | |
(E se acaso em minha frente | |
Uma linda mulher brilha, | |
O fumo da cigarrilha | |
Vai beijá-la, claramente) | |
Um novo freguês que entra | |
É novo actor no tablado, | |
Que o meu olhar fatigado | |
Nele outro enredo concentra. | |
É o carmim daquela boca | |
Que ao fundo descubro, triste, | |
Na minha idéia persiste | |
E nunca mais se desloca. | |
Cinge tais futilidades | |
A minha recordação, | |
E destes vislumbres são | |
As minhas maiores saudades... | |
(Que história de Oiro tão bela | |
Na minha vida abortou: | |
Eu fui herói de novela | |
Que autor nenhum empregou...) | |
Nos cafés espero a vida | |
Que nunca vem ter comigo: | |
— Não me faz nenhum castigo, | |
Que o tempo passa em corrida. | |
Passar tempo é o meu fito, | |
Ideal que só me resta: | |
Pra mim não há melhor festa, | |
Nem mais nada acho bonito. | |
— Cafés da minha preguiça, | |
Sois hoje — que galardão! — | |
Todo o meu campo de acção | |
E toda minha cobiça. | |
" | |
Cora Coralina,"A Escola da Mestra Silvina | |
Minha escola primária... | |
Escola antiga de antiga mestra. | |
Repartida em dois períodos | |
para a mesma meninada, | |
das 8 às 11, da 1 às 4. | |
Nem recreio, nem exames. | |
Nem notas, nem férias. | |
Sem cânticos, sem merenda... | |
Digo mal — sempre havia | |
distribuídos | |
alguns bolos de palmatória... | |
A granel? | |
Não, que a Mestra | |
era boa, velha, cansada, aposentada. | |
Tinha já ensinado a uma geração | |
antes da minha. | |
A gente chegava ""— Bença, Mestra."" | |
Sentava em bancos compridos, | |
escorridos, sem encosto. | |
Lia alto lições de rotina: | |
o velho abecedário, | |
lição salteada. | |
Aprendia a soletrar. | |
Vinham depois: | |
Primeiro, segundo, | |
terceiro e quarto livros | |
do erudito pedagogo | |
Abílio César Borges — | |
Barão de Macaúbas. | |
E as máximas sapientes | |
do Marquês de Maricá. | |
(...) | |
Num prego de forja, saliente na parede, | |
estirava-se a palmatória. | |
Porta de dentro abrindo | |
numa alcova escura. | |
Um velhíssimo armário. | |
Canastras tacheadas. | |
Um pote d'água. | |
Um prato de ferro. | |
Uma velha caneca, coletiva, | |
enferrujada. | |
Minha escola da Mestra Silvina... | |
Silvina Ermelinda Xavier de Brito. | |
Era todo o nome dela. | |
Velhos colegas daquele tempo, | |
onde andam vocês? | |
(...) | |
E faço a chamada de saudade | |
dos colegas: | |
Juca Albernaz, Antônio, | |
João de Araújo, Rufo. | |
Apulcro de Alencastro, | |
Vítor de Carvalho Ramos. | |
Hugo das Tropas e Boiadas. | |
Benjamim Vieira. | |
Antônio Rizzo. | |
Leão Caiado, Orestes de Carvalho. | |
Natanael Lafaiete Póvoa. | |
Marica. Albertina Camargo. | |
Breno — ""Escuto e tua voz vai | |
se apagando com um dolente ciciar | |
de prece"". | |
(...) | |
E a Mestra?... | |
Está no Céu. | |
In: CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Prefácio de J. B. Martins Ramos. Apresentação de Oswaldino Marques, Lena Castello Branco Ferreira Costa e Silvia Alessandri Monteiro de Castro. 16. ed. São Paulo: Global, 199" | |
Al Berto,"Eremitério | |
mais nada se move em cima do papel | |
nenhum olho de tinta iridescente pressagia | |
o destino deste corpo | |
os dedos cintilam no húmus da terra | |
e eu | |
indiferente à sonolência da língua | |
ouço o eco do amor há muito soterrado | |
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço | |
no interior dessa ânfora alucinada | |
desço com a lentidão ruiva das feras | |
ao nervo onde a boca procura o sul | |
e os lugares dantes povoados | |
ah meu amigo | |
demoraste tanto a voltar dessa viagem | |
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas | |
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão | |
assim me habituei a morrer sem ti | |
com uma esferográfica cravada no coração" | |
Cacaso,"Lero-Lero | |
Sou brasileiro | |
de estatura mediana | |
gosto muito de fulana | |
mas sicrana é quem me quer | |
porque no amor | |
quem perde quase sempre ganha | |
veja só que coisa estranha | |
saia dessa se puder | |
Eu sou poeta | |
e não nego minha raça | |
faço verso por pirraça | |
e também por precisão | |
de pé quebrado | |
verso branco rima rica | |
negaceio dou a dica | |
tenho a minha solução | |
Não guardo mágoa | |
não blasfemo não pondero | |
não tolero lero-lero | |
devo nada pra ninguém | |
sou esforçado | |
minha vida levo a muque | |
do batente pro batuque | |
faço como me convém | |
Sou brasileiro | |
tatu-peba taturana | |
bom de bola ruim de grana | |
tabuada sei de cor | |
4 x 7 | |
28 noves fora | |
ou a onça me devora | |
ou no fim vou rir melhor | |
Não entro em rifa | |
não adoço não tempero | |
não remarco o marco zero | |
se falei não volto atrás | |
por onde passo | |
deixo rastro deito fama | |
desarrumo toda trama | |
desacato satanás | |
Diz um ditado | |
natural da minha terra | |
bom cabrito é o que mais berra | |
onde canta o sabiá | |
desacredito | |
no azar da minha sina | |
tico-tico de rapina | |
ninguém leva o meu fubá | |
Publicado no livro Mar de mineiro: poemas e canções (1982). Poema integrante da série Sete Preto. | |
In: CACASO. Beijo na boca e outros poemas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.154-155 | |
NOTA: Música de Edu Lobo. Referência à ""Canção do Exílo"", do livro PRIMEIROS CANTOS (1846), de Gonçalves Dias, e à canção ""Tico-Tico no Fubá"", de Zequinha de Abre" | |
Alexandre O'Neill,"Fala | |
Fala a sério | |
e fala no gozo | |
Fá-la pla calada e fala claro | |
Fala deveras saboroso | |
Fala barato e fala caro | |
Fala ao ouvido | |
fala ao coração | |
Falinhas mansas ou palavrão | |
Fala à | |
miúda mas fá-la bem | |
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe | |
Fala francês | |
fala béu-béu | |
Fala fininho | |
e fala grosso | |
Desentulha a garganta levanta o percoço | |
Fala como se falar fosse andar | |
Fala com elegância - muito e devagar. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"O rato e o anjo | |
Há um rato para cada português | |
Dos jornais | |
Anjo guardum | |
pra cada um | |
Da província | |
Um rato e um anjo de guarda | |
para cada. | |
Anjo defende o acto | |
mau, | |
a fazer ou a sofrer. | |
Rato celebra contrato? | |
Qual! | |
Rato rói, | |
até na orelha. | |
Anjo dói | |
de outra maneira. | |
Mas eis que,nestes enredos, | |
há dois a mais,um a menos. | |
Cai ao anjo a pena, | |
ao rato o pelame. | |
Um regressa ao seu enxame, | |
o outro à sua caverna. | |
E o português,desanjado, | |
já se vê desratizado. | |
Chora. | |
" | |
Nuno Júdice,"Soneto | |
Lábios | |
que encontram outros lábios | |
num meio de caminho, como peregrinos | |
interrompendo a devoção, nem pobres | |
nem sábios numa embriaguez sem vinho: | |
que silêncio os entontece quando | |
de súbito se tocam e, cegos ainda, | |
procuram a saída que o olhar esquece | |
num murmúrio de vagos segredos? | |
É de tarde, na melancolia turva | |
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos | |
escorrer sob o azul dos céus quentes, | |
que essa imagem desce de agosto, ou | |
setembro, e se enrola sem desgosto | |
no chão obscuro desse amor que lembro. | |
" | |
Cecília Meireles,"Ísis | |
E diz-me a desconhecida: | |
""Mais depressa! Mais depressa! | |
""Que eu vou te levar a vida! . . . | |
""Finaliza! Recomeça! | |
""Transpõe glórias e pecados! . . ."" | |
Eu não sei que voz seja essa | |
Nos meus ouvidos magoados: | |
Mas guardo a angústia e a certeza | |
De ter os dias contados . . . | |
Rolo, assim, na correnteza | |
Da sorte que se acelera, | |
Entre margens de tristeza, | |
Sem palácios de quimera, | |
Sem paisagens de ventura, | |
Sem nada de primavera . . . | |
Lá vou, pela noite escura, | |
Pela noite de segredo, | |
Como um rio de loucura . . . | |
Tudo em volta sente medo . . . | |
E eu passo desiludida, | |
Porque sei que morro cedo . . . | |
Lá me vou, sem despedida . . . | |
Às vezes, quem vai, regressa . . . | |
E diz-me a Desconhecida: | |
""Mais depressa"" Mais depressa"" . . . | |
" | |
Cacaso,"Jogos Florais I | |
Minha terra tem palmeiras | |
onde canta o tico-tico. | |
Enquanto isso o sabiá | |
vive comendo o meu fubá. | |
Ficou moderno o Brasil | |
ficou moderno o milagre: | |
a água já não vira vinho, | |
vira direto vinagre. | |
Publicado no livro Grupo Escolar (1974). Poema integrante da série 3a. Lição: Dever de Caça. | |
In: CACASO. Beijo na boca e outros poemas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.110 | |
NOTA: Paródia da ""Canção do Exílio"", do livro PRIMEIROS CANTOS (1846), de Gonçalves Dias, e da canção ""Tico-Tico no Fubá"", de Zequinha de Abre" | |
Manuel Bandeira,"PRIMEIRA CANÇÃO DO BECO | |
Teu corpo dúbio, irresoluto | |
De intersexua isputadíssima, | |
Teu corpo, magro não, enxuto, | |
Lavado, esfregado, batido, | |
Destilado, asséptico, insípido | |
E perfeitamente inodoro | |
É o flagelo de minha vida, | |
Ó esquizóide! ó leptossômica! | |
Por ele sofro há bem dez anos | |
(Anos que mais parecem séculos) | |
Tamanhas atribuições, | |
Que às vezes viro lobsomem. | |
E estraçalhado de desejos | |
Divago com os cães danados | |
A horas mortas, por becos sórdidos! | |
Põe paradeiro a este tormento! | |
Liberta-me do atroz recalque! | |
Vem ao meu quarto desolado | |
Por estas sombras de convento, | |
E propicia aos meus sentidos | |
Atônitos, horrorizados | |
A folha-morta, o parafuso. | |
O trauma, o estupor, o decúbito! | |
" | |
Miguel Torga,"Prece | |
Senhor, | |
deito-me na cama | |
Coberto de sofrimento; | |
E a todo o comprimento | |
Sou sete palmos de lama: | |
Sete palmos de excremento | |
Da terra-mãe que me chama. | |
Senhor, ergo-me do fim | |
Desta minha condição | |
Onde era sim, digo não | |
Onde era não digo sim; | |
Mas não calo a voz do chão | |
Que grita dentro de mim. | |
Senhor, acaba comigo | |
Antes do dia marcado; | |
Um golpe bem acertado, | |
O tiro de um inimigo..... | |
Qualquer pretexto tirado | |
Dos sarcasmos que te digo. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"NOSSA SENHORA DE PARIS | |
Um cheiro a maresia | |
Vem me refrescar, | |
Longínqua melodia | |
Toda saudosa a Mar... | |
Mirtos e tamarindos | |
Odoram a lonjura; | |
Resvalam sonhos lindos... | |
Mas o oiro não perdura | |
E a noite cresce agora a desabar catedrais... | |
Fico sepulto sob círios, | |
Escureço-me em delírios | |
Mas ressurjo de Ideais... | |
- Os meus sentidos a escoarem-se... | |
Altares e velas... | |
Orgulho... Estrelas... | |
Vitrais! Vitrais! | |
Flores de liz... | |
Manchas de cor a ogivarem-se... | |
As grandes naves a sagrarem-se... | |
- Nossa Senhora de Paris!... | |
" | |
Herberto Helder,"Lugar II | |
Há sempre uma noite terrível para quem se despede | |
do esquecimento. Para quem sai, | |
ainda louco de sono, do meio | |
do silêncio. Uma noite | |
ingénua para quem canta. | |
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou | |
que varre as pedras da cabeça. | |
Que mexe na língua a cinza desprendida. | |
E alguém me pede: canta. | |
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio: | |
canta até te mudares em cão azul, | |
ou estrela electrocutada, ou em homem | |
nocturno. Eu penso | |
também que cantaria para além das portas até | |
raízes de chuva onde peixes | |
cor de vinho se alimentam | |
de raios, seixos límpidos. | |
Até à manhã orçando | |
pedúnculos e gotas ou teias que balançam | |
contra o hálito. | |
Até à noite que retumba sobre as pedreiras. | |
Canta - dizem em mim - até ficares | |
como um dia órfão contornado | |
por todos os estremecimentos. | |
E eu cantarei transformando-me em campo | |
de cinza transtornada. | |
Em dedicatória sangrenta. | |
Há em cada instante uma noite sacrificada | |
ao pavor e à alegria. | |
Embatente com suas morosas trevas. | |
Desde o princípio, uma onde que se abre | |
no corpo, degraus e degraus de uma onda. | |
E alaga as mãos que brilham e brilham. | |
Digo que amaria o interior da minha canção, | |
seus tubos de som quente e soturno. | |
Há uma roda de dedos no ar. | |
A língua flamejante. | |
Noite, uma inextinguível | |
inexprimível | |
noite. Uma noite máxima pelo pensamento. | |
Pela voz entre as águas tão verdes do sono. | |
Antiguidade que se transfigura, ladeada | |
por gestos ocupados no lume. | |
Pedem tanto a quem ama: pedem | |
o amor. Ainda pedem | |
a solidão e a loucura. | |
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria. | |
E eles querem dizer: tu darás a tua existência | |
ardida, a pura mortalidade. | |
Às mulheres amadas darei as pedras voantes, | |
uma a uma, os pára- | |
-raios abertíssimos da voz. | |
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono | |
onde um copo fala | |
fusiforme | |
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro. | |
Dá-nos tua ardente e sombria transformação. | |
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes, | |
lentamente uma sobre a outra. | |
Quando se esclarecem as portas que rodam | |
para o lugar da noite tremendamente | |
clara. Noite de uma voz | |
humana. De uma acumulação | |
atrasada e sufocante. | |
Há sempre sempre uma ilusão abismada | |
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo | |
do cruzamento do fogo. | |
Prodígio para as vozes de uma vida repentina. | |
E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama | |
sentam-se e dizem: | |
ama-nos. E ele ama-as. | |
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê | |
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado | |
pela vida quimérica das pedras. | |
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas. | |
Ele arranca os dedos armados pelo fogo | |
e oferece-os à noite fabulosa. | |
Ilumina de tantos dedos | |
a cândida variedade das mulheres amadas. | |
E se ele acorda, então dizem-lhe | |
que durma e sonhe. | |
E ele morre e passa de um dia para outro. | |
Inspira os dias, leva os dias | |
para o meio da eternidade, e Deus ajuda | |
a amarga beleza desses dias. | |
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício | |
da beleza. | |
Porque não haverá paz para aquele que ama. | |
Seu ofício é incendiar povoações, roubar | |
e matar, | |
e alegrar o mundo, e aterrorizar, | |
e queimar os lugares reticentes deste mundo. | |
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio | |
da noite aparecente, | |
votar a vida à interna fonte dos povos. | |
Deve instaurar o corpo e subi-lo, | |
lanço a lanço, | |
cantando leve e profundo. | |
Com as feridas. | |
Com todas as flores hipnotizadas. | |
Deve ser aéreo e implacável. | |
Sobre o sono envolvida pelas gotas | |
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas | |
pedras. Sobre o interior | |
da respiração com sua massa | |
de apagadas estrelas. Noite alargada | |
e terrível terrível noite para uma voz | |
se libertar. Para uma voz dura, | |
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída. | |
Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som. | |
E se as mulheres colocam os dedos sobre | |
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante, | |
ele não deve ser como o maior violino. | |
Ele será o único único violino | |
Porque nele começará a música dos violinos gerais | |
e acabará a inovação cantada. | |
Porque aquele que ama nasce e morre. | |
Vive nele o fim espalhado da terra. | |
" | |
Chacal,"Rápido e Rasteiro | |
Vai ter uma festa | |
que eu vou dançar | |
até o sapato pedir pra parar. | |
aí eu paro | |
tiro o sapato | |
e danço o resto da vida. | |
" | |
Luís de Camões,"Eu cantarei de amor tão docemente | |
Eu cantarei de amor tão docemente, | |
Por uns termos em si tão concertados, | |
Que dois mil acidentes namorados | |
Faça sentir ao peito que não sente. | |
Farei que amor a todos avivente, | |
Pintando mil segredos delicados, | |
Brandas iras, suspiros magoados, | |
Temerosa ousadia e pena ausente. | |
Também, Senhora, do desprezo honesto | |
De vossa vista branda e rigorosa, | |
Contentar-me-ei dizendo a menor parte. | |
Porém, pera cantar de vosso gesto | |
A composição alta e milagrosa | |
Aqui falta saber, engenho e arte. | |
" | |
Ulisses Tavares,"Soneto Desbundado | |
a poesia pode ser quadrada | |
enquadrada para sê-la | |
camisa-de-força rimada | |
fazer ouvir estrelas. | |
nada impede também a poesia | |
de não falar coisa com coisa | |
igual jacaré escrevendo na lousa | |
em vez de preta, da cor do dia. | |
por que não a poesia, menina | |
cantando detalhes simples | |
um beijo, pulo na piscina? | |
tímida, pirada, sortida | |
negócio de poesia é este: riiip | |
rasgar o coração da vida. | |
In: TAVARES, Ulisses. Caindo na real. Il. Angeli. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.73. (Jovens do mundo todo" | |
Cesário Verde,"Contrariedades | |
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente; | |
Nem posso tolerar os livros mais bizarros. | |
Incrível! Já fumei três maços de cigarros | |
Consecutivamente. | |
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos: | |
Tanta depravação nos usos, nos costumes! | |
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes | |
E os ângulos agudos. | |
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora | |
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; | |
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes | |
E engoma para fora. | |
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas! | |
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. | |
Lidando sempre! E deve conta à botica! | |
Mal ganha para sopas... | |
O obstáculo estimula, torna-nos perversos; | |
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, | |
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, | |
Um folhetim de versos. | |
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta | |
No fundo da gaveta. O que produz o estudo? | |
Mais uma redacção, das que elogiam tudo, | |
Me tem fechado a porta. | |
A crítica segundo o método de Taine | |
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa | |
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa | |
Vale um desdém solene. | |
Com raras excepções, merece-me o epigrama. | |
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo, | |
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho | |
Diverte-se na lama. | |
Eu nunca dediquei poemas às fortunas, | |
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas. | |
Independente! Só por isso os jornalistas | |
Me negam as colunas. | |
Receiam que o assinante ingénuo os abandone, | |
Se forem publicar tais coisas, tais autores. | |
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores | |
Deliram por Zaccone. | |
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa, | |
Obtém dinheiro, arranja a sua ""coterie""; | |
E a mim, não há questão que mais me contrarie | |
Do que escrever em prosa. | |
A adulaçãao repugna aos sentimento finos; | |
Eu raramente falo aos nossos literatos, | |
E apuro-me em lançar originais e exactos, | |
Os meus alexandrinos... | |
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso! | |
Ignora que a asfixia a combustão das brasas, | |
Não foge do estendal que lhe humedece as casas, | |
E fina-se ao desprezo! | |
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova. | |
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente, | |
Oiço-a cantarolar uma canção plangente | |
Duma opereta nova! | |
Perfeitamente. Vou findar sem azedume. | |
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas, | |
Conseguirei reler essas antigas rimas, | |
Impressas em volume? | |
Nas letras eu conheço um campo de manobras; | |
Emprega-se a ""réclame"", a intriga, o anúncio, a ""blague"", | |
E esta poesia pede um editor que pague | |
Todas as minhas obras... | |
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha? | |
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia? | |
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia... | |
Que mundo! Coitadinha! | |
" | |
Cesário Verde,"Cabelos | |
Ó vagas de cabelos esparsas longamente, | |
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, | |
E tendes o cristal dum lago refulgente | |
E a rude escuridão dum largo e negro mar; | |
Cabelos torrenciais daquela que me enleva, | |
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus | |
No báratro febril da vossa grande treva, | |
Que tem cintilações e meigos céus de luz. | |
Deixai-me navegar, morosamente, a remos, | |
Quando ele estiver brando e livre de tufões, | |
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos | |
E enchamos de harmonia as amplas solidões. | |
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos | |
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom | |
Como um licor renano a fermentar nos copos, | |
Abismo que se espraia em rendas de Alençon! | |
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável, | |
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais, | |
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável, | |
Entre o rumor banal do hinos triunfais; | |
Consente que eu aspire esse perfume raro, | |
Que exalas da cabeça erguida com fulgor, | |
Perfume que estonteia um milionário avaro | |
E faz morrer de febre um pobre sonhador. | |
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos, | |
E vais na direcção constante do querer, | |
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos, | |
Que fazem mansamente amar e enlanguescer. | |
E a tua cabeleira, errante pelas costas, | |
Suponho que te serve, em noites de Verão, | |
De flácido espaldar aonde te recostas | |
Se sentes o abandono e a morna prostração. | |
E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos, | |
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor | |
Que antigamente deu, nos circos dos romanos, | |
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador. | |
................................................ | |
................................................ | |
Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio, | |
Na vossa vastidão posso talvez morrer! | |
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio | |
E quero asfixiar-me em ondas de prazer. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Canto Primeiro | |
(...) | |
Dos Gamelas um chefe destemido, | |
Cioso d'alcançar renome e glória, | |
Vencendo a fama, que os sertões enchia, | |
Saiu primeiro a campo, armado e forte, | |
Guedelha e ronco dos sertões imensos, | |
Guerreiros mil e mil vinham trás ele, | |
Cobrindo os montes e juncando as matas. | |
Com pejado carcaz de ervadas setas | |
Tingidas d'urucu, segundo a usança | |
Bárbara e fera, desgarrados gritos | |
Davam no meio das canções de guerra. | |
Chegou, e fez saber que era chegado | |
O rei das selvas a propor combate | |
Dos Timbiras ao chefe. — ""A nós só caiba | |
(Disse ele) a honra e a glória; entre nós ambos | |
Decida-se a questão do esforço e brios. | |
Estes, que vês, impávidos guerreiros, | |
São meus, que me obedecem; se me vences, | |
São teus; se és o vencido, os teus me sigam: | |
Aceita ou foge, que a vitória é minha."" | |
""Não fugirei"", responde-lhe Itajuba, | |
""Que os homens, meus iguais, encaram fito | |
O sol brilhante, e os não deslumbra o raio"". | |
""Serás, pois que me afrontas, torna o bárbaro, | |
Do meu valor troféu, — e da vitória, | |
Qu'hei de certo alcançar, despojo opimo. | |
Nas tabas em que habito ora as mulheres | |
Tecem da sapucaia as longas cordas, | |
Que os pulsos teus hão de arrochar-te em breve; | |
E tu vil, e tu preso, e tu coberto | |
D'escárnio e d'irrisão! — Cheio de glória, | |
Além dos Andes voará meu nome!"" | |
O filho de Jaguar sorriu-se a furto: | |
Assim o pai sorri ao filho imberbe, | |
Que, desprezado o arco seu pequeno, | |
Talhado para aquelas mãos sem forças, | |
Tenta doutro maior curvar as pontas, | |
Que vezes três o mede em toda a altura! | |
Travaram luta fera os dois guerreiros. | |
Primeiro ambos de longe as setas vibram; | |
Amigos manitôs, que ambos protegem, | |
Nos ares as desgarram. Do Gamela | |
Entrou a frecha trêmula num tronco | |
E só parou no cerne; a do Timbira, | |
Ciciando veloz, fugiu mais longe, | |
Roçando apenas os frondosos cimos. | |
Encontram-se os Tacapes, lá se partem; | |
Ambos o punho inútil rejeitando, | |
Estreitam-se valentes: braço a braço, | |
Alentando açodados, peito a peito, | |
Revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe | |
Rouqueja o peito arfado um som confuso. | |
(...) | |
Imagem - 00250001 | |
Publicado no livro Os Timbiras (1857). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Raimundo Correia,"Anoitecer | |
A Adelino Fontoura | |
Esbraseia o Ocidente na agonia | |
O sol... Aves em bandos destacados, | |
Por céus de oiro e de púrpura raiados | |
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia... | |
Delineiam-se, além, da serrania | |
Os vértices de chama aureolados, | |
E em tudo, em torno, esbatem derramados | |
Uns tons suaves de melancolia... | |
Um mundo de vapores no ar flutua... | |
Como uma informe nódoa, avulta e cresce | |
A sombra à proporção que a luz recua... | |
A natureza apática esmaece... | |
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua | |
Surge trêmula, trêmula... Anoitece. | |
Publicado no livro Sinfonias (1883). | |
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.120" | |
Mário Quintana,"Dos Nossos Males | |
A nós bastem nossos próprios ais, | |
Que a ninguém sua cruz é pequenina. | |
Por pior que seja a situação da China, | |
Os nossos calos doem muito mais... | |
" | |
Carlos Drummond de Andrade,"O que se passa na cama | |
(O que se passa na cama | |
é segredo de quem ama.) | |
É segredo de quem ama | |
não conhecer pela rama | |
gozo que seja profundo, | |
elaborado na terra | |
e tão fora deste mundo | |
que o corpo, encontrando o corpo | |
e por ele navegando, | |
atinge a paz de outro horto, | |
noutro mundo: paz de morto, | |
nirvana, sono do pênis. | |
Ai, cama canção de cuna, | |
dorme, menina, nanana, | |
dorme onça suçuarana, | |
dorme cândida vagina, | |
dorme a última sirena | |
ou a penúltima… O pênis | |
dorme, puma, americana | |
fera exausta. Dorme, fulva | |
grinalda de tua vulva. | |
E silenciem os que amam, | |
entre lençol e cortina | |
ainda úmidos de sêmen, | |
estes segredos de cama. | |
" | |
Chacal,"Reclame | |
se o mundo não vai bem | |
a seus olhos, use lentes | |
... ou transforme o mundo. | |
ótica olho vivo | |
agradece a preferência | |
" | |
Manuel Bandeira,"Auto-Retrato | |
Provinciano que nunca soube | |
Escolher bem uma gravata; | |
Pernambucano a quem repugna | |
A faca do pernambucano; | |
Poeta ruim que na arte da prosa | |
Envelheceu na infância da arte, | |
E até mesmo escrevendo crônicas | |
Ficou cronista de província; | |
Arquiteto falhado, músico | |
Falhado (engoliu um dia | |
Um piano, mas o teclado | |
Ficou de fora); sem família, | |
Religião ou filosofia; | |
Mal tendo a inquietação de espírito | |
Que vem do sobrenatural, | |
E em matéria de profissão | |
Um tísico profissional. | |
" | |
Miguel Torga,"Claridade | |
Clareou. | |
Vieram pombas e sol, | |
E de mistura com o sonho | |
Posou tudo num telhado... | |
Eu destas grades a ver | |
Desconfiado | |
Depois | |
Uma rapariga loura | |
(era loura) | |
num mirante | |
estendeu roupa num cordel: | |
roupa branca, remendada | |
que se via | |
que era de gente lavada, | |
e só por isso aquecia... | |
E não foi preciso mais: | |
Logo a alma | |
Clareou por sua vez. | |
Logo o coração parado | |
Bateu a grande pancada | |
Da vida com sol e pombas | |
E roupa branca, lavada. | |
" | |
Al Berto,"Horto | |
homens cegos procuram a visão do amor onde os dias ergueram esta parede intransponível caminham vergados no zumbido dos ventos com os braços erguidos - cantam a linha do horizonte é uma lâmina corta os cabelos dos meteoros - corta as faces dos homens que espreitam para o palco nocturno das invisíveis cidades escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios adormecem sempre antes que a cinza dos olhos arda e se disperse no fundo do muito longe ouve-se um lamento escuro quando a alba se levanta de novo no horto dos incêndios prosseguem caminho com a voz atada por uma corda de lírios os cegos são o corpo de um fogo lento - uma sarça que se acende subitamente por dentro." | |
Vinicius de Moraes,"O Peru | |
Glu! Glu! Glu! | |
Abram alas pro Peru! | |
O Peru foi a passeio | |
Pensando que era pavão | |
Tico-tico riu-se tanto | |
Que morreu de congestão. | |
O Peru dança de roda | |
Numa roda de carvão | |
Quando acaba fica tonto | |
De quase cair no chão. | |
O Peru se viu um dia | |
Nas águas do ribeirão | |
Foi-se olhando foi dizendo | |
Que beleza de pavão! | |
Glu! Glu! Glu! | |
Abram alas pro Peru! | |
" | |
Fernando Pessoa,"Eu amo tudo o que foi, | |
Eu amo tudo o que foi, | |
Tudo o que já não é, | |
A dor que já me não dói, | |
A antiga e errónea fé, | |
O ontem que dor deixou, | |
O que deixou alegria | |
Só porque foi, e voou | |
E hoje é já outro dia. | |
1931" | |
Al Berto,"Tentativas para um Regresso à Terra | |
O sol ensina o único caminho | |
a voz da memória irrompe lodosa | |
ainda não partimos e já tudo esquecemos | |
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente | |
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras | |
falamos rios deste regresso e pelas margens ressoam | |
passos | |
os poços onde nos debruçamos aproximam-se | |
perigosamente | |
da ausência e da sede procuramos os rostos na água | |
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou | |
de oásis em oásis | |
hoje | |
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar | |
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos | |
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco | |
a planície | |
caminhamos ainda | |
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos | |
a fuga só é possível dentro dos fragmentados corpos | |
e um dia......quem sabe? | |
chegaremos" | |
Fernando Pessoa,"Maravilha-te, memória! | |
Maravilha-te, memória! | |
Lembras o que nunca foi, | |
E a perda daquela história | |
Mais que uma perda me dói. | |
Meus contos de fadas meus – | |
Rasgaram-lhe a última folha... | |
Meus cansaços são ateus | |
Dos deuses da minha escolha... | |
Mas tu, memória, condizes | |
Com o que nunca existiu... | |
Torna-me aos dias felizes | |
E deixa chorar quem riu. | |
21/08/1930" | |
Florbela Espanca,"Navios-fantasmas | |
O arabesco fantástico do fumo | |
Do meu cigarro traça o que disseste, | |
A azul, no ar, e o que me escreveste, | |
E tudo o que sonhastes e eu presumo. | |
Para a minha alma estática e sem rumo, | |
A lembrança de tudo o que me deste | |
Passa como o navio que perdestes, | |
No arabesco fantástico do fumo... | |
Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros, | |
Têm o brilho rutilante de astros, | |
Navios-fantasmas, perdem-se a distância! | |
Vão-me buscar, sem mastros e sem velas, | |
Noiva-menina, a doidas caravelas, | |
Ao ignoto País da minha infância... | |
" | |
Miguel Torga,"Orfeu Rebelde | |
Orfeu rebelde, canto como sou: | |
Canto como um possesso | |
Que na casca do tempo, a canivete, | |
Gravasse a fúria de cada momento; | |
Canto, a ver se o meu canto compromete | |
A eternidade no meu sofrimento. | |
Outros, felizes, sejam rouxinóis... | |
Eu ergo a voz assim, num desafio: | |
Que o céu e a terra, pedras conjugadas | |
Do moinho cruel que me tritura, | |
Saibam que ha gritos como há nortadas, | |
Violências famintas de ternura. | |
Bicho instintivo que adivinha a morte | |
No corpo dum poeta que a recusa, | |
Canto como quem usa | |
Os versos em legitima defesa. | |
Canto, sem perguntar à Musa | |
Se o canto é de terror ou de beleza. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"O amor | |
é o amor | |
O amor é o amor -e depois?! | |
Vamos ficar os dois | |
a imaginar,a imaginar?... | |
O meu peito contra o teu peito, | |
cortando o mar,cortando o ar. | |
Num leito | |
há todo o espaço para amar! | |
Na nossa carne estamos | |
sem destino,sem medo,sem pudor, | |
e trocamos -somos um? somos dois?- | |
espírito e calor! | |
O amor é o amor -e depois?! | |
in:Abandono Vigiado(1960) | |
" | |
Herberto Helder,"Fonte - I | |
Ela é a fonte. Eu posso saber que é | |
a grande fonte | |
em que todos pensaram. Quando no campo | |
se procurava o trevo, ou em silêncio | |
se esperava a noite, | |
ou se ouvia algures na paz da terra | |
o urdir do tempo --- | |
cada um pensava na fonte. Era um manar | |
secreto e pacífico. | |
Uma coisa milagrosa que acontecia | |
ocultamente. | |
Ninguém falava dela, porque | |
era imensa. Mas todos a sabiam | |
como a teta. Como o odre. | |
Algo sorria dentro de nós. | |
Minhas irmãs faziam-se mulheres | |
suavemente. Meu pai lia. | |
Sorria dentro de mim uma aceitação | |
do trevo, uma descoberta muito casta. | |
Era a fonte. | |
Eu amava-a dolorosa e tranquilamente. | |
A lua formava-se | |
com uma ponta subtil de ferocidade, | |
e a maçã tomava um princípio | |
de esplendor. | |
Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento | |
perdeu-se e renasceu. | |
Hoje sei permanentemente que ela | |
é a fonte." | |
Cesário Verde,"Eu, que sou feio | |
Eu, que sou feio, sólido, leal, | |
A ti, que és bela, frágil, assustada, | |
Quero estimar-te, sempre, recatada | |
Numa existência honesta, de cristal. | |
Sentado à mesa dum café devasso. | |
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura. | |
Nesta Babel tão velha e corruptora, | |
Tive tenções de oferecer-te o braço. | |
E, quando socorreste um miserável, | |
Eu que bebia cálices de absinto, | |
Mandei ir a garrafa, porque sinto | |
Que me tornas prestante, bom, saudável. | |
«Ela aí vem!» disse eu para os demais; | |
E pus-me a olhar, vexado e suspirando, | |
O teu corpo que pulsa, alegre e brando, | |
Na frescura dos linhos matinais. | |
Via-te pela porta envidraçada; | |
E invejava, - talvez não o suspeites!- | |
Esse vestido simples, sem enfeites, | |
Nessa cintura tenra, imaculada. | |
Ia passando, a quatro, o patriarca. | |
Triste eu saí. Doía-me a cabeça. | |
Uma turba ruidosa, negra, espessa, | |
Voltava das exéquias dum monarca. | |
Adorável! Tu muito natural, | |
Seguias a pensar no teu bordado; | |
Avultava, num largo arborizado, | |
Uma estátua de rei num pedestal. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Casa na chuva | |
A chuva,outra vez a chuva sobre as oliveiras.Não sei por que voltou esta tardese minha mãe já se foi embora,já não vem à varanda para a ver cair,já não levanta os olhos da costurapara perguntar:Ouves?Oiço,mãe,é outra vez a chuva,a chuva sobre o teu rosto.de Escrita da Terra" | |
Carlos Drummond de Andrade,"A moça mostrava a coxa | |
A moça mostrava a coxa, | |
a moça mostrava a nádega, | |
só não mostrava aquilo | |
– concha, berilo, esmeralda – | |
que se entreabre, quatrifólio, | |
e encerrra o gozo mais lauto, | |
aquela zona hiperbórea, | |
misto de mel e de asfalto, | |
porta hermética nos gonzos | |
de zonzos sentidos presos, | |
ara sem sangue de ofícios, | |
a moça não me mostrava. | |
E torturando-me, e virgem | |
no desvairado recato | |
que sucedia de chofre | |
á visão dos seios claros, | |
qua pulcra rosa preta | |
como que se enovelava, | |
crespa, intata, inacessível, | |
abre-que-fecha-que-foge, | |
e a fêmea, rindo, negava | |
o que eu tanto lhe pedia, | |
o que devia ser dado | |
e mais que dado, comido. | |
Ai, que a moça me matava | |
tornando-me assim a vida | |
esperança consumida | |
no que, sombrio, faiscava. | |
Roçava-lhe a perna. Os dedos | |
descobriam-lhe segredos | |
lentos, curvos, animais, | |
porém o maximo arcano, | |
o todo esquivo, noturno, | |
a tríplice chave de urna, | |
essa a louca sonegava, | |
não me daria nem nada. | |
Antes nunca me acenasse. | |
Viver não tinha propósito, | |
andar perdera o sentido, | |
o tempo não desatava | |
nem vinha a morte render-me | |
ao luzir da estrela-dalva, | |
que nessa hora já primeira, | |
violento, subia o enjoo | |
de fera presa no Zôo. | |
Como lhe sabia a pele, | |
em seu côncavo e convexo, | |
em seu poro, em seu dourado | |
pêlo de ventre! mas sexo | |
era segredo de Estado. | |
Como a carne lhe sabia | |
a campo frio, orvalhado, | |
onde uma cobra desperta | |
vai traçando seu desenho | |
num frêmito, lado a lado! | |
Mas que perfume teria | |
a gruta invisa? que visgo, | |
que estreitura, que doçume, | |
que linha prístina, pura, | |
me chamava, me fugia? | |
Tudo a bela me ofertava, | |
e que eu beijasse ou mordesse, | |
fizesse sangue: fazia. | |
Mas seu púbis recusava. | |
Na noite acesa, no dia, | |
sua coxa se cerrava. | |
Na praia, na ventania, | |
quando mais eu insistia, | |
sua coxa se apertava. | |
Na mais erma hospedaria | |
fechada por dentro a aldrava, | |
sua coxa se selava, | |
se encerrava, se salvava, | |
e quem disse que eu podia | |
fazer dela minha escrava? | |
De tanto esperar, porfia | |
sem vislumbre de vitória, | |
já seu corpo se delia, | |
já se empana sua glória, | |
já sou diverso daquele | |
que por dentro se rasgava, | |
e não sei agora ao certo | |
se minha sede mais brava | |
era nela que pousava. | |
Outras fontes, outras fomes, | |
outros flancos: vasto mundo, | |
e o esquecimento no fundo. | |
Talvez que a moça hoje em dia... | |
Talvez. O certo é que nunca. | |
E se tanto se furtara | |
com tais fugas e arabescos | |
e tão surda teimosia, | |
por que hoje se abriria? | |
Por que viria ofertar-me | |
quando a noite já vai fria, | |
sua nívea rosa preta | |
nunca por mim visitada, | |
inacessível naveta? | |
Ou nem teria naveta... | |
" | |
Nuno Júdice,"Encantamento | |
Vi as mulheres | |
azuis do equinócio | |
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos | |
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos | |
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo | |
que traziam de uma infância de magma | |
calcinado. A água ficava negra, à sua volta; | |
e os ramos das plantas submersas pelas chuvas | |
primaveris abraçavam-nas, puxando-as num | |
estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor | |
do verso; estendi-as na areia grossa | |
da margem, vendo as cobras de água fugirem | |
por entre os canaviais. Espreitei-lhes | |
o sexo por onde escorria o líquido branco | |
de um início. Pude dizer-lhes que as amava, | |
abraçando-as, como se estivessem vivas; e | |
ouvi um restolhar de crianças por entre | |
os arbustos, repetindo-me as frases com uma | |
entoação de riso. Onde estão essas mulheres? | |
Em que leito de rio dormem os seus corpos, | |
que os meus dedos procuram num gesto | |
vago de inquietação? Navego contra a corrente; | |
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese. | |
" | |
Cora Coralina,"Amigo | |
Vamos conversar | |
Como dois velhos que se encontram | |
no fim da caminhada. | |
Foi o mesmo nosso marco de partida. | |
Palmilhamos juntos a mesma estrada. | |
Eu era moça. | |
Sentia sem saber | |
seu cheiro de terra, | |
seu cheiro de mato, | |
seu cheiro de pastagens | |
É que havia dentro de mim, | |
no fundo obscuro de meu ser | |
vivências e atavismo ancestrais: | |
fazendas, latifúndios, | |
engenhos e currais. | |
Mas... ai de mim! | |
Era moça da cidade. | |
Escrevia versos e era sofisticada. | |
Você teve medo. | |
O medo que todo homem sente | |
da mulher letrada. | |
Não pressentiu, não adivinhou | |
aquela que o esperava | |
mesmo antes de nascer. | |
Indiferente | |
tomaste teu caminho | |
por estrada diferente. | |
Longo tempo o esperei | |
na encruzilhada, | |
depois... depois... | |
carreguei sozinha | |
a pedra do meu destino. | |
Hoje, no tarde da vida, | |
apenas, | |
uma suave e perdida relembrança. | |
In: CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. 2. ed. São Paulo: Global, 198" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Para o sexo a expirar | |
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante. | |
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo. | |
Amor, amor, amor - o braseiro radiante | |
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo. | |
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita, | |
a minha se rebela ante a morte anunciada. | |
Quero sempre invadir essa vereda estreita | |
onde o gozo maior me propicia a amada. | |
Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe? | |
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer | |
antes que, deliciosa, a exploração acabe. | |
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo, | |
e assim possa eu partir, em plenitude o ser, | |
de sêmen aljofrando o irreparável ermo. | |
" | |
Mário Quintana,"A Verdadeira Arte de Viajar | |
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, | |
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo. | |
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali... | |
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando! | |
(Quintana in “A cor do invisível”) | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"O amor | |
MOTE | |
Amor é chama que mata, | |
Sorriso que desfalece, | |
Madeixa que desata, | |
Perfume que esvaece. | |
(popular) | |
GLOSAS | |
Amor é chama que mata, | |
Dizem todos com razão, | |
É mal do coração | |
E com ele se endoidece. | |
O amor é um sorriso | |
Sorriso que desfalece. | |
Madeixa que se desata | |
Denominam-no também. | |
O amor não é um bem: | |
Quem ama sempre padece. | |
O amor é um perfume | |
Perfume que se esvaece. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"AQUELOUTRO | |
O dúbio mascarado o mentiroso | |
Afinal, que passou na vida incógnito | |
O Rei-lua postiço, o falso atónito; | |
Bem no fundo o covarde rigoroso. | |
Em vez de Pajem bobo presunçoso. | |
Sua Ama de neve asco de um vómito. | |
Seu ânimo cantado como indómito | |
Um lacaio invertido e pressuroso. | |
O sem nervos nem ânsia - o papa- açorda, | |
(Seu coração talvez movido a corda...) | |
Apesar de seus berros ao Ideal | |
O corrido, o raimoso, o desleal | |
O balofo arrotando Império astral | |
O mago sem condão, o Esfinge Gorda. | |
" | |
Al Berto,"Vigílias | |
pernoito | |
no interior do corpo desarrumado | |
o medo invade o penumbroso corredor | |
descubro uma cintilação de água no estuque | |
uma cicatriz de cristais de bolor abre-se | |
porosa ao contacto dos dedos indica | |
que não haverá esquecimento ou brisa | |
para limpar o tempo imemorial da casa | |
deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo | |
as madeiras enceradas cobertas de poeira | |
ervas secas à chuva molhos de rosmaninho | |
junquilhos, bocas de lobo silenas, trevo | |
mas nenhuma fuga foi recomeçada | |
a infância permanece triste onde a abandonei | |
quase não vive | |
no entanto ouço-a respirar dentro de mim | |
agora tudo é diferente | |
recomeço a viver a partir do vazio | |
da treva dos dias em silêncio | |
por entre a pele e um feixe de magnificas veias | |
sinto o pássaro da velhice arrastando as asas | |
onde desenvolve o calmo voo lunar | |
enumero cuidadosamente os objectos, classifico-os | |
por tamanhos por texturas, por funções | |
quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier | |
da extremidade aguçada do corpo alado | |
e o rosto for devassado por um estilhaço de asa | |
então a vida abater-se-á sobre a folha de papel | |
onde verso a verso | |
me ilumino e me desgasto. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Meninos Carvoeiros | |
Os meninos carvoeiros | |
Passam a caminho da cidade. | |
— Eh, carvoero! | |
E vão tocando os animais com um relho enorme. | |
Os burros são magrinhos e velhos. | |
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha. | |
A aniagem é toda remendada. | |
Os carvões caem. | |
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.) | |
— Eh, carvoero! | |
Só mesmo estas crianças raquíticas | |
Vão bem com estes burrinhos descadeirados. | |
A madrugada ingênua parece feita para eles . . . | |
Pequenina, ingênua miséria! | |
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis! | |
—Eh, carvoero! | |
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, | |
Encarapitados nas alimárias, | |
Apostando corrida, | |
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados. | |
Petrópolis, 1921 | |
" | |
Luís de Camões,"Alma minha gentil, que te partiste | |
Alma minha gentil, que te partiste | |
Tão cedo desta vida, descontente, | |
Repousa lá no Céu eternamente | |
E viva eu cá na terra sempre triste. | |
Se lá no assento etéreo, onde subiste, | |
Memória desta vida se consente, | |
Não te esqueças daquele amor ardente | |
Que já nos olhos meus tão puro viste. | |
E se vires que pode merecer-te | |
Algu~a cousa a dor que me ficou | |
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, | |
Roga a Deus, que teus anos encurtou, | |
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, | |
Quão cedo de meus olhos te levou. | |
" | |
Fernando Pessoa,"V. EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS | |
Jaz aqui, na pequena praia extrema, | |
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro, | |
O mar é o mesmo: já ninguém o tema! | |
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro. | |
" | |
Cecília Meireles,"Mapa de Anatomia: O Olho | |
O Olho é uma espécio de globo, | |
é um pequeno planeta | |
com pinturas do lado de fora. | |
Muitas pinturas: | |
azuis, verdes, amarelas. | |
É um globobrilhante: | |
parece cristal, | |
é como um aquário com plantas | |
finamente desenhadas: algas, sargaços, | |
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro. | |
Mas por dentro há outras pinturas, | |
que não se vêem: | |
umas são imagens do mundo, | |
outras são invetadas. | |
O Olho é um teatro por dentro. | |
E às vezes, sejam atores, sejam cenas, | |
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências, | |
formam, no Olho, lágrimas. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"POESIA III | |
Com pés de aragem | |
" | |
Olavo Bilac,"Dormes | |
XVIII | |
Dormes... Mas que sussurro a umedecida | |
Terra desperta? Que rumor enleva | |
As estrelas, que no alto a Noite leva | |
Presas, luzindo, à túnica estendida? | |
São meus versos! Palpita a minha vida | |
Neles, falenas que a saudade eleva | |
De meu seio, e que vão, rompendo a treva, | |
Encher teus sonhos, pomba adormecida! | |
Dormes, com os seios nus, no travesseiro | |
Solto o cabelo negro... e ei-los, correndo, | |
Doudejantes, sutis, teu corpo inteiro | |
Beijam-te a boca tépida e macia, | |
Sobem, descem, teu hálito sorvendo | |
Por que surge tão cedo a luz do dia?! | |
" | |
Thiago de Mello,"Notícia da Manhã | |
Para Milu e Ângelo | |
Eu sei que todos a viram | |
e jamais a esquecerão. | |
Mas é possível que alguém, | |
denso de noite, estivesse | |
profundamente dormindo. | |
E aos dormidos — e também | |
aos que estavam muito longe | |
e não puderam chegar, | |
aos que estavam perto e perto | |
permaneceram sem vê-la; | |
aos moribundos nos catres | |
e aos cegos de coração — | |
a todos que não a viram | |
contarei desta manhã | |
— manhã é céu derramado | |
é cristal de claridão — | |
que reinou, de leste a oeste, | |
de morro a mar — na cidade. | |
Pois dentro desta manhã | |
vou caminhando. E me vou | |
tão feliz como a criança | |
que me leva pela mão. | |
Não tenho nem faço rumo: | |
vou no rumo da manhã, | |
levado pelo menino | |
(ele conhece caminhos | |
e mundos, melhor do que eu). | |
(...) | |
Por verdadeira, a manhã | |
vai chamando outras manhãs | |
sempre radiosas que existem | |
(e às vezes tarde despontam | |
ou não despontam jamais) | |
dentro dos homens, das coisas: | |
na roupa estendida à corda, | |
nos navios chegando, | |
na torre das igrejas, | |
nos pregões dos peixeiros, | |
na serra circular dos operários, | |
nos olhos da moça que passa, tão bonitos! | |
(...) | |
A beleza mensageira | |
desta radiosa manhã | |
não se resguardou no céu | |
nem ficou apenas no espaço, | |
feita de sol e de vento, | |
sobrepairando a cidade | |
Não: a manhã se deu ao povo. | |
A manhã é geral. | |
As árvores da rua, | |
a réstia do mar, | |
as janelas abertas, | |
o pão esquecido no degrau, | |
as mulheres voltando da feira, | |
os vestidos coloridos, | |
o casal de velhos rindo na calçada, | |
o homem que passa com cara de sono, | |
a provisão de hortaliças, | |
o negro na bicicleta, | |
o barulho do bonde, | |
os passarinhos namorando | |
— ah! pois todas essas coisas | |
que minha ternura encontra | |
num pedacinho de rua, | |
dão eterno testemunho | |
da amada manhã que avança | |
e de passagem derrama | |
aqui uma alegria, | |
ali entrega uma frase | |
(como o dia está bonito!) | |
à mulher que abre a janela, | |
além deixa uma esperança | |
mais além uma coragem, | |
e além, aqui e ali | |
pelo campo e pela serra, | |
aos mendigos e aos sovinas, | |
aos marinheiros, aos tímidos, | |
aos desgraçados, aos prósperos, | |
aos solitários, aos mansos, | |
às velhas virgens, às puras | |
e às doidivanas também, | |
a manhã vai derramando | |
uma alegria de viver, | |
vai derramando um perdão, | |
vai derramando uma vontade de cantar. | |
E de repente a manhã | |
— manhã é céu derramado, | |
é claridão, claridão — | |
foi transformando a cidade | |
numa praça imensa praça, | |
e dentro da praça o povo | |
o povo inteiro cantando, | |
dentro do povo o menino | |
me levando pela mão. | |
9 de julho de 1954 | |
S. Sebastião do Rio de Janeiro | |
Imagem - 00850001 | |
Poema integrante da série O Andarilho e a Manhã, 1953/1955. | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984" | |
Nuno Júdice,"Carpe diem | |
Confias no incerto amanhã? Entregas | |
às sombras do acaso a resposta inadiável? | |
Aceitas que a diurna inquietação da alma | |
substitua o riso claro de um corpo | |
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos, | |
os instantes; e nos lábios dessa que amaste | |
morre um fim de frase, deixando a dúvida | |
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória, | |
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém, | |
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias; | |
e abraças a própria figura do vazio. Então, | |
por que esperas para sair ao encontro da vida, | |
do sopro quente da primavera, das margens | |
visíveis do humano? ""Não"", dizes, ""nada me obrigará | |
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar | |
que me oforece o leito profundo da sua imagem!"" | |
Louco, ignora que o destino, por vezes, | |
se confunde com a brevidade do verso. | |
" | |
José Régio,"Fantasia sobre um velho tema | |
Mora-me um poeta | |
Que tento esconder, | |
A ver | |
Se poderei ser | |
Como toda a gente. | |
Abri os meus alçapões, | |
E no último desvão | |
O fechei a pão e água, | |
Com grilhões, | |
E uma corrente... | |
(... a ver se poderei ser | |
Como toda a gente). | |
Depois, saí para a rua, | |
Todo aprumado, | |
Escovado, | |
Dado a ferro, | |
Satisfeito: | |
Porque em verdade, julgava | |
Que a multidão que girava | |
Pensava | |
De mim | |
Assim: | |
- ""Ali vai um homem | |
Tão decentemente | |
Que, naturalmente, | |
Nada deve ter | |
Que nos esconder..."" | |
Delirantemente, | |
De mim para mim, | |
Eu pensava assim: | |
- "" Ser como essa gente! | |
Ser bem menos gente! | |
Ser mais toda-a-gente | |
Que toda essa gente!"" | |
Sim, | |
Raivosamente, | |
Eu pensava assim. | |
... Tanto mais raivosamente | |
Quanto, dos longes de mim, | |
Do fim | |
Do derradeiro alçapão, | |
O Poeta emparedado, | |
Esfaimado, | |
Encadeado, | |
Cantava a sua prisão: | |
- "" Se aqui me fecharam, | |
Foi porque não posso | |
Debulhar o osso | |
Que me arremessaram... | |
Foi porque os desperto, | |
De noite e de dia, | |
Com a chama fria | |
Do meu gládio aberto... | |
Foi porque a pobreza | |
Que fiz meu tesoiro | |
Tem muito mais oiro | |
Que a sua riqueza... | |
Foi porque horas mortas, | |
Indo no caminho, | |
Lhes bati às portas, | |
Mas segui sozinho..."" | |
Eu pensava: | |
- "" Sim, realmente, | |
Se te fechei, foi a ver | |
Se poderei ser | |
Como toda a gente..."" | |
E baixinho, | |
Recolhido sobre mim | |
Como um bichinho-de-conta, | |
Eu cantava-lhe também, | |
Recolhido sobre mim, | |
Cantigas de adormentar: | |
Cousas de pai, ou de mãe, | |
Que cantam para embalar... | |
Assim: | |
- ""Durma um soninho comprido | |
No seu bercinho deitado, | |
Que o papão foi enxotado, | |
E eu não deixo o meu querido... | |
Durma um soninho alongado, | |
No seu bercinho estendido, | |
Que eu não tiro do sentido | |
Velar o meu adorado..."" | |
E assim, com tudo isto ao peito, | |
- Um doido e seu alçapão - | |
Eu seguia satisfeito: | |
Porque em verdade, julgava | |
Que a multidão que girava | |
Pensava | |
De mim | |
Assim: | |
- ""Ali vai um homem | |
Tão decentemente | |
Que, naturalmente, | |
Nada deve ter | |
Que nos esconder..."" | |
Como era que, de repente, | |
Nos olhos de quem passava | |
(Um qualquer) | |
Imaginava | |
Ver debruçar-se a acusar-me | |
Um colosso..., | |
Um poeta inofensivo | |
Com ferros nos tornozelos, | |
Nos pulsos, | |
E no pescoço? | |
Ai, campainhas de alarme | |
Sob dedos de outro mundo...! | |
E nem sei como | |
Transtornado até ao fundo | |
Dos meus alçapões recônditos, | |
Melodramaticamente, | |
Eu avançava | |
De braços todos abertos | |
Para o qualquer que passava. | |
Então, | |
Diante de mim, agora, | |
Qualquer, e não sem razão, | |
(Qualquer grosseirão) | |
Parava, ria, | |
Dizia | |
Que eu era doido varrido... | |
E, corrido, | |
Eu desatava a correr. | |
A multidão | |
Detinha-se para ver | |
Este senhor bem vestido, | |
Com bom ar e belos modos, | |
A fugir, como um perdido, | |
Ante o pasmo dos mais todos! | |
Sarcasta, | |
Bem lá do fundo | |
Do alçapão derradeiro, | |
O meu Cativo cantava | |
O timbre da sua casta: | |
- ""Sou como um grito de alarme | |
Sobre as tuas sonolências. | |
Preencho as tuas ausências | |
Com a presença de Deus... | |
O som dos teus escarcéus, | |
Redu-lo a silêncio e a espanto | |
O murmúrio do meu canto | |
Nos teus ouvidos impuros... | |
Quero-te! e não são teus muros | |
Que hão-de impedir que te enlace, | |
E que te queime a boca e a face | |
Com meu ósculo de fogo... | |
Que trapaças de que jogo | |
Inventarás por vencer-me, | |
Se te rojas como um verme | |
Sem as asas que te hei sido? | |
E é de tal modo perdido | |
O afã de me combater, | |
Que é teu supremo vencer | |
Não vencer - mas ser vencido..."" | |
... Cantava. | |
Mas eu, aos poucos, | |
Subjugava | |
Meus nervos loucos: | |
Retomava, | |
Da minha lista de cor, | |
Qualquer pomposa atitude... | |
Por exemplo: a de senhor | |
Fundador, | |
Ou benfeitor, | |
De associações de virtude. | |
E seguia | |
Com decência e autoridade, | |
Enquanto com desespero, | |
Com crueldade, | |
Com ódio, | |
Com soluços de paixão, | |
Gritava lá para dentro | |
Do derradeiro alçapão: | |
- ""Não!..., | |
Não penses | |
Que te pode ouvir alguém! | |
Ouço-te eu; e mais ninguém! | |
Mas eu não te soltarei, | |
Nem deixarei | |
Que parem à tua porta. | |
Hei-de ter-te emparedado, | |
Carregado | |
De correntes; | |
E, por uma noite morta, | |
Hei-de entrar, como um ladrão, | |
E hei-de te cravar os dentes | |
No lugar do coração; | |
E hei-de te arrancar a língua; | |
E hei-de te queimar os olhos; | |
E hás-de ficar cego e mudo; | |
E assim, | |
À míngua | |
De tudo, | |
Te hei-de deixar | |
A agonizar por três dias... | |
Então, | |
Hei-de compor elegias | |
À tua morte: | |
Elegias académicas, | |
Sonoras, | |
Metafóricas, | |
Retóricas, | |
Feitas com todo o recorte, | |
Com toda a morfologia, | |
Com toda a fonologia, | |
Com toda a sabedoria | |
De versos caindo iguais, | |
Como um relógio a dar ais | |
À hora do meio-dia! | |
Depois, hei-de conservar | |
O teu coração escuro | |
Triturado | |
Por meus dentes, | |
Hei-de o conservar, pintado, | |
Retocado, | |
Envernizado, | |
Num frasco de cristal puro... | |
Para o mostrar às visitas, | |
Aos amigos e aos parentes."" | |
Assim falando | |
Para dentro | |
Do subterrâneo nefando, | |
Ia andando | |
Com aspecto satisfeito, | |
E direito, | |
Bem seguro, | |
Sobretudo, consciente | |
De estar mesmo a ser, agora, | |
A parte de fora | |
(A cal do muro) | |
De toda a gente... | |
Assim entro em várias casas, | |
Através de várias ruas, | |
Parando ante várias montras, | |
Cumprimentando | |
Para um lado, para outro... | |
Até ficar | |
Numa qualquer sala | |
Onde estão sentados | |
Homens e mulheres | |
Com um ar de embalsamados. | |
Criados | |
Vêm e vão | |
Com bandejas | |
Sobre a mão. | |
Paira, como nas igrejas, | |
Um fumo de hipocrisia... | |
Enquanto | |
A um canto, | |
Com funda neurastenia, | |
Um piano faz ão-ão, | |
Faz ão-ão a toda a gente, | |
Como um pobre cão doente. | |
Logo, | |
Então, | |
Qualquer menina Marguerite | |
Me implora que lhes recite | |
A última produção. | |
Recuso-me, | |
Ela insiste, | |
Vou para o meio da sala, | |
Tudo se cala, | |
Sinto-me triste, | |
Falta-me a fala, | |
Falta-me a respiração, | |
E a suar de angústia, rouco, | |
Debuxando no ar gestos de louco, | |
Arranco, num grande esforço, | |
Estas palavras ao Outro... | |
Palavras | |
De todo o meu coração: | |
- ""No silêncio total, contemplo-te. Morreu | |
A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo. | |
Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu. | |
Contemplo-te, senhor!, eu, teu" | |
Vinicius de Moraes,"Balada do Mangue | |
Pobres flores gonocócicas | |
Que à noite despetalais | |
As vossas pétalas tóxicas! | |
Pobre de vós, pensas, murchas | |
Orquídeas do despudor | |
Não sois Loelia tenebrosa | |
Nem sois Vanda tricolor: | |
Sois frágeis, desmilingüidas | |
Dálias cortadas ao pé | |
Corolas descoloridas | |
Enclausuradas sem fé. | |
Ah, jovens putas das tardes | |
O que vos aconteceu | |
Para assim envenenardes | |
O pólen que Deus vos deu? | |
No entanto crispais sorrisos | |
Em vossas jaulas acesas | |
Mostrando o rubro das presas | |
Falando coisas do amor | |
E às vezes cantais uivando | |
Como cadelas à lua | |
Que em vossa rua sem nome | |
Rola perdida no céu... | |
Mas que brilho mau de estrela | |
Em vossos olhos lilases | |
Percebo quando, falazes | |
Fazeis rapazes entrar! | |
Sinto então nos vossos sexos | |
Formarem-se imediatos | |
Os venenos putrefatos | |
Com que os envenenar | |
Ó misericordiosas! | |
Glabra, glúteas cafetinas | |
Embebidas em jasmim | |
Jogando cantos felizes | |
Em perspectivas sem fim | |
Cantais, maternais hienas | |
Canções de cafetinizar | |
Gordas polacas serenas | |
Sempre prestes a chorar. | |
Como sofreis, que silêncio | |
Não deve gritar em vós | |
Esse imenso, atroz silêncio | |
Dos santos e dos heróis! | |
E o contraponto de vozes | |
Com que ampliais o mistério | |
Como é semelhante às luzes | |
Votivas de um cemitério | |
Esculpido de memórias! | |
Pobres, trágicas mulheres | |
Multidimensionais | |
Ponto morto de choferes | |
Passadiço de navais! | |
Louras mulatas francesas | |
Vestidas de carnaval: | |
Viveis a festa das flores | |
Pelo convés dessas ruas | |
Ancoradas no canal? | |
Para onde irão vossos cantos | |
Para onde irá vossa nau? | |
Por que vos deixais imóveis | |
Alérgicas sensitivas | |
Nos jardins desse hospital | |
Etílico e heliotrópico? | |
Por que não vos trucidais | |
ó inimigas? ou bem | |
Não ateais fogo às vestes | |
E vos lançais como tochas | |
Contra esses homens de nada | |
Nessa terra de ninguém! | |
" | |
Cecília Meireles,"Balada das Dez Bailarinas do Cassino | |
Dez bailarinas deslizam | |
por um chão de espelho. | |
Têm corpos egípcios com placas douradas, | |
pálpebras azuis e dedos vermelhos. | |
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas, | |
e dobram amarelos joelhos. | |
Andam as dez bailarinas | |
sem voz, em redor das mesas. | |
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores | |
e com os charutos toldam as luzes acesas. | |
Entre a música e a dança escorre | |
uma sedosa escada de vileza. | |
As dez bailarinas avançam | |
como gafanhotos perdidos. | |
Avançam, recuam, na sala compacta, | |
empurrando olhares e arranhando o ruído. | |
Tão nuas se sentem que já vão cobertas | |
de imaginários, chorosos vestidos. | |
A dez bailarinas escondem | |
nos cílios verdes as pupilas. | |
Em seus quadris fosforescentes, | |
passa uma faixa de morte tranqüila. | |
Como quem leva para a terra um filho morto, | |
levam seu próprio corpo, que baila e cintila. | |
Os homens gordos olham com um tédio enorme | |
as dez bailarinas tão frias. | |
Pobres serpentes sem luxúria, | |
que são crianças, durante o dia. | |
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas, | |
embalsamados de melancolia. | |
Vão perpassando como dez múmias, | |
as bailarinas fatigadas. | |
Ramo de nardos inclinando flores | |
azuis, brancas, verdes, douradas. | |
Dez mães chorariam, se vissem | |
as bailarinas de mãos dadas. | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Intervalo amoroso | |
O que fazer entre um orgasmo e outro, | |
quando se abre um intervalo | |
sem teu corpo? | |
Onde estou, quando não estou | |
no teu gozo incluído? | |
Sou todo exílio? | |
Que imperfeita forma de ser é essa | |
quando de ti sou apartado? | |
Que neutra forma toco | |
quando não toco teus seios, coxas | |
e não recolho o sopro da vida de tua boca? | |
O que fazer entre um poema e outro | |
olhando a cama, a folha fria? | |
" | |
Cacaso,"Há uma Gota de Sangue no Cartão Postal | |
eu sou manhoso eu sou brasileiro | |
finjo que vou mas não vou minha janela é | |
a moldura do luar do sertão | |
a verde mata nos olhos verdes da mulata | |
sou brasileiro e manhoso por isso dentro | |
da noite e de meu quarto fico cismando na beira de um rio | |
na imensa solidão de latidos e araras | |
lívido | |
de medo e de amor | |
In: CACASO. Beijo na boca e outros poemas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.84. | |
NOTA: Referências ao livro HÁ UMA GOTA DE SANGUE EM CADA POEMA, de Mário de Andrade; às canções ""Luar do Sertão"", de Catullo da PaixãoCearense e ""Tropicália"", de Caetano Veloso; à ""Canção do Exílio"", do livro PRIMEIROS CANTOS (1846), de Gonçalves Dias e ao poema ""Amor e Medo"", do livro AS PRIMAVERAS (1859), de Casimiro de Abre" | |
Luís de Camões,"Se me vem tanta glória só de olhar-te | |
Se me vem tanta glória só de olhar-te, | |
ă pena desigual deixar de ver-te; | |
Se presumo com obras merecer-te, | |
Grão paga de um engano é desejar-te. | |
Se aspiro por quem és a celebrar-te, | |
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te; | |
Se mal me quero a mim por bem querer-te, | |
Que prémio querer posso mais que amar-te? | |
Porque um tão raro amor não me socorre? | |
Ó humano tesouro! Ó doce glória! | |
Ditoso quem à morte por ti corre! | |
Sempre escrita estarás nesta memória; | |
E esta alma viverá, pois por ti morre, | |
Porque ao fim da batalha é a vitória. | |
" | |
Cecília Meireles,"O canteiro está molhado | |
O canteiro está molhado. | |
Trarei flores do canteiro, | |
Para cobrir o teu sono. | |
Dorme, dorme, a chuva desce, | |
Molha as flores do canteiro. | |
Noite molhada de chuva, | |
Sem vento, nem ventania, | |
Noite de mar e lembranças..."" | |
" | |
Konstantínos Kaváfis,"À espera dos bárbaros | |
O que esperamos nós em multidão no Forum? Os Bárbaros, que chegam hoje.Dentro do Senado, porque tanta inacção?Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores? É que os Bárbaros chegam hoje. Que leis haveriam de fazer agora os senadores? Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?E às portas da cidade está sentado,no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça? Porque os Bárbaros chegam hoje. E o Imperador está à espera do seu Chefe para recebê-lo. E até já preparou um discurso de boas-vindas, em que pôs, dirigidos a ele, toda a casta de títulos.E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?E porque levavam hoje os preciosos bastões,com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana? Porque os Bárbaros chegam hoje, e coisas dessas maravilham os Bárbaros.E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradorespara discursar, para dizer o que eles sabem dizer? Porque os Bárbaros é hoje que aparecem, e aborrecem-se com eloquências e retóricas.Porque, sùbitamente, começa um mal-estar,e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,e todos voltam para casa tão apreensivos? Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram. E umas pessoas que chegaram da fronteira dizem que não há lá sinal de Bárbaros.E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?Essa gente era uma espécie de solução." | |
Mário Quintana,"O Mapa | |
Olho o mapa da cidade | |
Como quem examinasse | |
A anatomia de um corpo... | |
(E nem que fosse o meu corpo!) | |
Sinto uma dor infinita | |
Das ruas de Porto Alegre | |
Onde jamais passarei... | |
Ha tanta esquina esquisita, | |
Tanta nuança de paredes, | |
Ha tanta moca bonita | |
Nas ruas que não andei | |
(E ha uma rua encantada | |
Que nem em sonhos sonhei...) | |
Quando eu for, um dia desses, | |
Poeira ou folha levada | |
No vento da madrugada, | |
Serei um pouco do nada | |
Invisível, delicioso | |
Que faz com que o teu ar | |
Pareça mais um olhar, | |
Suave mistério amoroso, | |
Cidade de meu andar | |
(Deste já tão longo andar!) | |
E talvez de meu repouso... | |
" | |
Fernando Pessoa,"[2] Uma Asa do Grifo: D. JOÃO O SEGUNDO | |
Braços cruzados, fita além do mar. | |
Parece em promontório uma alta serra — | |
O limite da terra a dominar | |
O mar que possa haver além da terra. | |
Seu formidavel vulto solitário | |
Enche de estar presente o mar e o céu | |
E parece temer o mundo vário | |
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu. | |
" | |
Maria Teresa Horta,"Anjos mulheres – VI | |
As mulheres voam | |
como os anjos: | |
Com as suas asas feitas | |
de cristal de rocha da memória | |
Disponíveis | |
para voar | |
soltas... | |
Primeiro | |
lentamente: uma por uma | |
Depois, | |
iguais aos passaros | |
fundas... | |
Nadando, | |
juntas | |
Secreta: a rasar o | |
chão | |
a rasar a fenda | |
da lua | |
no menstruo: | |
por entre a fenda das pernas | |
Às vezes é o aço | |
que se prende | |
na luz | |
A dobrarmos o espaço? | |
Bruxas: | |
pomos asas em vassouras | |
de vento | |
E voamos | |
Como as asas | |
lhe cresciam nas coxas | |
diziam dela: | |
que era um anjo do mar | |
Rondo alto, | |
postas em nudez de ombros | |
e pernas | |
perseguindo, | |
pelos espaços, | |
lunares | |
da menstruação | |
e corpo desavindo | |
Não somos violencia | |
mas o voo | |
quando nadamos | |
de costas pelo vento | |
até à foz do tempo | |
no oceano denso | |
da nossa própria voz | |
Sabemos distinguir | |
a dormir | |
os anjos das rosas voadoras | |
pelo tacto? | |
Somos os anjos | |
do destino | |
com a alma | |
pelo avesso | |
do útero | |
Voamos a lua | |
menstruadas | |
Os homens gritam: | |
– são as bruxas | |
As mulheres pensam: | |
– são os anjos | |
As crianças dizem: | |
– são as fadas | |
Fadas? | |
filigrama cintilante | |
de asas volteando | |
no fundo da vagina | |
Nadamos? | |
De costas, | |
no espaço deste século | |
Mudar o rumo | |
e as pernas mais ao | |
fundo | |
portas por trás | |
dobradas pelos rins | |
Abrindo o ar | |
com o corpo num só golpe | |
Soltas, | |
viando | |
até chegar ao fim | |
Dizem-nos: | |
que nos limitemos ao espaço | |
Mas nós voamos | |
também | |
debaixo de água | |
Nós somos os anjos | |
deste tempo | |
Astronautas, | |
voando na memória | |
nas galáxias do vento... | |
Temos um pacto | |
com aquilo que | |
voa | |
– as aves | |
da poesia | |
– os anjos | |
do sexo | |
– o orgasmo | |
dos sonhos | |
Não há nada | |
que a nossa voz não abra | |
Nós somos as bruxas da palavra | |
" | |
Herberto Helder,"O Actor | |
O actor acende a boca. Depois os cabelos. | |
Finge as suas caras nas poças interiores. | |
O actor pôe e tira a cabeça | |
de búfalo. | |
De veado. | |
De rinoceronte. | |
Põe flores nos cornos. | |
Ninguém ama tão desalmadamente | |
como o actor. | |
O actor acende os pés e as mãos. | |
Fala devagar. | |
Parece que se difunde aos bocados. | |
Bocado estrela. | |
Bocado janela para fora. | |
Outro bocado gruta para dentro. | |
O actor toma as coisas para deitar fogo | |
ao pequeno talento humano. | |
O actor estala como sal queimado. | |
O que rutila, o que arde destacadamente | |
na noite, é o actor, com | |
uma voz pura monotonamente batida | |
pela solidão universal. | |
O espantoso actor que tira e coloca | |
e retira | |
o adjectivo da coisa, a subtileza | |
da forma, | |
e precipita a verdade. | |
De um lado extrai a maçã com sua | |
divagação de maçã. | |
Fabrica peixes mergulhados na própria | |
labareda de peixes. | |
Porque o actor está como a maçã. | |
O actor é um peixe. | |
Sorri assim o actor contra a face de Deus. | |
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres. | |
O actor que subtrai Deus de Deus, e | |
dá velocidade aos lugares aéreos. | |
Porque o actor é uma astronave que atravessa | |
a distância de Deus. | |
Embrulha. Desvela. | |
O actor diz uma palavra inaudível. | |
Reduz a humidade e o calor da terra | |
à confusão dessa palavra. | |
Recita o livro. Amplifica o livro. | |
O actor acende o livro. | |
Levita pelos campos como a dura água do dia. | |
O actor é tremendo. | |
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor. | |
Como a unidade do actor. | |
O actor é um advérbio que ramificou | |
de um substantivo. | |
E o substantivo retorna e gira, | |
e o actor é um adjectivo. | |
É um nome que provém ultimamente | |
do Nome. | |
Nome que se murmura em si, e agita, | |
e enlouquece. | |
O actor é o grande Nome cheio de holofotes. | |
O nome que cega. | |
Que sangra. | |
Que é o sangue. | |
Assim o actor levanta o corpo, | |
enche o corpo com melodia. | |
Corpo que treme de melodia. | |
Ninguém ama tão corporalmente como o actor. | |
Como o corpo do actor. | |
Porque o talento é transformação. | |
O actor transforma a própria acção | |
da transformação. | |
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se. | |
O actor cresce no seu acto. | |
Faz crescer o acto. | |
O actor actifica-se. | |
É enorme o actor com sua ossada de base, | |
com suas tantas janelas, | |
as ruas - | |
o actor com a emotiva publicidade. | |
Ninguém ama tão publicamente como o actor. | |
Como o secreto actor. | |
Em estado de graça. Em compacto | |
estado de pureza. | |
O actor ama em acção de estrela. | |
Acção de mímica. | |
O actor é um tenebroso recolhimento | |
de onde brota a pantomina. | |
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama. | |
Vê a cobra entre as pernas. | |
O actor vê fulminantemente | |
como é puro. | |
Ninguém ama o teatro essencial como o actor. | |
Como a essência do amor do actor. | |
O teatro geral. | |
O actor em estado geral de graça. | |
" | |
Maria Teresa Horta,"Minha senhora de mim | |
Comigo me desavim | |
minha senhora | |
de mim | |
sem ser dor ou ser cansaço | |
nem o corpo que disfarço | |
Comigo me desavim | |
minha senhora | |
de mim | |
nunca dizendo comigo | |
o amigo nos meus braços | |
Comigo me desavim | |
minha senhora | |
de mim | |
recusando o que é desfeito | |
no interior do meu peito | |
" | |
Cecília Meireles,"Noções | |
Entre mim e mim, há vastidões bastantes | |
para a navegação dos meus desejos afligidos. | |
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. | |
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que | |
a atinge. | |
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, | |
só recolho o gosto infinito das respostas que não se | |
encontram. | |
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a | |
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, | |
e este abandono para além da felicidade e da beleza. | |
Ó meu Deus, isto é a minha alma: | |
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e | |
precário, | |
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e | |
inúmera... | |
" | |
Jorge de Lima,"Democracia | |
Punhos | |
de redes embalaram o meu canto | |
Para adoçar o meu país, ó Whitman. | |
Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados, | |
Catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes, | |
Carumã me alimentou quando eu era criança, | |
Mãe-negra me contou histórias de bicho, | |
Moleque me ensinou safadezas, | |
Massoca, tapioca,pipoca, tudo comi, | |
Bebi cachaça com caju para limpar-me, | |
Tive maleita, catapora e ínguas, | |
Bicho-de-pé, saudade, poesia; | |
Fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá, | |
Dizendo coisas, brincando com as crioulas, | |
Vendo espiritos, abusões, mães-d água, | |
Conversando com os malucos, conversando sozinho, | |
Emprenhando tudo o que encontrava, | |
Abraçando as cobras pelos matos, | |
Me misturando, me sumindo, me acabando, | |
Apara salvar a minha alma benzida | |
E o meu corpo pintado de urucu, | |
Tatuado de cruzes, de corações, de mãos ligadas, | |
De nomes de amor em todas as línguas de branco | |
De mouro ou pagão. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Lisboa | |
Esta névoa sobre a cidade, o rio, | |
as gaivotas doutros dias, barcos, gente | |
apressada ou com o tempo todo para perder, | |
esta névoa onde comeca a luz de Lisboa, | |
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água, | |
nada mais quero de degrau em degrau. | |
" | |
Cecília Meireles,"Coliseu | |
Cem mil pupilas houve: | |
— cem mil pupilas fitas na arena. | |
Os olhos do Imperador, dos patrícios, | |
dos soldados, da plebe. | |
Os olhos da mulher formosa que os poetas cantaram. | |
E os olhos da fera acossada, | |
do lado oposto. | |
Os olhos que ainda brilham fulvos, | |
agora, na eternidade igual de todos. | |
Cem mil pupilas: | |
— ilustres, insensatas, ferozes, melancólicas, | |
vagas, severas, lânguidas . . . | |
Cem mil pupilas vêem-se, na poeira da pedra deserta. | |
Entre corredores e escadas, | |
o cavo abismo do úmido subsolo | |
exala os soturnos prazeres da antiguidade: | |
Um vozeiro arcaico vem saindo da sombra, | |
— ó duras vozes romanas! — | |
um quente sangue vem golfando, | |
— ó negro sangue das feras! | |
um grande aroma cruel se arredonda nas curvas pedras. | |
— Ó surdo nome trêmulo da morte! | |
(Não cairão jamais estas paredes, | |
pregadas com este sangue e este rugido, | |
a garra tensa, a goela arqueada em vácuo, | |
as cordas do humano pasmo sobre o último estertor . . .) | |
Cem mil pupilas ficam aqui, | |
pregadas nas pedras do tempo, | |
manchadas de fogo e morte, | |
no fim do dia trágico, | |
depois daquela ávida e acesa coincidência | |
quando convergiram nesta arena de angústia, | |
que hoje é pó e silêncio, | |
esboroada solidão. | |
(As pregas dos vestidos deslizaram, frágeis. | |
E os sorrisos perderam-se, fúteis. | |
Sobre o enorme espetáculo, que foi o aroma dos cosméticos?) | |
" | |
Ary dos Santos,"O Relógio | |
Pára-me um tempo por dentro | |
passa-me um tempo por fora. | |
O tempo que foi constante | |
no meu contra tempo estar | |
passa-me agora adiante | |
como se fosse parar. | |
Por cada relógio certo | |
no tempo que sou agora | |
há um tempo descoberto | |
no tempo que se demora. | |
Fica-me o tempo por dentro | |
passa-me o tempo por fora." | |
Eugénio de Andrade,"Deixa a mão | |
Deixa a mão | |
caminhar | |
perder o alento | |
até onde se não respira. | |
Deixa a mão | |
errar | |
sobre a cintura | |
apenas conivente | |
com nácar da língua. | |
Só um grito desde o chão | |
pode fulminá-la. | |
A morte | |
não é um segredo | |
não é em nós um jardim de areia. | |
De noite | |
no silêncio baço dos espelhos | |
um homem | |
pode trazer a morte pela mão. | |
Vou ensinar-te como se reconhece | |
repara | |
é ainda um rapaz | |
não acaba de crescer | |
nos ombros | |
a luz | |
desatada | |
a fulva | |
lucidez dos flancos. | |
A boca sobre a boca nevava. | |
" | |
Al Berto,"Salsugem | |
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida | |
pensava eu....como seriam felizes as mulheres | |
à beira-mar debruçadas para a luz caiada | |
remendando o pano das velas esperando o mar | |
e a longitude do amor embarcado..... | |
....por vezes | |
uma gaivota pousava nas águas | |
outras era o sol que cegava | |
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite... | |
....os dias lentíssimos....sem ninguém | |
e nunca me disseram o nome daquele oceano | |
esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas | |
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua | |
assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar | |
se espantasse com a minha solidão.... | |
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me | |
uma pérola no coração. Mas estou só, muito só, | |
não tenho a quem a deixar.) | |
.... um dia houve | |
que nunca mais avistei cidades crepusculares | |
e os barcos deixaram de fazer escala á minha porta.... | |
.... inclino-me de novo para o pano deste século | |
recomeço a bordar ou a dormir | |
tanto faz | |
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite | |
a felicidade. | |
" | |
Manuel Bandeira,"LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA | |
A tarde agoniza | |
Ao santo acalanto | |
Da noturna brisa. | |
E eu, que também morro, | |
Morro sem consolo, | |
Se não vens, Elisa! | |
Ai nem te humaniza | |
O pranto que tanto | |
Nas faces desliza | |
Do amante que pede | |
Suplicantemente | |
Teu amor, Elisa! | |
Ri, desdenha, pisa! | |
Meu canto, no entanto, | |
Mais te diviniza, | |
Mulher diferente, | |
Tão indiferente, | |
Desumana Elisa! | |
" | |
Al Berto,"Retrato de Fugitivo | |
ele caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel | |
e de fotografia em fotografia chega exausto | |
ao minucioso poema a preto e branco | |
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo | |
este lento destroço que um liquido sussurro de prata | |
revela a partir de iluminada fracção de segundo | |
e bebe | |
e ama | |
e foge de si mesmo | |
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando | |
no fundo da memória um néon uma pedra | |
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto | |
onde se debruça para retocar os dias com um | |
lápis | |
na certeza que sobrevirá a estes perfeitos acidentes | |
a estes restos de corpos a pouco e pouco turvos | |
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia | |
mas regressa sempre à transumância das cidades | |
quando a alba do flash prende o furtivo gesto | |
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo | |
depois | |
vem o medo | |
que se desprende do olhar imobilizado | |
e do rosto fotografado | |
nasce uma vida de infinito caos | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Que diremos ainda? | |
Vê como de súbito o céu se fecha | |
sobre dunas e barcos, | |
e cada um de nós se volta e fixa | |
os olhos um no outro, | |
e como deles devagar escorre | |
a última luz sobre as areias. | |
Que diremos ainda? Serão palavras, | |
isto que aflora aos lábios? | |
Palavras?,este rumor tão leve | |
que ouvimos o dia desprender-se? | |
Palavras,ou luz ainda? | |
Palavras,não.Quem as sabia? | |
Foi apenas lembrança doutra luz. | |
Nem luz seria,apenas outro olhar. | |
de Mar de Setembro | |
" | |
Al Berto,"Truque Inoxidável | |
faca | |
repito faca | |
escrevo faca pelo corpo,desenho faca no peito da noite | |
desembaraço-me do sumo inoxidável doutra faca | |
faca | |
sorrio faca no escuro dum beco | |
-Hoje não matarás! | |
" | |
Manuel Bandeira,"Belo Belo I | |
Belo belo belo, | |
Tenho tudo quanto quero. | |
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. | |
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes. | |
A aurora apaga-se, | |
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. | |
O dia vem, e dia adentro | |
Continuo a possuir o segredo grande da noite. | |
Belo belo belo, | |
Tenho tudo quanto quero. | |
Não quero o êxtase nem os tormentos. | |
Não quero o que a terra só dá com trabalho. | |
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: | |
Os anjos não compreendem os homens. | |
Não quero amar, | |
Não quero ser amado. | |
Não quero combater, | |
Não quero ser soldado. | |
— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples." | |
Nuno Júdice,"Elegia | |
Nem os | |
dias longos me separam da tua imagem. | |
Abro-a no espelho de um céu monótono, ou | |
deixo que a tarde a prolongue no tédio dos | |
horizontes. O perfil cinzento da montanha, | |
para norte, e a linha azul do mar, a sul, | |
dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia | |
quando, ao dizer o teu nome, a realidade do | |
som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo | |
o silêncio para que dele possas renascer, | |
sombra, e dessa presença possa abstrair a | |
tua memória. | |
" | |
Ruy Belo,"A mão no arado | |
Feliz aquele que administra sabiamente | |
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias | |
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará | |
Oh! como é triste envelhecer à porta | |
entretecer nas mãos um coração tardio | |
Oh como é triste arriscar em humanos regressos | |
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão | |
ao longo do mar transbordante de nós | |
no demorado adeus da nossa condição | |
É triste no jardim a solidão do sol | |
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade | |
até uma vaga promessa de rio | |
e a pequenina vida que se concede às unhas | |
Mais triste é termos de nascer e morrer | |
e haver árvores ao fim da rua | |
É triste ir pela vida como quem | |
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro | |
É triste no outono concluir | |
que era o verão a única estação | |
Passou o solitário vento e não o conhecemos | |
e não soubemos ir até ao fundo da verdura | |
como rios que sabem onde encontrar o mar | |
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver | |
através de palavras de uma água para sempre dita | |
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã | |
Triste é comprar castanhas depois da tourada | |
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro | |
e ter como futuro o asfalto e muita gente | |
e atrás a vida sem nenhuma infância | |
revendo tuido isto algum tempo depois | |
A tarde morre pelos dias fora | |
É muito triste andar por entre Deus ausente | |
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente. | |
" | |
Thiago de Mello,"Faz Mormaço na Floresta | |
Não quero | |
que me cedas, | |
por dar amor. | |
nem me concedas nada | |
de teu, por dar amor. | |
De dá diva, já basta | |
tu inteira na luz que do teu corpo nasce | |
Quero só que tu queiras, | |
de coração cantando, | |
vir comigo acender | |
toda a paz das estrelas | |
que abraçados inventam | |
o teu corpo e o meu. | |
A cuia morna do ventre | |
da cunhatã estendida | |
tomo nas mãos e sorvo | |
sem sofreguidão a luz | |
que líquida se derrama | |
entre as vertentes da coxas. | |
Firme a forquilha das ancas | |
a coluna se recurva: | |
faz mormaço na floresta. | |
Um suor escorre da nuca | |
porejada de hortelã | |
e o chão se encharca de festa. | |
Calor molhado de seta | |
nos envolve sobre a areia | |
Crescem cantos na floresta | |
quando as asas quentes pousas | |
de tua boca em meu peito: | |
estirado me floresço. | |
Fogo ondulado, teu dorso | |
que me lentamente desce, | |
enquanto árvore cresço | |
Sombra ardente que me guia | |
tua cabeleira baila | |
na esparramada alegria | |
É quando mordo a luz | |
do teu peito que tenho | |
o que perdi sem ter. | |
Quando me vi foi quando | |
antes de te ver, abriste | |
o sol dos teus cabelos | |
nenhum espelho nunca | |
(nem o secreto lago) | |
em que o medo me espio) | |
me desvelou, relâmpago | |
quanto o tremor alçado | |
de teus joelhos chamando. | |
Nunca sei como sou | |
(sei só que sou contente) | |
quando contigo vou. | |
Amor me ensina a ser | |
a verdade que invento | |
para te merecer. | |
Só chegas quando estou: | |
as estrelas me trazes | |
para o céu que te dou. | |
Na glória de saber | |
que inteiro me recebes | |
desaprendo o que é ter." | |
Augusto dos Anjos,"Eterna Mágoa | |
O homem por sobre quem caiu a praga | |
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste | |
Para todos os séculos existe | |
E nunca mais o seu pesar se apaga! | |
Não crê em nada, pois, nada há que traga | |
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste. | |
Quer resistir, e quanto mais resiste | |
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga. | |
Sabe que sofre, mas o que não sabe | |
E que essa mágoa infinda assim não cabe | |
Na sua vida, é que essa mágoa infinda | |
Transpõe a vida do seu corpo inerme; | |
E quando esse homem se transforma em verme | |
É essa mágoa que o acompanha ainda! | |
" | |
Miguel Torga,"Fronteira | |
De um lado terra, doutro lado terra; | |
De um lado gente; doutro lado gente; | |
Lados e filhos desta mesma serra, | |
O mesmo c´ú os olha e os consente. | |
O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além; | |
Uivos iguais de cão ou de alcateia. | |
E a mesma lua lírica que vem | |
Corar meadas de uma velha teia. | |
Mas uma força que não tem razão, | |
Que não tem olhos, que não tem sentido, | |
Passa e reparte o coração | |
Do mais pequeno tojo adormecido. | |
" | |
Ruy Belo,"Literatura explicativa | |
O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol | |
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol | |
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas | |
com alguém ou com nós mesmos anos antes | |
é lermos leibniz conviver com os medici | |
onze quilómetros ao sul de florença | |
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico | |
Há quanto tempo se põe o sol em espinho? | |
Terão visto este sol os liberais no mar | |
ou antero de junto da ermida? | |
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem | |
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos? | |
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes | |
é sentir como nosso o braço esquerdo | |
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém | |
mulheres recortadas nas vidraças | |
oliveiras à chuva homens a trabalhar | |
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas | |
Não mais restos de vozes solidão dos vidros | |
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas | |
não mais o põr-do-sol apenas pôr-do-sol" | |
David Mourão-Ferreira,"Escada sem corrimão | |
É uma escada em caracol | |
E que não tem corrimão. | |
Vai a caminho do Sol | |
Mas nunca passa do chão. | |
Os degraus, quanto mais altos, | |
Mais estragados estão, | |
Nem sustos nem sobressaltos | |
servem sequer de lição. | |
Quem tem medo não a sobe | |
Quem tem sonhos também não. | |
Há quem chegue a deitar fora | |
O lastro do coração. | |
Sobe-se numa corrida. | |
Corre-se prigos em vão. | |
Adivinhaste: é a vida | |
A escada sem corrimão. | |
" | |
Fernando Pessoa,"I - Esqueço-me das horas transviadas... | |
PASSOS DA CRUZ | |
I | |
Esqueço-me das horas transviadas... | |
O Outono mora mágoas nos outeiros | |
E põe um roxo vago nos ribeiros... | |
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas... | |
Aconteceu-me esta paisagem, fadas | |
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros | |
Os céus da tua face, e os derradeiros | |
Tons do poente segredam nas arcadas... | |
No claustro sequestrando a lucidez | |
Um espasmo apagado em ódio à ânsia | |
Põe dias de ilhas vistas do convés | |
No meu cansaço perdido entre os gelos, | |
E a cor do Outono é um funeral de apelos | |
Pela estrada da minha dissonância... | |
II | |
Há um poeta em mim que Deus me disse... | |
A Primavera esquece nos barrancos | |
As grinaldas que trouxe dos arrancos | |
Da sua efémera e espectral ledice... | |
Pelo prado orvalhado a meninice | |
Faz soar a alegria os seus tamancos... | |
Pobre de anseios teu ficar nos bancos | |
Olhando a hora como quem sorrisse... | |
Florir o dia a capitéis de Luz... | |
Violinos do silêncio enternecidos... | |
Tédio onde o só ter tédio nos seduz... | |
Minha alma beija o quadro que pintou... | |
Sento-me ao pé dos séculos perdidos | |
E cismo o seu perfil de inércia e voo... | |
III | |
Adagas cujas jóias velhas galas... | |
Opalesci amar-me entre mãos raras, | |
E, fluido a febres entre um lembrar de aras, | |
O convés sem ninguém cheio de malas... | |
O íntimo silêncio das opalas | |
Conduz orientes até jóias caras, | |
E o meu anseio vai nas rotas claras | |
De um grande sonho cheio de ócio e salas. | |
Passa o cortejo imperial, e ao longe | |
O povo só pelo cessar das lanças | |
Sabe que passa o seu tirano, e estruge | |
Sua ovação, e erguem as crianças... | |
Mas no teclado as tuas mãos pararam | |
E indefinidamente repousaram... | |
IV | |
Ó tocador de harpa, se eu beijasse | |
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!, | |
E, beijando-o, descesse plos desvãos | |
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse | |
Tornado Puro Gesto, gesto-face | |
Da medalha sinistra – reis cristãos | |
Ajoelhando, inimigos e irmãos, | |
Quando processional o andor passasse!... | |
Teu gesto que arrepanha e se extasia... | |
O gesto completo, lua fria | |
Subindo, e em baixo, negros, os juncais... | |
Caverna em estalactites o teu gesto... | |
Não poder eu prendê-lo, fazer mais | |
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto. | |
V | |
Ténue, roçando sedas pelas horas, | |
Teu vulto ciciante passa e esquece, | |
E dia a dia adias para prece | |
O rito cujo ritmo só decoras... | |
Um mar longínquo e próximo humedece | |
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras... | |
E, alada, leve, sobre a dor que choras, | |
Sem qu'rer saber de ti a tarde desce... | |
Erra no anteluar a voz dos tanques... | |
Na quinta imensa gorgolejam águas, | |
Na treva vaga ao meu ter dor estanques... | |
Meu império é das horas desiguais, | |
E dei meu gesto lasso às algas mágoas | |
Que há para além de sermos outonais... | |
VI | |
Venho de longe e trago no perfil, | |
Em forma nevoenta e afastada, | |
O perfil de outro ser que desagrada | |
Ao meu actual recorte humano e vil. | |
Outrora fui talvez, não Boabdil, | |
Mas o seu mero último olhar, da estrada | |
Dado ao deixado vulto de Granada, | |
Recorte frio sob o unido anil... | |
Hoje sou a saudade imperial | |
Do que já na distância de mim vi... | |
Eu próprio sou aquilo que perdi... | |
E nesta estrada para Desigual | |
Florem em esguia glória marginal | |
Os girassóis do império que morri... | |
VII | |
Fosse eu apenas, não sei onde ou como, | |
Uma coisa existente sem viver, | |
Noite de Vida sem amanhecer | |
Entre as sirtes do meu doirado assomo... | |
Fada maliciosa ou incerto gnomo | |
Fadado houvesse de não pertencer | |
Meu intuito gloríola com ter | |
A árvore do meu uso o único pomo... | |
Fosse eu uma metáfora somente | |
Escrita nalgum livro insubsistente | |
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas, | |
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas, | |
Morrendo entre bandeiras desfraldadas | |
Na última tarde de um império em chamas... | |
VIII | |
Ignorado ficasse o meu destino | |
Entre pálios (e a ponte sempre à vista), | |
E anel concluso a chispas de ametista | |
A frase falha do meu póstumo hino... | |
Florescesse em meu glabro desatino | |
O himeneu das escadas da conquista | |
Cuja preguiça, arrecadada, dista | |
Almas do meu impulso cristalino... | |
Meus ócios ricos assim fossem, vilas | |
Pelo campo romano, e a toga traça | |
No meu soslaio anónimas (desgraça | |
A vida) curvas sob mãos intranquilas... | |
E tudo sem Cleópatra teria | |
Findado perto de onde raia o dia... | |
IX | |
Meu coração é um pórtico partido | |
Dando excessivamente sobre o mar. | |
Vejo em minha alma as velas vãs passar | |
E cada vela passa num sentido. | |
Um soslaio de sombras e ruído | |
Na transparente solidão do ar | |
Evoca estrelas sobre a noite estar | |
Em afastados céus o pórtico ido... | |
E em palmares de Antilhas entrevistas | |
Através de, com mãos eis apartados | |
Os sonhos, cortinados de ametistas, | |
Imperfeito o sabor de compensando | |
O grande espaço entre os troféus alçados | |
Ao centro do triunfo em ruído e bando... | |
X | |
Aconteceu-me do alto do infinito | |
Esta vida. Através de nevoeiros, | |
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros, | |
Vim ganhando, e através estranhos ritos | |
De sombra e luz ocasional, e gritos | |
Vagos ao longe, e assomos passageiros | |
De saudade incógnita, luzeiros | |
De divino, este ser fosco e proscrito... | |
Caiu chuva em passados que fui eu. | |
Houve planícies de céu baixo e neve | |
Nalguma coisa de alma do que é meu. | |
Narrei-me à sombra e não me achei sentido. | |
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve | |
Outrora a sua capital de olvido... | |
XI | |
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela | |
E oculta mão colora alguém em mim. | |
Pus a alma no nexo de perdê-la | |
E o meu princípio floresceu em Fim. | |
Que importa o tédio que dentro em mim gela, | |
E o leve Outono, e as galas, e o marfim, | |
E a congruência da alma que se vela | |
Com os sonhados pálios de cetim? | |
Disperso... E a hora como um leque fecha-se... | |
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar... | |
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se... | |
E, abrindo as asas sobre Renovar, | |
A erma sombra do voo começado | |
Pestaneja no campo abandonado... | |
XII | |
Ela ia, tranquila pastorinha, | |
Pela estrada da minha imperfeição. | |
Seguia-a, como um gesto de perdão, | |
O seu rebanho, a saudade minha... | |
«Em longes terras hás-de ser rainha» | |
Um dia lhe disseram, mas em vão... | |
Seu vulto perde-se na escuridão... | |
Só sua sombra ante meus pés caminha... | |
Deus te dê lírios em vez desta hora, | |
E em terras longe do que eu hoje sinto | |
Serás, rainha não, mas só pastora – | |
Só sempre a mesma pastorinha a ir, | |
E eu serei teu regresso, esse indistinto | |
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir... | |
XIII | |
Emissário de um rei desconhecido | |
Eu cumpro informes instruções de além, | |
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm, | |
Soam-me a um outro e anómalo sentido... | |
Inconscientemente me divido | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Extrai Todos os Dias | |
Extrai do todos-os-dias | |
O hoje de todo-o-sempre | |
Até ao fim do mundo | |
Quando o sol gelar | |
A última eternidade. | |
Embala amanhã nos braços dos outros | |
A criança esquecida | |
Que foi agora atropelada | |
Por mil automóveis | |
Em todas as ruas do mundo. | |
Procura nas lágrimas recentes | |
Os olhos de hão-de chorá-las | |
Daqui a dez mil anos. | |
E se queres a glória | |
De ser ignorado | |
Pelo egoísmo do futuro | |
Ouve, poeta do desdém novo: | |
Canta os mortos das barricadas | |
E a volúpia das dores do tempo. | |
(Mas pede às rosas | |
que continuem a repetir-se | |
até o fim das pedras…" | |
Fernando Pessoa,"VI. OS COLOMBOS | |
Outros haverão de ter | |
O que houvermos de perder. | |
Outros poderão achar | |
O que, no nosso encontrar, | |
Foi achado, ou não achado, | |
Segundo o destino dado. | |
Mas o que a eles não toca | |
É a Magia que evoca | |
O Longe e faz dele história. | |
E por isso a sua glória | |
É justa auréola dada | |
Por uma luz emprestada. | |
" | |
Al Berto,"A escrita é a minha primeira morada de silêncio | |
A escrita é a minha primeira morada de silêncio | |
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras | |
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou | |
deserto onde os dedos murmuram o último crime | |
escrever-te continuamente... areia e mais areia | |
construindo no sangue altíssimas paredes de nada | |
esta paixão pelos objectos que guardaste | |
esta pele-memória exalando não sei que desastre | |
a língua de limos | |
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos | |
as manhãs chegavam como um gemido estelar | |
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar | |
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio | |
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo" | |
Al Berto,"Retrato de um Amigo Enquanto Bebe | |
íamos por noites de ciclone largar a tristeza | |
à porta marítima das tabernas...éramos a sombra | |
que mancha o tampo da mesa oscilante | |
falávamos alto como fazem os marinheiro | |
bebíamos até cair | |
conheço este homem | |
debruçado para o rosto indeciso do rapaz | |
perguntava se havia mal no que fazia.... | |
.... eu olhava a televisão pedia mais vinho | |
interrogava-me | |
que secretos desejos teriam singrado | |
com aquele navio carregado de morte? | |
e a cidade crescia, crescia a noite adiante sob a tempestade | |
os passos ecoavam apressados pelo cais | |
Como te chamas? Perguntou | |
mas o rapaz não respondeu...e nada em redor | |
tremeluzia | |
o homem levantou-se | |
indiferente à revelação da alba, titubeou, tossiu | |
apoiado no magro ombro do rapaz | |
desapareceram pelas ruas estreitas do mar | |
entre redes, cordas, quilhas remos | |
onde se embarca para o medo esquecido de mais um dia." | |
Eugénio de Andrade,"Mulheres de preto | |
Há muito que são velhas, vestidasde preto até à alma. Contra o murodefendem-se do sol de pedra;ao lumefurtam-se ao frio do mundo. Ainda têm nome? Ninguémpergunta, ninguém responde. A língua, pedra também. de Rente ao Dizer" | |
Manuel Alegre,"Trova do Emigrante | |
Parte de noite e não olha | |
Os campos que vai deixar | |
Todo por dentro a abanar | |
Como a terra em Agadir | |
Folha a folha se desfolha | |
Seu coração ao partir | |
Não tem sede de aventura | |
Nem quis a terra distante | |
A vida o fez viajante | |
Se busca terras de França | |
É que a sorte lhe foi dura | |
E um homem também se cansa | |
As rugas que o suor cava | |
Não são rugas são enganos | |
São perdas lágrimas e danos | |
De suor por conta alheia | |
Não compensa nunca paga | |
Quanto suor se semeia | |
Em vida vive-se a morte | |
Se o trabalho não dá fruto | |
Morre-se em cada minuto | |
Se o fruto nunca se alcança | |
Porque lhe foi dura a sorte | |
Vai para terras de França | |
Não julguem que vai contente | |
Leva nos olhos o verde | |
Dos campos onde se perde | |
Gente que tudo lhe deu | |
Parte mas fica presente | |
Em tudo o que não colheu | |
Verde campo verde e triste | |
Em ti ceifou e hoje foi-se | |
Em ti ceifou mas a foice | |
Ceifava somente esperança | |
Nem sempre um homem resiste | |
Vai para terras de frança | |
Vai-se um homem vai com ele | |
A marca de uma raiz | |
Vai com ele a cicatriz | |
De um lugar que está vazio | |
Leva gravada na pele | |
Um aldeia um campo um rio | |
Ficam mulheres a chorar | |
Por aqueles que se foram | |
Ai lágrimas que se choram | |
Não fazem qualquer mudança | |
Já foram donos do mar | |
Vão para terras de França." | |
Casimiro de Abreu,"Amor e Medo | |
Quando eu te vejo e me desvio cauto | |
Da luz de fogo que te cerca, ó bela, | |
Contigo dizes, suspirando amores: | |
— ""Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"" | |
Como te enganas! meu amor, é chama | |
Que se alimenta no voraz segredo, | |
E se te fujo é que te adoro louco... | |
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo... | |
Tenho medo de mim, de ti, de tudo, | |
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes. | |
Das folhas secas, do chorar das fontes, | |
Das horas longas a correr velozes. | |
O véu da noite me atormenta em dores | |
A luz da aurora me enternece os seios, | |
E ao vento fresco do cair cias tardes, | |
Eu me estremece de cruéis receios. | |
É que esse vento que na várzea — ao longe, | |
Do colmo o fumo caprichoso ondeia, | |
Soprando um dia tornaria incêndio | |
A chama viva que teu riso ateia! | |
Ai! se abrasado crepitasse o cedro, | |
Cedendo ao raio que a tormenta envia: | |
Diz: — que seria da plantinha humilde, | |
Que à sombra dela tão feliz crescia? | |
A labareda que se enrosca ao tronco | |
Torrara a planta qual queimara o galho | |
E a pobre nunca reviver pudera. | |
Chovesse embora paternal orvalho! | |
Ai! se te visse no calor da sesta, | |
A mão tremente no calor das tuas, | |
Amarrotado o teu vestido branco, | |
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ... | |
Ai! se eu te visse, Madalena pura, | |
Sobre o veludo reclinada a meio, | |
Olhos cerrados na volúpia doce, | |
Os braços frouxos — palpitante o seio!... | |
Ai! se eu te visse em languidez sublime, | |
Na face as rosas virginais do pejo, | |
Trêmula a fala, a protestar baixinho... | |
Vermelha a boca, soluçando um beijo!... | |
Diz: — que seria da pureza de anjo, | |
Das vestes alvas, do candor das asas? | |
Tu te queimaras, a pisar descalça, | |
Criança louca — sobre um chão de brasas! | |
No fogo vivo eu me abrasara inteiro! | |
Ébrio e sedento na fugaz vertigem, | |
Vil, machucara com meu dedo impuro | |
As pobres flores da grinalda virgem! | |
Vampiro infame, eu sorveria em beijos | |
Toda a inocência que teu lábio encerra, | |
E tu serias no lascivo abraço, | |
Anjo enlodado nos pauis da terra. | |
Depois... desperta no febril delírio, | |
— Olhos pisados — como um vão lamento, | |
Tu perguntaras: que é da minha coroa?... | |
Eu te diria: desfolhou-a o vento!... | |
Oh! não me chames coração de gelo! | |
Bem vês: traí-me no fatal segredo. | |
Se de ti fujo é que te adoro e muito! | |
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!... | |
" | |
José Craveirinha,"Aforismo | |
Havia uma formiga | |
compartilhando comigo o isolamento | |
e comendo juntos. | |
Estávamos iguais | |
com duas diferenças: | |
Não era interrogada | |
e por descuido podiam pisa-la. | |
Mas aos dois intencionalmente | |
podiam por-nos de rastos | |
mas não podiam | |
ajoelhar-nos." | |
Thiago de Mello,"Narciso Cego | |
Tudo o que de mim se perde | |
acrescenta-se ao que sou. | |
Contudo, me desconheço. | |
Pelas minhas cercanias | |
passeio — não me frequento. | |
Por sobre fonte erma e esquiva | |
flutua-me, íntegra, a face. | |
Mas nunca me vejo: e sigo | |
com face mal disfarçada. | |
Oh que amargo é o não poder | |
rosto a rosto contemplar | |
aquilo que ignoto sou; | |
distiguir até que ponto | |
sou eu mesmo que me levo | |
ou se um nume irrevelável | |
que (para ser) vem morar | |
comigo, dentro de mim, | |
mas me abandona se rolo | |
pelos declives do mundo. | |
Desfaço-me do que sonho: | |
faço-me sonho de alguém | |
oculto. Talvez um Deus | |
sonhe comigo, cobice | |
o que eu guardo e nunca usei. | |
Cego assim, não me decifro. | |
E o imaginar-me sonhado | |
não me completa: a ganância | |
de ser-me inteiro prossegue. | |
E pairo — pânico mudo — | |
entre o sonho e o sonhador. | |
Publicado no livro Narciso Cego; Seguido do Romance do Primogênito (1952). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Confidência do Itabirano | |
Alguns anos vivi em Itabira. | |
Principalmente nasci em Itabira. | |
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. | |
Noventa por cento de ferro nas calçadas. | |
Oitenta por cento de ferro nas almas. | |
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. | |
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, | |
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. | |
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, | |
é doce herança itabirana. | |
De Itabira trouxe prendas diversas que ora ofereço: | |
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; | |
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; | |
este orgulho, esta cabeça baixa... | |
Tive ouro, tive gado, tive fazendas. | |
Hoje sou funcionário público. | |
Itabira é apenas uma fotografia na parede. | |
Mas como dói! | |
" | |
Bocage,"Olha, Marília, as flautas dos pastores | |
Olha, Marília, as flautas dos pastores | |
Que bem que soam, como estão cadentes! | |
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes | |
Os Zéfiros brincar por entre as flores? | |
Vê como ali beijando-se os Amores | |
Incitam nossos ósculos ardentes! | |
Ei-las de planta em planta as inocentes, | |
As vagas borboletas de mil cores. | |
Naquele arbusto o rouxinol suspira, | |
Ora nas folhas a abelhinha pára, | |
Ora nos ares sussurrando gira. | |
Que alegre campo! Que manhã tão clara! | |
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira, | |
Mais tristeza que a noite me causara. | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"O Mar e o Canavial | |
O que o mar sim aprende do canavial: | |
a elocução horizontal de seu verso; | |
a geórgica de cordel, ininterrupta, | |
narrada em voz e silêncio paralelos. | |
O que o mar não aprende do canavial: | |
a veemência passional da preamar; | |
a mão-de-pilão das ondas na areia, | |
moída e miúda, pilada do que pilar. | |
* | |
O que o canavial sim aprende do mar: | |
o avançar em linha rasteira da onda; | |
o espraiar-se minucioso, de líquido, | |
alagando cova a cova onde se alonga. | |
O que o canavial não aprende do mar: | |
o desmedido do derramar-se da cana; | |
o comedimento do latifúndio do mar, | |
que menos lastradamente se derrama. | |
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 1994. p.335. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Ruy Belo,"Tu estás aqui | |
Estás aqui comigo à sombra do sol | |
escrevo e oiço certos ruídos domésticos | |
e a luz chega-me humildemente pela janela | |
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou | |
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano | |
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama | |
que uso para ser também isto este bicho | |
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos | |
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem | |
o que sei o | |
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem | |
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras | |
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou | |
outra coisa | |
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior | |
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço | |
bem entendido o que faço com este braço | |
Estás aqui comigo e à volta são as paredes | |
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa | |
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho | |
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer | |
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado | |
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes | |
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa | |
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol | |
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso | |
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome | |
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro | |
nome embora no mesmo nome este nome | |
de terra de dor de paredes este nome doméstico | |
Afinal fui isto nada mais do que isto | |
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto | |
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome | |
que não merda | |
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das | |
outras coisas | |
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto | |
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa | |
uma coisa para além disto que não isto | |
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo | |
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos | |
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos | |
tu és em cada gesto todos os teus gestos | |
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como | |
a palavra paz | |
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas | |
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui | |
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui | |
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente | |
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias | |
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer | |
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui" | |
Luís de Camões,"Pede o desejo, Dama, que vos veja | |
Pede o desejo, Dama, que vos veja. | |
Não entende o que pede; está enganado. | |
É este amor tão fino e tão delgado, | |
Que quem o tem não sabe o que deseja. | |
Não há cousa a qual natural seja | |
Que não queira perpétuo o seu estado. | |
Não quer logo o desejo o desejado, | |
Por que não falte nunca onde sobeja. | |
Mas este puro afeito em mim se dana; | |
Que, como a grave pedra tem por arte | |
O centro desejar da Natureza, | |
Assi o pensamento, pela parte | |
Que vai tomar de mim, terrestre, humana, | |
Foi, Senhora, pedir esta baixeza." | |
Castro Alves,"Tragédia no Lar | |
Na senzala, úmida, estreita, | |
Brilha a chama da candeia, | |
No sapé se esgueira o vento. | |
E a luz da fogueira ateia. | |
Junto ao fogo, uma africana, | |
Sentada, o filho embalando, | |
Vai lentamente cantando | |
Uma tirana indolente, | |
Repassada de aflição. | |
E o menino ri contente... | |
Mas treme e grita gelado, | |
Se nas palhas do telhado | |
Ruge o vento do sertão. | |
(...) | |
A cantiga cessou... Vinha da estrada | |
A trote largo, linda cavalhada | |
De estranho viajor, | |
Na porta da fazenda eles paravam, | |
Das mulas boleadas apeavam | |
E batiam na porta do senhor. | |
(...) | |
A porta da fazenda foi aberta; | |
Entraram no salão. | |
(...) | |
Por que tremes, mulher? Que estranho crime, | |
Que remorso cruel assim te oprime | |
E te curva a cerviz? | |
O que nas dobras do vestido ocultas? | |
É um roubo talvez que aí sepultas? | |
É seu filho ...Infeliz!... | |
(...) | |
Leitor, se não tens desprezo | |
De vir descer às senzalas | |
Trocar tapetes e salas | |
Por um alcouce cruel, | |
Vem comigo, mas... cuidado... | |
Que o teu vestido bordado | |
Não fique no chão manchado, | |
No chão do imundo bordel. | |
(...) | |
— Escrava, dá-me teu filho! | |
Senhores, ide-lo ver: | |
É forte de uma raça bem provada, | |
Havemos tudo fazer. | |
(...) | |
— Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme... | |
Inda a pouco o embalei, pobre inocente, | |
Que nem sequer pressente | |
Que ides... | |
— Sim, que o vou vender! | |
— Vender?!... Vender meu filho?! | |
Senhor, por piedade, não... | |
Vós sois bom... antes do peito | |
Me arranqueis o coração! | |
(...) | |
Porém nada comove homens de pedra, | |
Sepulcros onde é morto o coração. | |
A criança do berço ei-los arrancam | |
Que os bracinhos estende e chora em vão! | |
(...) | |
Um momento depois a cavalgada | |
Levava a trote largo pela estrada | |
A criança a chorar. | |
Na fazenda o azorrague então se ouvia | |
E aos golpes — uma doida respondia | |
Com frio gargalhar!... | |
Recife, julho de 1865. | |
Imagem - 00290006 | |
Publicado no livro A cachoeira de Paulo Afonso: poema original brasileiro (1876). | |
In: ALVES, Castro. Obra completa. Org. e notas Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 198" | |
Olavo Bilac,"Música Brasileira | |
Tens, às vezes, o fogo soberano | |
Do amor: encerras na cadência, acesa | |
Em requebros e encantos de impureza, | |
Todo o feitiço do pecado humano. | |
Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza | |
Dos desertos, das matas e do oceano: | |
Bárbara poracé, banzo africano, | |
E soluços de trova portuguesa. | |
És samba e jongo, xiba e fado, cujos | |
Acordes são desejos e orfandades | |
De selvagens, cativos e marujos: | |
E em nostalgias e paixões consistes, | |
Lasciva dor, beijo de três saudades, | |
Flor amorosa de três raças tristes. | |
Publicado no livro Tarde (1919). | |
In: BILAC, Olavo. Poesias. Posfácio R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 197" | |
Cassiano Ricardo,"Serenata Sintética | |
Rua | |
torta. | |
Lua | |
morta. | |
Tua | |
porta. | |
Publicado no livro Um dia depois do outro, 1944/1946 (1947). | |
In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.27" | |
Fernando Pessoa,"Quando as crianças brincam | |
Quando as crianças brincam | |
E eu as ouço brincar, | |
Qualquer coisa em minha alma | |
Começa a se alegrar | |
E toda aquela infância | |
Que não tive me vem, | |
Numa onda de alegria | |
Que não foi de ninguém. | |
Se quem fui é enigma, | |
E quem serei visão, | |
Quem sou ao menos sinta | |
Isto no meu coração. | |
05/09/1933" | |
Castro Alves,"Tragédia no Lar | |
Na Senzala, úmida, estreita, | |
Brilha a chama da candeia, | |
No sapé se esgueira o vento. | |
E a luz da fogueira ateia. | |
Junto ao fogo, uma africana, | |
Sentada, o filho embalando, | |
Vai lentamente cantando | |
Uma tirana indolente, | |
Repassada de aflição. | |
E o menino ri contente... | |
Mas treme e grita gelado, | |
Se nas palhas do telhado | |
Ruge o vento do sertão. | |
Se o canto pára um momento, | |
Chora a criança imprudente ... | |
Mas continua a cantiga ... | |
E ri sem ver o tormento | |
Daquele amargo cantar. | |
Ai! triste, que enxugas rindo | |
Os prantos que vão caindo | |
Do fundo, materno olhar, | |
E nas mãozinhas brilhantes | |
Agitas como diamantes | |
Os prantos do seu pensar ... | |
E voz como um soluço lacerante | |
Continua a cantar: | |
""Eu sou como a garça triste | |
""Que mora à beira do rio, | |
""As orvalhadas da noite | |
""Me fazem tremer de frio. | |
""Me fazem tremer de frio | |
""Como os juncos da lagoa; | |
""Feliz da araponga errante | |
""Que é livre, que livre voa. | |
""Que é livre, que livre voa | |
""Para as bandas do seu ninho, | |
""E nas braúnas à tarde | |
""Canta longe do caminho. | |
""Canta longe do caminho. | |
""Por onde o vaqueiro trilha, | |
""Se quer descansar as asas | |
""Tem a palmeira, a baunilha. | |
""Tem a palmeira, a baunilha, | |
""Tem o brejo, a lavadeira, | |
""Tem as campinas, as flores, | |
""Tem a relva, a trepadeira, | |
""Tem a relva, a trepadeira, | |
""Todas têm os seus amores, | |
""Eu não tenho mãe nem filhos, | |
""Nem irmão, nem lar, nem flores"". | |
A cantiga cessou. . . Vinha da estrada | |
A trote largo, linda cavalhada | |
De estranho viajor, | |
Na porta da fazenda eles paravam, | |
Das mulas boleadas apeavam | |
E batiam na porta do senhor. | |
Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas, | |
Sorrisos sensuais, sinistro olhar, | |
Os bigodes retorcidos, | |
O cigarro a fumegar, | |
O rebenque prateado | |
Do pulso dependurado, | |
Largas chilenas luzidas, | |
Que vão tinindo no chão, | |
E as garruchas embebidas | |
No bordado cinturão. | |
A porta da fazenda foi aberta; | |
Entraram no salão. | |
Por que tremes mulher? A noite é calma, | |
Um bulício remoto agita a palma | |
Do vasto coqueiral. | |
Tem pérolas o rio, a noite lumes, | |
A mata sombras, o sertão perfumes, | |
Murmúrio o bananal. | |
Por que tremes, mulher? Que estranho crime, | |
Que remorso cruel assim te oprime | |
E te curva a cerviz? | |
O que nas dobras do vestido ocultas? | |
É um roubo talvez que aí sepultas? | |
É seu filho ... Infeliz! ... | |
Ser mãe é um crime, ter um filho - roubo! | |
Amá-lo uma loucura! Alma de lodo, | |
Para ti - não há luz. | |
Tens a noite no corpo, a noite na alma, | |
Pedra que a humanidade pisa calma, | |
— Cristo que verga à cruz! | |
Na hipérbole do ousado cataclisma | |
Um dia Deus morreu... fuzila um prisma | |
Do Calvário ao Tabor! | |
Viu-se então de Palmira os pétreos ossos, | |
De Babel o cadáver de destroços | |
Mais lívidos de horror. | |
Era o relampejar da liberdade | |
Nas nuvens do chorar da humanidade, | |
Ou sarça do Sinai, | |
— Relâmpagos que ferem de desmaios... | |
Revoluções, vós deles sois os raios, | |
Escravos, esperai! ... | |
.................................................................. | |
Leitor, se não tens desprezo | |
De vir descer às senzalas, | |
Trocar tapetes e salas | |
Por um alcouce cruel, | |
Que o teu vestido bordado | |
Vem comigo, mas ... cuidado ... | |
Não fique no chão manchado, | |
No chão do imundo bordel. | |
Não venhas tu que achas triste | |
Às vezes a própria festa. | |
Tu, grande, que nunca ouviste | |
Senão gemidos da orquestra | |
Por que despertar tualma, | |
Em sedas adormecida, | |
Esta excrescência da vida | |
Que ocultas com tanto esmero? | |
E o coração - tredo lodo, | |
Fezes dânfora doirada | |
Negra serpe, que enraivada, | |
Morde a cauda, morde o dorso | |
E sangra às vezes piedade, | |
E sangra às vezes remorso?... | |
Não venham esses que negam | |
A esmola ao leproso, ao pobre. | |
A luva branca do nobre | |
Oh! senhores, não mancheis... | |
Os pés lá pisam em lama, | |
Porém as frontes são puras | |
Mas vós nas faces impuras | |
Tendes lodo, e pus nos pés. | |
Porém vós, que no lixo do oceano | |
A pérola de luz ides buscar, | |
Mergulhadores deste pego insano | |
Da sociedade, deste tredo mar. | |
Vinde ver como rasgam-se as entranhas | |
De uma raça de novos Prometeus, | |
Ai! vamos ver guilhotinadas almas | |
Da senzala nos vivos mausoléus. | |
— Escrava, dá-me teu filho! | |
Senhores, ide-lo ver: | |
É forte, de uma raça bem provada, | |
Havemos tudo fazer. | |
Assim dizia o fazendeiro, rindo, | |
E agitava o chicote... | |
A mãe que ouvia | |
Imóvel, pasma, doida, sem razão! | |
À Virgem Santa pedia | |
Com prantos por oração; | |
E os olhos no ar erguia | |
Que a voz não podia, não. | |
— Dá-me teu filho! repetiu fremente | |
o senhor, de sobrolho carregado. | |
— Impossível!... | |
— Que dizes, miserável?! | |
— Perdão, senhor! perdão! meu filho dorme... | |
Inda há pouco o embalei, pobre inocente, | |
Que nem sequer pressente | |
Que ides... | |
— Sim, que o vou vender! | |
— Vender?!. . . Vender meu filho?! | |
Senhor, por piedade, não | |
Vós sois bom antes do peito | |
Me arranqueis o coração! | |
Por piedade, matai-me! Oh! É impossível | |
Que me roubem da vida o único bem! | |
Apenas sabe rir é tão pequeno! | |
Inda não sabe me chamar? Também | |
Senhor, vós tendes filhos... quem não tem? | |
Se alguém quisesse os vender | |
Havíeis muito chorar | |
Havíeis muito gemer, | |
Diríeis a rir — Perdão?! | |
Deixai meu filho... arrancai-me | |
Antes a alma e o coração! | |
— Cala-te miserável! Meus senhores, | |
O escravo podeis ver ... | |
E a mãe em pranto aos pés dos mercadores | |
Atirou-se a gemer. | |
— Senhores! basta a desgraça | |
De não ter pátria nem lar, - | |
De ter honra e ser vendida | |
De ter alma e nunca amar! | |
Deixai à noite que chora | |
Que espere ao menos a aurora, | |
Ao ramo seco uma flor; | |
Deixai o pássaro ao ninho, | |
Deixai à mãe o filhinho, | |
Deixai à desgraça o amor. | |
Meu filho é-me a sombra amiga | |
Neste deserto cruel!... | |
Flor de inocência e candura. | |
Favo de amor e de mel! | |
Seu riso é minha alvorada, | |
Sua lágrima doirada | |
Minha estrela, minha luz! | |
É da vida o único brilho | |
Meu filho! é mais... é meu filho | |
Deixai-mo em nome da Cruz!... | |
Porém nada comove homens de pedra, | |
Sepulcros onde é morto o coração. | |
A criança do berço ei-los arrancam | |
Que os bracinhos estende e chora em vão! | |
Mudou-se a cena. Já vistes | |
Bramir na mata o jaguar, | |
E no furor desmedido | |
Saltar, raivando atrevido. | |
O ramo, o tronco estalar, | |
Morder os cães que o morderam... | |
De vítima feita algoz, | |
Em sangue e horror envolvido | |
Terrível, bravo, feroz? | |
Assim a escrava da criança ao grito | |
Destemida saltou, | |
E a turba dos senhores aterrada | |
Ante ela recuou. | |
— Nem mais um passo, cobardes! | |
Nem mais um passo! ladrões! | |
Se os outros roubam as bolsas, | |
Vós roubais os corações! ... | |
Entram três negros possantes, | |
Brilham punhais traiçoeiros... | |
Rolam por terra os primeiros | |
Da morte nas contorções. | |
Um momento depois a cavalgada | |
Levava a trote largo pela estrada | |
A criança a cho" | |
Ruy Belo,"Um dia não muito longe não muito perto | |
Às vezes sabes sinto-me farto | |
por tudo isto ser sempre assim | |
Um dia não muito longe não muito perto | |
um dia muito normal um dia quotidiano | |
um dia não é que eu pareça lá muito hirto | |
entrarás no quarto e chamarás por mim | |
e digo-te já que tenho pena de não respnder | |
de não sair do meu ar vagamente absorto | |
farei um esforço parece mas nada a fazer | |
hás-de dizer que pareço morto | |
que disparate dizias tu que houve um surto | |
não sabes de quê não muito perto | |
e eu sem nada pra te dizer | |
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto | |
não muito perto desse tal surto | |
queres tu ver que hei-de estar morto?" | |
Mário Quintana,"O luar | |
O luar, | |
é a luz do Sol que está sonhando | |
---------------------------------------- | |
O tempo não pára! | |
A saudade é que faz as coisas pararem no tempo... | |
----------------------------------------- | |
...os verdadeiros versos não são para embalar, | |
mas para abalar... | |
------------------------------------------ | |
A grande tristeza dos rios é não poderem levar a tua imagem... | |
" | |
Manuel Bandeira,"TRÊS IDADES | |
A vez primeira que te vi, | |
Era eu menino e tu menina. | |
Sorrias tanto... Havia em ti | |
Graça de instinto, airosa e fina. | |
Eras pequena, eras frnazina... | |
A ver-te, a rir numa gavota, | |
Meu coração entristeceu | |
Por que? Relembro, nota a nota, | |
Essa ária como eterneceu | |
O meu olhar cheio do teu. | |
Quando te vi segunda vez, | |
Já eras moça, e com que encanto | |
A adolescência em ti se fez! | |
Flor e botão... Sorrias tanto... | |
E o teu sorriso foi meu pranto... | |
Já eras moça... Eu, um menino... | |
Como contar-te o que passei? | |
Seguiste alegre o teu destino... | |
Em pobres versos te chorei | |
Teu caro nome abençoei. | |
Vejo-te agora. Oito anos faz, | |
Oito anos faz que não te via... | |
Quanta mudança o tempo traz | |
Em sua atroz monotonia! | |
Que é do teu riso de alegria? | |
Foi bem cruel o teu desgosto. | |
Essa tristeza é que diz... | |
Ele marcou sobre o teu rosto | |
A imperecível cicatriz: | |
És triste até quando sorris... | |
Porém teu vulto conservou | |
A mesma graça ingênua e fina... | |
A desventura te afeiçoou | |
À tua imagem de menina. | |
E estás delgada, estás franzina... | |
" | |
Cesário Verde,"Eu e ela | |
Cobertos de folhagem, na verdura, | |
O teu braço ao redor do meu pescoço, | |
O teu fato sem ter um só destroço, | |
O meu braço apertando-te a cintura; | |
Num mimoso jardim, ó pomba mansa, | |
Sobre um banco de mármore assentados. | |
Na sombra dos arbustos, que abraçados, | |
Beijarão meigamente a tua trança. | |
Nós havemos de estar ambos unidos, | |
Sem gozos sensuais, sem más ideias, | |
Esquecendo para sempre as nossas ceias, | |
E a loucura dos vinhos atrevidos. | |
Nós teremos então sobre os joelhos | |
Um livro que nos diga muitas cousas | |
Dos mistérios que estão para além das lousas, | |
Onde havemos de entrar antes de velhos. | |
Outras vezes buscando distracção, | |
Leremos bons romances galhofeiros, | |
Gozaremos assim dias inteiros, | |
Formando unicamente um coração. | |
Beatos ou pagãos, vida à paxá, | |
Nós leremos, aceita este meu voto, | |
O Flos-Sanctorum místico e devoto | |
E o laxo Cavalheiro de Flaublas... | |
" | |
Pablo Neruda,"Pedras Antárticas | |
Ali termina tudo | |
e não termina: | |
ali começa tudo | |
se despedem os rios no gelo, | |
o ar se há casado com a neve, | |
não há ruas nem cavalos | |
e o único edifício | |
o construiu a pedra. | |
Ninguém habita o castelo | |
nem as almas perdidas | |
que frio e vento frio | |
amedrontaram: | |
é sozinha ali a solidão do mundo, | |
e por isso a pedra | |
se fez música, | |
elevou suas delgadas estaturas, | |
se levantou para gritar ou cantar, | |
porém ficou muda. | |
Só o vento, | |
o açoite | |
do Pólo Sul que assobia, | |
só o vazio branco | |
e um som de pássaro de chuva | |
sobre o castelo da solidão. | |
" | |
Al Berto,"Resposta à Emile | |
A guerra daqui não mata - mas abre fissuras | |
Nos nervos - é o que te posso dizer | |
Deste país que escolhi para definhar | |
A cidade é u amontoado de lixo de tapumes | |
De sucata e de casas que se desmoronam | |
A realidade estragou os olhos das crianças | |
No fim do corpo em que me escondo espalhou-se | |
A treva onde | |
Guardo a corola azulínea de tua ausência | |
E o marulho nítido de um mar que canta | |
E um calor sísmico nos lábios que beijaste | |
É - me difícil continuar a escrever-te | |
O que me destrói - sei que estou fodido | |
E tu já não és meu | |
Preparo-me para entreabrir os olhos e | |
Deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas | |
E das coisas tristes." | |
Marina Colasanti,"Quarto de Pensão | |
Sou pensionista da vida. | |
Na mesma tábua em que durmo | |
Escrevo meu trabalho | |
E ela farfalha, embora já sem folhas, | |
Só da lembrança de ter sido tronco. | |
Tenho uma pia no canto, | |
Que goteja | |
E é meu lago, meu rio, meu | |
Fundo mar. | |
Tenho um rijo cabide | |
À cabeceira | |
Para dependurar a pele | |
A cada noite. | |
Me dão café com pão, e às vezes | |
Algum vinho. | |
Dizem que só paguei meia pensão. | |
Há uma fome indistinta que me habita | |
Enquanto o medo | |
Com felpudos passos | |
Percorre o labirinto das entranhas. | |
Mas agradeço essas quatro paredes | |
E que me tenham dado uma janela. | |
Pois sei que a qualquer hora | |
Sem possibilidade de recurso | |
E talvez mesmo sem aviso prévio | |
Serei intimada | |
A devolver o quarto. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Lettera amorosa | |
Respiro o teu corpo: | |
sabe a lua-de-água | |
ao amanhecer, | |
sabe a cal molhada, | |
sabe a luz mordida, | |
sabe a brisa nua, | |
ao sangue dos rios, | |
sabe a rosa louca, | |
ao cair da noite | |
sabe a pedra amarga, | |
sabe à minha boca. | |
" | |
Tomás Antônio Gonzaga,"Lira I | |
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, | |
que viva de guardar alheio gado, | |
de tosco trato, de expressões grosseiro, | |
dos frios gelos e dos sóis queimado. | |
Tenho próprio casal e nele assisto; | |
dá-me vinho, legume, fruta, azeite; | |
das brancas ovelhinhas tiro o leite, | |
e mais as finas lãs, de que me visto. | |
Graças, Marília bela. | |
graças à minha Estrela! | |
Eu vi o meu semblante numa fonte: | |
dos anos inda não está cortado; | |
os Pastores que habitam este monte | |
respeitam o poder do meu cajado. | |
Com tal destreza toco a sanfoninha, | |
que inveja até me tem o próprio Alceste: | |
ao som dela concerto a voz celeste | |
nem canto letra, que não seja minha. | |
Graças, Marília bela. | |
graças à minha Estrela! | |
Mas tendo tantos dotes da ventura, | |
só apreço lhes dou, gentil Pastora, | |
depois que o teu afeto me segura | |
que queres do que tenho ser senhora. | |
É bom, minha Marília, é bom ser dono | |
de um rebanho, que cubra monte e prado; | |
porém, gentil Pastora, o teu agrado | |
vale mais que um rebanho e mais que um trono. | |
Graças, Marília bela. | |
graças à minha Estrela! | |
(...) | |
Publicado no livro Marília de Dirceu: Parte I (1792). | |
In: GONZAGA, Tomás Antônio. Obras completas. Ed. crít. M. Rodrigues Lapa. São Paulo: Ed. Nacional, 1942. (Livros do Brasil, 5" | |
Adélia Prado,"Objeto de amor | |
De tal ordem é e tão precioso | |
o que devo dizer-lhes | |
que não posso guardá-lo | |
sem a sensação de um roubo: | |
cu é lindo! | |
Fazei o que puderdes com esta dádiva. | |
Quanto a mim dou graças | |
pelo que agora sei | |
e, mais que perdôo, eu amo. | |
" | |
Pablo Neruda,"CAVALHEIRO SÓ | |
Os jovens homossexuais e as mocinhas amorosas, | |
e as longas viúvas que sofrem de insônia delirante, | |
e as jovens senhoras há trinta horas emprenhadas, | |
e os gatos roufenhos que atravessam meu jardim em trevas, | |
como um colar de palpitantes ostras sexuais | |
rodeiam minha casa solitária, | |
inimigos jurados de minha alma, | |
conspiradores em traje de dormir, | |
que trocaram por senha grandes beijos espessos. | |
O verão radiante conduz os namorados | |
em uniformes regimentos melancólicos | |
de pares gordos magros e alegres tristes pares: | |
sob os coqueiros elegantes, junto ao mar e à lua, | |
há uma vida contínua de calças e galinhas, | |
um rumor de meias de seda acariciadas, | |
e seios femininos a brilhar como dois olhos. | |
O pequeno empregado, depois de tanta coisa, | |
depois do tédio semanal e das novelas lidas na cama toda noite, | |
seduziu sua vizinha inapelavelmente | |
e a leva agora a cinemas miseráveis | |
onde os heróis são potros ou são príncipes apaixonados, | |
e lhe acaricia as pernas, véu macio, | |
com suas mãos ardentes, úmidas que cheiram a cigarro | |
As tardes do sedutor e as noites dos esposos | |
se unem, dois lençóis que me sepultam, | |
e as horas de após almoço em que os jovens estudantes | |
e as jovens estudantes, e os padres se masturbam, | |
e os animais fornicam sem rodeios | |
e as abelhas cheiram a sangue e zumbem coléricas as moscas, | |
e os primos brincam de estranho jeito com as primas, | |
e os médicos olham com fúria o marido da jovem paciente, | |
e as horas da manhã nas quais, como que por descuido, o professor | |
cumpre os seus deveres conjugais e desjejua, | |
e inda mais os adúlteros, que com amor verdadeiro se amam | |
sobre leitos altos, amplos como embarcações; | |
seguramente, eternamente me rodeia | |
este respiratório e enredado grande bosque | |
com grandes flores e com dentaduras | |
e raízes negras em forma de unhas e sapatos. | |
(Tradução | |
de José Paulo Paes) | |
" | |
Olavo Bilac,"O Universo | |
(Paráfrase) | |
A Lua: | |
Sou um pequeno mundo; | |
Movo-me, rolo e danço | |
Por este céu profundo; | |
Por sorte Deus me deu | |
Mover-me sem descanso, | |
Em torno de outro mundo, | |
Que inda é maior do que eu. | |
A Terra: | |
Eu sou esse outro mundo; | |
A lua me acompanha, | |
Por este céu profundo . . . | |
Mas é destino meu | |
Rolar, assim tamanha, | |
Em torno de outro mundo, | |
Que inda é maior do que eu. | |
O Sol: | |
Eu sou esse outro mundo, | |
Eu sou o sol ardente! | |
Dou luz ao céu profundo . . . | |
Porém, sou um pigmeu, | |
Quer rolo eternamente | |
Em torno de outro mundo, | |
Que inda é maior do que eu. | |
O Homem: | |
Por que, no céu profundo, | |
Não há-de parar mais | |
O vosso movimento? | |
Astros! qual é o mundo, | |
Em torno ao qual rodais | |
Por esse firmamento? | |
Todos os Astros: | |
Não chega o teu estudo | |
Ao centro disso tudo, | |
Que escapa aos olhos teus! | |
O centro disso tudo, | |
Homem vaidoso, é Deus! | |
" | |
Chacal,"Ossos do Ofício | |
sempre deixei as barbas de molho | |
porque barbeiro nenhum me ensinou | |
como manejar o fio da navalha | |
sempre tive a pulga atrás da orelha | |
porque nenhum otorrino me disse | |
como se fala aos ouvidos das pessoas | |
sou um cara grilado | |
um péssimo marido | |
nove anos de poesia | |
me renderam apenas | |
um circo de pulgas | |
e as barbas mais límpidas da turquia. | |
Publicado no livro Boca roxa (1979). | |
In: CHACAL. Drops de abril. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.89. (Cantadas literárias, 16" | |
David Mourão-Ferreira,"Momento | |
Chegado o momento | |
em que tudo é tudo | |
dos teus pés ao ventre | |
das ancas à nuca | |
ouve-se a torrente | |
de um rio confuso | |
Levanta-se o vento | |
Comparece a lua | |
Entre linguas e dentes | |
este sol nocturno | |
Nos teus quatro membros | |
de curvos arbustos | |
lavra um só incêndio | |
que se torna muitos | |
Cadente silêncio | |
sob o que murmuras | |
Por fora por dentro | |
do bosque do púbis | |
crepitam-me os dedos | |
tocando alaúde | |
nas cordas dos nervos | |
a que te reduzes | |
Assim o momento | |
em que tudo é tudo | |
Mais concretamente | |
água fogo música | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Pequena elegia de setembro | |
Não sei como vieste,mas deve haver um caminhopara regressar da morte. Estás sentada no jardim,as mãos no regaço cheias de doçura,os olhos pousados nas últimas rosasdos grandes e calmos dias de setembro. Que música escutas tão atentamenteque não dás por mim?Que bosque, ou rio, ou mar?Ou é dentro de tique tudo canta ainda? Queria falar contigo,dizer-te apenas que estou aqui,mas tenho medo,medo que toda a música cessee tu não possas mais olhar as rosas. Medo de quebrar o fiocom que teces os dias sem memória.Com que palavrasou beijos ou lágrimasse acordam os mortos sem os ferir,sem os trazer a esta espuma negraonde corpos e corpos se repetem,parcimoniosamente, no meio de sombras? Deixa-te estar assim,ó cheia de doçura,sentada, olhando as rosas,e tão alheiaque nem dás por mim. de Coração de Dia" | |
Al Berto,"O Pequeno Demiurgo | |
escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mare as árvores crescem dos espaços enevoadosentre olhar e olhar movem-seanimais presos à terra com suas plumagens de ferroe de orvalho de ouro quando a lua se eclipsacomunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viverpenso outono ou invernoe o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rostosobre o corpo em tímidos gestoseis o tempodo capricórnio reduzido ao esconderijo tatuadona asa mineral da ave em pleno vôo e digo nuvensrelâmpago erva águashomemmovimento do susto oceanos sal exaustos corpostransumantes paixões digoe surge irrompe escorre ergue-se move-se vivemorremas não julguem ser trabalho simples nomeararrumar e desordenar o mundopara que não se apague esta trémula escritapreciso do sonho e do pesadeloda proximidade vertiginosa dos espelhos ede pernoitar no fundo de mim com as mãos sujaspelo árduo trabalho de construir os gestos exactosda alegria que por descuido deus abandonou ao cansaçono fim do sétimo dia" | |
Reinaldo Ferreira,"Menina dos olhos tristes | |
Menina dos olhos tristes, | |
O que tanto a faz chorar? | |
- O soldadinho não volta | |
Do outro lado do mar. | |
Senhora de olhos cansados, | |
Porque a fatiga o tear? | |
- O soldadinho não volta | |
Do outro lado do mar. | |
Vamos, senhor pensativo, | |
Olhe o cachimbo a apagar. | |
- O soldadinho não volta | |
Do outro lado do mar. | |
Anda bem triste um amigo, | |
Uma carta o fez chorar. | |
- O soldadinho não volta | |
Do outro lado do mar. | |
A Lua, que é viajante, | |
É que nos pode informar | |
- O soldadinho já volta | |
Do outro lado do mar. | |
O soldadinho já volta, | |
Está quase mesmo a chegar. | |
Vem numa caixa de pinho. | |
Desta vez o soldadinho | |
Nunca mais se faz ao mar. | |
" | |
Florbela Espanca,"A Mulher I | |
Um ente de paixão e sacrifício,De sofrimentos cheio, eis a mulher!Esmaga o coração dentro do peito,E nem te doas coração, sequer! Sê forte, corajoso, não fraquejes Na luta; sê em Vénus sempre Marte;Sempre o mundo é vil e infame e os homens Se te sentem gemer hão-de pisar-te! Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,Essa brancura ideal de puro arminho Eles deixam pra sempre maculada; E gritam então os vis: «Olhem, vejam É aquela a infame!» e apedrejam A probrezita, a triste, a desgraçada!" | |
Mário Cesariny,"O jovem mágico | |
O jovem mágico das mãos de ouro que a remar não se cansa muito e olha muito depressa (como se fosse de moto) veio hoje ficar a minha casa | |
Vivia longe | |
longe já se sabia | |
tão longe que era absurdo querer determinar | |
metade campo metade luz | |
aí era a sua casa o sítio onde era longe | |
mesmo de olhos | |
fechados (como ele estava) | |
e de braços cruzados (como parecia dormir) | |
o jovem mágico das mãos de ouro | |
que era todo de empréstimo à minha noite | |
que falou | |
por acaso que nem se chamava assim | |
(segundo também contou) tinha vivido há muito | |
ele, que estava ali, era um falsário | |
um fugido de outro basta ver os meus olhos | |
nada sabemos | |
de nós a não ser que chegamos | |
sem uma luz a esconder-nos o rosto | |
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos | |
altos de meter medo às aves de longo curso | |
nem há | |
noites assim não há encontros | |
ao longo das enseadas | |
não há corpos amantes não há luzeiros de astros | |
sob tanto silêncio tão duradoura treva | |
e não | |
me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço | |
eu vou nascer feliz numa cidade futura | |
eu sei atravessar as fronteiras das coisas | |
olha para as minhas mãos que te pareço agora? | |
No entanto | |
surgiu como simples criança | |
conseguia sorrir sentar-se verter águas | |
com as maõs na cintura livre natural | |
ele que era um fantasma um fugido de outro | |
um que nem | |
mesmo se chamava assim | |
o jovem mágico nu de todos os sítios da Terra | |
" | |
Florbela Espanca,"Se Tu Viesses Ver-me... | |
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, | |
A essa hora dos mágicos cansaços, | |
Quando a noite de manso se avizinha, | |
E me prendesses toda nos teus braços... | |
Quando me lembra: esse sabor que tinha | |
A tua boca... o eco dos teus passos... | |
O teu riso de fonte... os teus abraços... | |
Os teus beijos... a tua mão na minha... | |
Se tu viesses quando, linda e louca, | |
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo | |
E é de seda vermelha e canta e ri | |
E é como um cravo ao sol a minha boca... | |
Quando os olhos se me cerram de desejo... | |
E os meus braços se estendem para ti... | |
" | |
Miguel Torga,"O Espírito | |
Nada | |
a fazer amor, eu sou do bando | |
Impermanente das aves friorentas; | |
E nos galhos dos anos desbotando | |
Já as folhas me ofuscam macilentas; | |
E vou com as andorinhas. Até quando? | |
À vida breve não perguntes: cruentas | |
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando | |
Ave estroina serei em mãos sedentas. | |
Pensa-me eterna que o eterno gera | |
Quem na amada o conjura. Além, mais alto, | |
Em ileso beiral, aí espera: | |
Andorinha indemne ao sobressalto | |
Do tempo, núncia de perene primavera. | |
Confia. Eu sou romântica. Não falto." | |
Carlos Drummond de Andrade,"O que Alécio vê | |
A voz lhe disse ( uma secreta voz): | |
- Vai, Alécio, ver. | |
Vê e reflete o visto, e todos captem | |
por seu olhar o sentimento das formas | |
que é o sentimento primeiro - e último - da vida. | |
E Alécio vai e vê | |
o natural das coisas e das gentes, | |
o dia, em sua novidade não sabida, | |
a inaugurar-se todas as manhãs, | |
o cão, o parque, o traço da passagem | |
das pessoas na rua, o idílio | |
jamais extinto sob as ideologias, | |
a graça umbilical do nu feminino, | |
conversas de café, imagens | |
de que a vida flui como o Sena ou o São Francisco | |
para depositar-se numa folha | |
sobre a pedra do cais | |
ou para sorrir nas telas clássicas de museu | |
que se sabem contempladas | |
pela tímida (ou arrogante) desinformação das visitas, | |
ou ainda | |
para dispersar-se e concentrar-se | |
no jogo eterno das crianças. | |
Ai, as crianças... Para elas, | |
há um mirante iluminado no olhar de Alécio | |
e sua objetiva. | |
(Mas a melhor objetiva não serão os olhos líricos de Alécio?) | |
Tudo se resume numa fonte | |
e nas três menininhas peladas que a contemplam, | |
soberba, risonha, puríssima foto-escultura de Alécio de Andrade, | |
hino matinal à criação | |
e a continuação do mundo em esperança. | |
(Carlos Drummond de Andrade in “Amar se Aprende Amando”) | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Ângulo | |
Aonde irei neste sem-fim perdido, | |
Neste mar oco de certezas mortas? — | |
Fingidas, afinal, todas as portas | |
Que no dique julguei ter construído... | |
— Barcaças dos meus ímpetos tigrados, | |
Que oceano vos dormiram de Segredo? | |
Partiste-vos, transportes encantados, | |
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?... | |
Ó nau de festa, ó ruiva de aventura | |
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia, | |
Quebraste-vos também, ou porventura, | |
Fundeaste a Oiro em portos de alquimia?... | |
................................................................................................... | |
Chegaram à baia os galeões | |
Com as sete Princesas que morreram. | |
Regatas de luar não se correram... | |
As bandeiras velaram-se, orações... | |
Detive-me na ponte, debruçado. | |
Mas a ponte era falsa — e derradeira. | |
Segui no cais. O cais era abaulado, | |
Cais fingido sem mar à sua beira... | |
— Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes | |
Que um outro, só metade, quer passar | |
Em miragens de falsos horizontes — | |
Um outro que eu não posso acorrentar... | |
" | |
Alberto de Oliveira,"Fantástica | |
Erguido em negro mármor luzidio, | |
Portas fechadas, num mistério enorme, | |
Numa terra de reis, mudo e sombrio, | |
Sono de lendas um palácio dorme. | |
Torvo, imoto em seu leito, um rio o cinge, | |
E, à luz dos plenilúnios argentados, | |
Vê-se em bronze uma antiga e bronca esfinge, | |
E lamentam-se arbustos encantados. | |
Dentro, assombro e mudez! quedas figuras | |
De reis e de rainhas; penduradas | |
Pelo muro panóplias, armaduras, | |
Dardos, elmos, punhais, piques, espadas. | |
E inda ornada de gemas e vestida | |
De tiros de matiz de ardentes cores, | |
Uma bela princesa está sem vida | |
Sobre um toro fantástico de flores. | |
Traz o colo estrelado de diamantes, | |
Colo mais claro do que a espuma jônia. | |
E rolam-lhe os cabelos abundantes | |
Sobre peles nevadas de Issedônia. | |
Entre o frio esplendor dos artefactos, | |
Em seu régio vestíbulo de assombros. | |
Há uma guarda de anões estupefactos, | |
Com trombetas de ébano nos ombros. | |
E o silêncio por tudo! nem de um passo | |
Dão sinal os extensos corredores; | |
Só a lua, alta noite, um raio baço | |
Põe da morta no tálamo de flores. | |
Publicado no livro Ramo de árvore (1922). | |
In: OLIVEIRA, Alberto de. Poesias completas. Ed. crít. Marco Aurélio Mello Reis. Rio de Janeiro: Núcleo Ed. da UERJ, 1978. v.1. (Fluminense" | |
Luís de Camões,"Julga-me a gente toda por perdido | |
Julga-me a gente toda por perdido, | |
Vendo-me tão entregue a meu cuidado, | |
Andar sempre dos homens apartado | |
E dos tratos humanos esquecido. | |
Mas eu, que tenho o mundo conhecido, | |
E quase que sobre ele ando dobrado, | |
Tenho por baixo, rústico, enganado | |
Quem não é com meu mal engrandecido. | |
Vá revolvendo a terra, o mar e o vento, | |
Busque riquezas, honras a outra gente, | |
Vencendo ferro, fogo, frio e calma; | |
Que eu só em humilde estado me contento | |
De trazer esculpido eternamente | |
Vosso fermoso gesto dentro na alma. | |
" | |
José Craveirinha,"Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante | |
Pai: | |
As maternas palavras de signos | |
vivem e revivem no meu sangue | |
e pacientes esperam ainda a época de colheita | |
enquanto soltas já são as tuas sentimentais | |
sementes de emigrante português | |
espezinhadas no passo de marcha | |
das patrulhas de sovacos suando | |
as coronhas de pesadelo. | |
E na minha rude e grata | |
sinceridade não esqueço | |
meu antigo português puro | |
que me geraste no ventre de uma tombasana | |
eu mais um novo moçambicano | |
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer | |
e seminegro para jamais renegar | |
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue. | |
E agora | |
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar | |
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha | |
subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático | |
achando que não valia a pena fazer cara alegre | |
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa | |
Ante os meus sócios Bucha e Estica no ""écran"" todo branco | |
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão | |
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene | |
enquanto tua voz serena profecia paternal: - ""Zé: | |
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."" | |
Oh, Pai: | |
Juro que em mim ficaram laivos | |
do luso-arábico Algezur da tua infância | |
mas amar por amor só amo | |
e somente posso e devo amar | |
esta minha bela e única nação do Mundo | |
onde minha mãe nasceu e me gerou | |
e contigo comungou a terra, meu Pai. | |
E onde ibéricas heranças de fados e broas | |
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias | |
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões | |
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital | |
colono tão pobre como desembarcaste em África | |
meu belo Pai ex-português. | |
Pai: | |
O Zé de cabelos crespos e aloirados | |
não sei como ou antes por tua culpa | |
o ""Trinta-Diabos"" de joelhos esfolados nos mergulhos | |
à Zamora nas balizas dos estádios descampados | |
avançado-centro de ""bicicleta"" à Leónidas no capim | |
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas | |
embasbacado com as proezas do Circo Pagel | |
nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui | |
campeão de corridas no ""xituto"" Harley-Davidson | |
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes | |
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores | |
para salvar a rapariga Maureen OSullivan das mandíbulas | |
afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller | |
os bolsos cheios de tingolé da praia | |
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã | |
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal | |
sou eu, Pai, o ""Cascabulho"" para ti | |
e Sontinho para minha Mãe | |
todo maluco de medo das visões alucinantes | |
de Lon Chaney com muitas caras. | |
Pai: | |
Ainda me lembro bem do teu olhar | |
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade | |
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto | |
e também lágrimas na demência dos silêncios | |
em tuas pálpebras revejo nitidamente | |
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos | |
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura | |
na dimensão desmedida do meu amor por ti | |
meu belo algarvio bem moçambicano! | |
E choro-te | |
chorando-me mais agora que te conheço | |
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois | |
dos carros na lenta procissão do nosso funeral | |
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado | |
nos limites da vida | |
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto | |
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus | |
e na minha cabeça de mulatinho os últimos | |
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto | |
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central. | |
E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra | |
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza | |
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões | |
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero | |
e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix | |
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto | |
e de tanga na casa de madeira e zinco | |
da estrada do Zichacha onde eu nasci. | |
Pai: | |
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem | |
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios | |
e Tarzan agente disfarçado em África | |
e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face | |
e eu também Ee que musámos. | |
E alinhavadas palavras como se fossem versos | |
bandos de se´´cuas ávidos sangrando grãos de sol | |
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção | |
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços | |
agitados nas manhãs de bronzes | |
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias | |
almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas | |
ancas sinuosas dos rios. | |
E nestes versos te escrevo, meu Pai | |
por enquanto escondidos teus póstumos projectos | |
mais belos no silêncio e mais fortes na espera | |
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado | |
ronga-ib´´rico mas afro-puro coração. | |
E fica a tua prematura beleza realgarvia | |
quase revelada nesta carta elegia para ti | |
meu resgatado primeiro ex-português | |
número UM Craveirinha moçambicano! | |
" | |
Ary dos Santos,"Estigma | |
Filhos dum deus selvagem e secreto | |
E cobertos de lama, caminhamos | |
Por cidades, | |
Por nuvens | |
E desertos. | |
Ao vento semeamos o que os homens não querem. | |
Ao vento arremessamos as verdades que doem | |
E as palavras que ferem. | |
Da noite que nos gera, e nós amamos, | |
Só os astros trazemos. | |
A treva ficou onde | |
Todos guardamos a certeza oculta | |
Do que nós não dizemos, | |
Mas que somos. | |
" | |
Raimundo Correia,"Banzo | |
Visões que n'alma o céu do exílio incuba, | |
Mortais visões! Fuzila o azul infando... | |
Coleia, basilisco de ouro, ondeando | |
O Níger... Bramem leões de fulva juba... | |
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba | |
Dos cafres, pelas grotas retumbando, | |
E a estralada das árvores, que um bando | |
De paquidermes colossais derruba... | |
Como o guaraz nas rubras penas dorme, | |
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto... | |
Fuma o saibro africano incandescente... | |
Vai co'a sombra crescendo o vulto enorme | |
Do baobá... E cresce n'alma o vulto | |
De uma tristeza, imensa, imensamente... | |
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.18" | |
Carlos Drummond de Andrade,"Em teu crespo jardim,anêmonas castanhas | |
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas | |
detêm a mão ansiosa: Devagar. | |
Cada pétala ou sépala seja lentamente | |
acariciada, céu; e a vista pouse, | |
beijo abstrato, antes do beijo ritual, | |
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado. | |
" | |
Miguel Torga,"Cantico | |
Mundo à | |
nossa medida | |
Redondo como os olhos, | |
E como eles, também, | |
A receber de fora | |
A luz e a sombra, consoante a hora | |
Mundo apenas pretexto | |
Doutros mundos. | |
Base de onde levanta | |
A inquietação, | |
Cansada da uniforme rotação | |
Do dia a dia. | |
Mundo que a fantasia | |
Desfigura | |
A vê-lo cada vez de mais altura. | |
Mundo do mesmo barro | |
De que somos feitos. | |
Carne da nossa carne | |
Apodrecida. | |
Mundo que o tempo gasta e arrefece, | |
Mas o único jardim que se conhece | |
Onde floresce a vida. | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Nas ervas | |
Escalar-te lábio a lábio, | |
percorrer-te: eis a cintura | |
o lume breve entre as nádegas | |
e o ventre, o peito, o dorso | |
descer aos flancos, enterrar | |
os olhos na pedra fresca | |
dos teus olhos, | |
entregar-me poro a poro | |
ao furor da tua boca, | |
esquecer a mão errante | |
na festa ou na fresta | |
aberta à doce penetração | |
das águas duras, | |
respirar como quem tropeça | |
no escuro, gritar | |
às portas da alegria, | |
da solidão. | |
porque é terrivel | |
subir assim às hastes da loucura, | |
do fogo descer à neve. | |
abandonar-me agora | |
nas ervas ao orvalho - | |
a glande leve. | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"O Sol em Pernambuco | |
O sol em Pernambuco leva dois sóis, | |
sol de dois canos, de tiro repetido; | |
o primeiro dos dois. o fuzil de fogo. | |
incendeia a terra: tiro de inimigo). | |
O sol ao aterrissar em Pernambuco, | |
acaba de voar dormindo o mar deserto; mas ao dormir | |
se refaz, e pode decolar mais aceso; | |
assim, mais do que acender incendeia, | |
para rasar mais desertos no caminho; | |
ou rasá-los mais, até um vazio de mar | |
por onde ele continue a voar dormindo. | |
* | |
Pinzón | |
diz que o cabo Rostro Hermoso (que se diz hoje de Santo Agostinho) | |
cai pela terra de mais luz da terra(mudou o nome, sobrou a luz a pino); | |
dá-se que hoje dói na vida tanta luz: ela revela real | |
o real, impõe filtros: as lentes negras, lentes de diminuir, | |
as lentes de distanciar, ou do exílio. (O sol em Pernambuco leva | |
dois sóis, sol de dois canos, de tiro repetido; o segundo dos | |
dois, o fuzil de luz, revela real a terra: tiro de inimigo)." | |
Carlos Drummond de Andrade,"São flores ou são nalgas | |
São flores ou são nalgas | |
estas flores | |
de lascivo arabesco? | |
São nalgas ou são flores | |
estas nalgas | |
de vegetal doçura e macieza? | |
" | |
Jorge de Sena,"Cantiga de Abril | |
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal | |
""Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"" | |
Jorge de Sena | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Quase, quase cinqüenta anos | |
reinaram neste país, | |
e conta de tantos danos, | |
de tantos crimes e enganos, | |
chegava até à raíz. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Tantos morreram sem ver | |
o dia do despertar! | |
Tantos sem poder saber | |
com que letras escrever, | |
com que palavras gritar! | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Essa paz de cemitério | |
toda prisão ou censura. | |
e o poder feito galdério, | |
sem limite e sem cautério, | |
todo embófia e sinecura. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Esses ricos sem vergonha, | |
esses pobres sem futuro, | |
essa emigração medonha, | |
e a tristeza uma peçonha | |
envenenando o ar puro. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Essas guerra de além-mar | |
gastando as armas e a gente, | |
esse morrer e matar | |
sem sinal de se acabar | |
por política demente. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Esse perder-se no mundo | |
o nome de Portugal, | |
essa amargura sem fundo, | |
só miséria sem segundo, | |
só desespero fatal. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Quase, quase cinquenta anos | |
durou esta eternidade, | |
numa sombra de gusanos | |
e em negócios de ciganos, | |
entre mentira e maldade. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
Saem tanques para a rua, | |
sai o povo logo atrás: | |
estala enfim, altiva e nua, | |
com força que não recua, | |
a verdade mais veraz. | |
Qual a cor da liberdade? | |
É verde, verde e vermelha. | |
1974 | |
" | |
Luís de Camões,"Não sei se me engana Helena | |
Não sei se me engana Helena, | |
se Maria, se Joana, | |
não sei qual delas me engana. | |
Üa diz que me quer bem, | |
outra jura que mo quer; | |
mas, em jura de mulher | |
quem crerá, se elas não crêm? | |
Não posso não crer a Helena, | |
a Maria, nem Joana, | |
mas não sei qual delas me engana. | |
Üa faz-me juramentos | |
que só meu amor estima; | |
a outra diz que se fina; | |
Joana, que bebe os ventos. | |
Se cuido que mente Helena, | |
também mentirá Joana; | |
mas quem mente, não me engana. | |
" | |
Florbela Espanca,"A Uma Rapariga | |
A Nice | |
Abre os olhos e encara a vida! A sina | |
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes! | |
Por sobre lamaçais alteia pontes | |
Com tuas mãos preciosas de menina. | |
Nessa estrada de vida que fascina | |
Caminha sempre em frente, além dos montes! | |
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes! | |
Beija aqueles que a sorte te destina! | |
Trata por tu a mais longínqua estrela, | |
Escava com as mãos a própria cova | |
E depois, a sorrir, deita-te nela! | |
Que as mãos da terra façam, com amor, | |
Da graça do teu corpo, esguia e nova, | |
Surgir à luz a haste de uma flor!... | |
" | |
Jorge de Sena,"No País dos Sacanas | |
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas? | |
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas, | |
e todos estão contentes de se saberem sacanas. | |
Não há mesmo melhor do que uma sacanice | |
para poder funcionar fraternalmente | |
a humidade de próstata ou das glandulas lacrimais, | |
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias | |
em que tanto se dividem e afinal se irmanam. | |
Dizer-se que é de heróis e santos o país, | |
a ver se se convencem e puxam para cima as calças? | |
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos, | |
ingénuos e sacaneados é que foram disso? | |
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora. | |
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice, | |
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender | |
que a nobreza, a dignidade, a independência, a | |
justiça, a bondade, etc., etc., sejam | |
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados | |
a um ponto que os mais não são capazes de atingir. | |
No país dos sacanas, ser sacana e meio? | |
Não, que toda a gente já Ee pelo menos dois. | |
Como ser-se então nesse país? Não ser-se? | |
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia. | |
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma. | |
10/10/1973 | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada! | |
Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada! | |
Porque não vens de olhos enxutos | |
e não despes as mãos | |
de mágoas e de lutos! | |
Poque hás-de vir semimorta, | |
com ar macerado e de bruxedo, | |
e não despes os ritos, o cansaço, | |
e as lágrimas e os mitos e o medo! | |
Porque não vens natural | |
Como um corpo sadio que se entrega, | |
e não destranças os cabelos, | |
e não nimbas de luz a tua treva! | |
Poque hás-de vir com a cor da morte | |
- se a morte já temos nós! | |
Porque adormeces os gestos, | |
porque entristeces os versos, | |
e nos quebras os membros e a voz! | |
Porque é que vens adorada | |
por uma longa procissão de velas, | |
se eu estou à tua espera em cada estrada, | |
nu, inteiramente nu, | |
sem mistérios, sem luas e sem estrelas! | |
Ó noite eterna e velada, | |
senhora da tristeza, sê alegria! | |
Vem de outra maneira ou vai-te embora, | |
e deixa romper o dia! | |
" | |
António Gedeão,"Soneto | |
Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade | |
Não pode Amor por mais que as falas mude | |
exprimir quanto pesa ou quanto mede. | |
Se acaso a comoção falar concede | |
é tão mesquinho o tom que o desilude. | |
Busca no rosto a cor que mais o ajude, | |
magoado parecer aos olhos pede, | |
pois quando a fala a tudo o mais excede | |
näo pode ser Amor com tal virtude. | |
Também eu das palavras me arreceio, | |
também sofro do mal sem saber onde | |
busque a expressão maior do meu anseio. | |
E acaso perde, o Amor que a fala esconde, | |
em verdade, em beleza, em doce enleio? | |
Olha bem os meus olhos, e responde." | |
Vladimir Maiakovski,"ADULTOS | |
Os adultos fazem negócios. | |
Têm rublos nos bolsos. | |
Quer amor? Pois não! | |
Ei-lo por cem rublos! | |
E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado. | |
À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas. | |
A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças. | |
Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes. | |
Como se exaltam as duplas no leito do amor! | |
Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais. | |
Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos díágua. | |
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores! | |
Doravante não sou mais dono de meu coração! | |
Nos demais - eu sei, qualquer um o sabe! | |
O coração tem domicílio no peito. | |
Comigo a anatomia ficou louca. | |
Sou todo coração - em todas as partes palpita. | |
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha! | |
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável. | |
Insuportável não para o versos de veras. | |
" | |
Ruy Belo,"A flor da solidão | |
Vivemos convivemos resistimos | |
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores | |
fizemos porventura algum ruído | |
traçámos pelo ar tímidos gestos | |
e no entanto por que palavras dizer | |
que nosso era um coração solitário silencioso | |
silencioso profundamente silencioso | |
e afinal o nosso olhar olhava | |
como os olhos que olham nas florestas | |
No centro da cidade tumultuosa | |
no ângulo visível das múltiplas arestas | |
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa | |
Nós tínhamos um nome para isto | |
mas o tempo dos homens impiedoso | |
matou-nos quem morria até aqui | |
E neste coração ambicioso | |
sozinho como um homem morre cristo | |
Que nome dar agora ao vazio | |
que mana irresistível como um rio? | |
Ele nasce engrossa e vai desaguar | |
e entre tantos gestos é um mar | |
Vivemos convivemos resistimos | |
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos" | |
Eugénio de Andrade,"Três ou quatro sílabas | |
Neste paísonde se morre de coração inacabadodeixarei apenas três ou quatro sílabasde cal viva junto à água. É só o que me restae o bosque inocente do teu peitomeu tresloucado e doce e frágilpássaro das areias apagadas Que estranho ofício o meuprocurar rente ao chãouma folha entre a poeira e o sonohúmida ainda do primeiro sol. de Véspera da Água" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Além-tédio | |
Nada me expira já, nada me vive --- | |
Nem a tristeza nem as horas belas. | |
De as não ter e de nunca vir a tê-las, | |
Fartam-me até as coisas que não tive. | |
Como eu quisera, enfim de alma esquecida, | |
Dormir em paz num leito de hospital... | |
Cansei dentro de mim, cansei a vida | |
De tanto a divagar em luz irreal. | |
Outrora imaginei escalar os céus | |
À força de ambição e nostalgia, | |
E doente-de-Novo, fui-me Deus | |
No grande rastro fulvo que me ardia. | |
Parti. Mas logo regressei à dor, | |
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual: | |
A quimera, cingida, era real, | |
A própria maravilha tinha cor! | |
Ecoando-me em silêncio, a noite escura | |
Baixou-me assim na queda sem remédio; | |
Eu próprio me traguei na profundura, | |
Me sequei todo, endureci de tédio. | |
E só me resta hoje uma alegria: | |
É que, de tão iguais e tão vazios, | |
Os instantes me esvoam dia a dia | |
Cada vez mais velozes, mais esguios... | |
" | |
Jorge de Lima,"Minha Sombra | |
De manhã | |
a minha sombra | |
Com meu papagaio e o meu macaco | |
Começam a me arremedar. | |
E quando saio | |
A minha sombra vai comigo | |
Fazendo o que eu faço | |
Seguindo os meus passos. | |
Depois é meio-dia. | |
E a minha sombra fica do tamaninho | |
De quando eu era menino. | |
Depois é tardinha. | |
E a minha sombra tão comprida | |
Brinca de pernas de pau. | |
Minha sombra , eu só queria | |
Ter o humor que você tem, | |
Ter a sua meninice, | |
Ser igualzinho a você. | |
E de noite quando escrevo, | |
Fazer como você faz, | |
Como eu fazia em criança: | |
Minha sombra | |
Você põe a sua mão | |
Por baixo da minha mão, | |
Vai cobrindo o rascunho dos meus poemas | |
Se saber ler e escrever. | |
" | |
Luís Gama,"Meus Amores | |
Pretidão de amor, | |
Tão leda a figura | |
Que a neve lhe jura, | |
Que mudara a cor. | |
CAMÕES - Endechas | |
Meus amores são lindos, cor da noite | |
Recamada de estrelas rutilantes; | |
Tão formosa creoula, ou Tétis negra | |
Tem por olhos dois astros cintilantes. | |
Em rubentes granadas embutidas | |
Tem por dentes as pérolas mimosas, | |
Gotas de orvalho que o inverno gela | |
Nas breves pétalas de carmínea rosa. | |
Os braços torneados que alucinam, | |
Quando os move perluxa com langor. | |
A boca é roxo lírio abrindo a medo, | |
Dos lábios se distila o grato olor. | |
O colo de veludo Vênus bela | |
Trocara pelo seu, de inveja morta; | |
Da cintura nos quebros há luxúria | |
Que a filha de Cineras não suporta. | |
A cabeça envolvida em núbia trunfa, | |
Os seios são dois globos a saltar; | |
A voz traduz lascívia que arrebata, | |
— É coisa de sentir, não de contar. | |
Quando a brisa veloz, por entre anáguas | |
Espaneja as cambraias escondidas, | |
Deixando ver aos olhos cobiçosos | |
As lisas pernas de ébano luzidas. | |
Santo embora, o mortal que a encontra pára; | |
Da cabeça lhe foge o bento siso; | |
Nervosa comoção as bragas rompe-lhe, | |
E fica como Adão no Paraíso. | |
Meus amores são lindos, cor da noite, | |
Recamada de estrelas rutilantes; | |
Tão formosa creoula, ou Tétis negra, | |
Tem por olhos dois astros cintilantes. | |
Ao ver no chão tocar seus pés mimosos, | |
Calçando de cetim alvas chinelas, | |
Quisera ser a terra em que ela pisa, | |
Torná-las em colher, comer com elas. | |
São minguados os séculos para amá-la, | |
De gigante a estrutura não bastara, | |
De Marte o coração, alma de Jove, | |
Que um seu lascivo olhar tudo prostrara. | |
Se a sorte caprichosa em vento, ao menos, | |
Me quisesse tornar, depois de morto; | |
Em bojuda fragata o corpo dela, | |
As saias em velame, a tumba em porto, | |
Como os Euros, zunindo dentre os mastros, | |
Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão; | |
O velacho bolsar, bramir na proa, | |
Pela popa rojar, feito em tufão. | |
......................................... | |
Dar cultos à beleza, amor aos peitos, | |
Sem vida que transponha a eternidade, | |
Bem que mostra que a sandice estava em voga | |
Quando Uranus gerou a humanidade. | |
Mas já que o fato iníquo não consente, | |
Que amor, além da campa, faça vasa, | |
Ornemos de Cupido as santas aras, | |
Tu feita em fogareiro, eu feito em brasa. | |
Imagem - 00190004 | |
Publicado no livro Primeiras trovas burlescas de Luiz Gama (Getulino) (1904). | |
In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. Org. Fernando Góes. São Paulo: Cultura, 1944. p.141-142. (Últimas gerações, 4) | |
NOTA: Poema publicado no DIABO COXO de 3 set. 186" | |
Miguel Torga,"Ciganos | |
Tudo o que voa é ave. | |
Desta janela aberta | |
A pena que se eleva é mais suave | |
E a folha que plana é mais liberta. | |
Nos seus braços azuis o céu aquece | |
Todo o alado movimento. | |
É no chão que arrefece | |
O que não pode andar no firmamento. | |
Outro levante, pois, ciganos! | |
Outra tenda sem pátria mais além! | |
Desumanos | |
São os sonhos, também... | |
" | |
Fernando Pessoa,"Sexto: D. DINIS | |
SEXTO | |
D. DINIS | |
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo | |
O plantador de naus a haver, | |
E ouve um silêncio múrmuro consigo: | |
É o rumor dos pinhais que, como um trigo | |
De Império, ondulam sem se poder ver. | |
Arroio, esse cantar, jovem e puro, | |
Busca o oceano por achar; | |
E a fala dos pinhais, marulho obscuro, | |
É o som presente desse mar futuro, | |
É a voz da terra ansiando pelo mar. | |
09/02/1934" | |
Alexandre O'Neill,"Sigamos o cherne! | |
(Depois de ver o filme O Mundo do Silêncio de Jacques-Yves Cousteau) | |
Sigamos o cherne,minha amiga! | |
Desçamos ao fundo do desejo | |
Atrás de muito mais que a fantasia | |
E aceitemos,até,do cherne um beijo, | |
Senão já com amor,com alegria... | |
Em cada um de nós circula o cherne, | |
Quase sempre mentido e olvidado. | |
Em água silenciosa de passado | |
Circula o cherne:traído | |
Peixe recalcado... | |
Sigamos,pois,o cherne,antes que venha, | |
Já morto,boiar ao lume de água, | |
Nos olhos rasos de água, | |
Quando,mentido o cherne a vida inteira, | |
Não somos mais que solidão e mágoa... | |
" | |
Cesário Verde,"O Sentimento dum Ocidental I - Avé Maria | |
Nas nossas ruas, ao anoitecer, | |
Há tal soturnidade, há tal melancolia, | |
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia | |
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. | |
O céu parece baixo e de neblina, | |
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me; | |
E os edifícios, com as chaminés, e a turba | |
Toldam-se duma cor monótona e londrina. | |
Batem os carros de aluguer, ao fundo, | |
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! | |
Ocorrem-me em revista, exposições, países: | |
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo! | |
Semelham-se a gaiolas, com viveiros, | |
As edificações somente emadeiradas: | |
Como morcegos, ao cair das badaladas, | |
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros. | |
Voltam os calafates, aos magotes, | |
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos, | |
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, | |
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. | |
E evoco, então, as crónicas navais: | |
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado | |
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! | |
Singram soberbas naus que eu não verei jamais! | |
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! | |
De um couraçado inglês vogam os escaleres; | |
E em terra num tinido de louças e talheres | |
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. | |
Num trem de praça arengam dois dentistas; | |
Um trôpego arlequim braceja numas andas; | |
Os querubins do lar flutuam nas varandas; | |
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! | |
Vazam-se os arsenais e as oficinas; | |
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; | |
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, | |
Correndo com firmeza, assomam as varinas. | |
Vêm sacudindo as ancas opulentas! | |
Seus troncos varonis recordam-me pilastras; | |
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras | |
Os filhos que depois naufragam nas tormentas. | |
Descalças! Nas descargas de carvão, | |
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; | |
E apinham-se num bairro aonde miam gatas, | |
E o peixe podre gera os focos de infecção!" | |
José Craveirinha,"Outra beleza | |
Uns exibem insólitos perfis | |
de outra beleza | |
maquilhada | |
no mato. | |
ou | |
do viés | |
ou de frente | |
perfeitos modelos de caveira | |
desfilam sem nariz." | |
António Gedeão,"Adeus, Lisboa | |
Vou-me até à Outra Banda | |
no barquinho da carreira. | |
Faz que anda mas não anda; | |
parece de brincadeira. | |
Planta-se o homem no leme. | |
Tudo ginga, range e treme. | |
Bufa o vapor na caldeira. | |
Um menino solta um grito; | |
assustou-se com o apito | |
do barquinho da carreira. | |
Todo ancho, tremelica | |
como um boneco de corda. | |
Nem sei se vai ou se fica. | |
Só se vê que tremelica | |
e oscila de borda a borda. | |
Chapas de sol, coruscantes | |
como lâminas de espadas, | |
fendem as águas rolantes | |
esparrinhando flamejantes | |
lantejoulas nacaradas. | |
Sob o dourado chuveiro, | |
o barquinho terno e mole, | |
vai-se afastando, ronceiro, | |
na peugada do Sol. | |
A cada volta das pás | |
moendo as águas vizinhas, | |
nos remoinhos que faz, | |
nos salpicos que me traz | |
e me enchem de camarinhas, | |
há fagulhas rutilantes, | |
esquírolas de marcassites, | |
polimentos de pirites, | |
clivagens de diamantes, | |
Numa hipnose coletiva, | |
como um friso de embruxados, | |
ao longe os olhos cravados | |
em transe de expectativa, | |
todos juntos, na amurada, | |
numa sonolência de ópio, | |
vemos, na tarde pasmada, | |
Lisboa televisada | |
num vasto cinemascópio. | |
O sol e a água conspiram | |
num conluio de beleza, | |
de elixires que se evadiram | |
de feiticeira represa. | |
Fulva, no céu incendido, | |
em compostura de pose, | |
a cidade é colorido | |
cenário de apoteose. | |
Há lencinhos agitados | |
nos olhos de todos nós, | |
engulhos de namorados, | |
embargamentos na voz. | |
Nesta quermesse do ar, | |
neste festival de tons, | |
quem se atreve a acreditar | |
que os homens não sejam bons? | |
Adeus, adeus, ribeirinha | |
cidade dos calafates, | |
rosicler de água-marinha, | |
pedra de muitos quilates. | |
Iça as velas, marinheiro, | |
com destino a Calecu. | |
Oh que ventinho rasteiro! | |
Que mar tão cheio e tão nu! | |
Ó da gávea! Põe-te alerta! | |
Tem tento nos areais. | |
Cá vou eu à descoberta | |
das índias Orientais. | |
Não tenho medo de nada, | |
receio de coisa nenhuma. | |
A vida é leve e arrendada | |
como esta réstea de espuma. | |
Toda a gente é séria e é boa! | |
Não existem homens maus! | |
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa! | |
Adeus, Ribeira das Naus! | |
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus! | |
" | |
Miguel Torga,"Transfiguração | |
Tens agora | |
outro rosto, outra beleza: | |
Um rosto que é preciso imaginar, | |
E uma beleza mais furtiva ainda... | |
Assim te modelaram caprichosas, | |
Mãos irreais que tornam irreal | |
O barro que nos foge da retina. | |
Barro que em ti passou de luz carnal | |
A bruma feminina... | |
Mas nesse novo encanto | |
Te conjuro | |
Que permaneças. | |
Distante e preservada na distância. | |
Olímpica recusa, disfarçada | |
De terrena promessa | |
Feita aos olhos tentados e descrentes. | |
Nenhum mito regressa.... | |
Todas as deusas são mulheres ausentes... | |
" | |
António Gedeão,"Poema do fecho-éclair | |
Filipe II tinha um colar de oiro, | |
tinha um colar de oiro com pedras rubis. | |
Cingia a cintura com cinto de oiro, | |
com fivela de oiro, | |
olho de perdiz. | |
Comia num prato | |
de prata lavrada | |
girafa trufada, | |
rissóis de serpente. | |
O copo era um gomo | |
que em flor desabrocha, | |
de cristal de rocha | |
do mais transparente. | |
Andava nas salas | |
forradas de Arrás, | |
com panos por cima, | |
pela frente e por trás. | |
Tapetes flamengos, | |
combates de galos, | |
alões e podengos, | |
falcões e cavalos. | |
Dormia na cama | |
de prata maciça | |
com dossel de lhama | |
de franja roliça. | |
Na mesa do canto | |
vermelho damasco, | |
e a tíbia de um santo | |
guardada num frasco. | |
Foi dono da Terra, | |
foi senhor do Mundo, | |
nada lhe faltava, | |
Filipe Segundo. | |
Tinha oiro e prata, | |
pedras nunca vistas, | |
safiras, topázios, | |
rubis, ametistas. | |
Tinha tudo, tudo, | |
sem peso nem conta, | |
bragas de veludo, | |
peliças de lontra. | |
Um homem tão grande | |
tem tudo o que quer. | |
O que ele não tinha | |
era um fecho-éclair. | |
" | |
Jorge de Lima,"Pelo Silêncio | |
Pelo silêncio que a envolveu, por essa | |
aparente distância inatingida, | |
pela disposição de seus cabelos | |
arremessados sobre a noite escura: | |
pela imobilidade que começa | |
a afastá-la talvez da humana vida | |
provocando-nos o hábito de vê-la | |
entre estrelas do espaço e da loucura; | |
pelos pequenos astros e satélites | |
formando nos cabelos um diadema | |
a iluminar o seu formoso manto, | |
vós que julgais extinta Mira-Celi | |
observai neste mapa o vivo poema | |
que é a vida oculta dessa eterna infanta. | |
" | |
Gonçalves Dias,"Soneto [Pensas tu, bela Anarda, que os poetas | |
Pensas tu, bela Anarda, que os poetas | |
Vivem d'ar, de perfumes, d'ambrosia, | |
Que vagando por mares d'harmonia | |
São melhores que as próprias borboletas? | |
Não creias que eles sejam tão patetas, | |
Isso é bom, muito bom mas em poesia, | |
São contos com que a velha o sono cria | |
No menino que engorda a comer petas! | |
Talvez mesmo que algum desses brejeiros | |
Te diga que assim é, que os dessa gente | |
Não são lá dos heróis mais verdadeiros. | |
Eu que sou pecador, — que indiferente | |
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros, | |
Julgo um beijo sem fim cousa excelente. | |
Rio de Janeiro, 1848. | |
Publicado no livro Obras Póstumas: precedidas de uma notícia da sua vida e obras pelo Dr. Antônio Henriques Leal (1868/1869). | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v." | |
Cecília Meireles,"Marinha | |
O barco é negro sobre o azul. | |
Sobre o azul os peixes são negros. | |
Desenham malhas negras as redes, sobre o azul. | |
Sobre o azul, os peixes são negros. | |
Negras são as vozes dos pescadores, | |
atirando-se palavras no azul. | |
É o último azul do mar e do céu. | |
A noite já vem, dos lados de Burma, | |
toda negra, | |
molhada de azul: | |
— a noite que chega também do mar. | |
" | |
Florbela Espanca,"Só | |
Eu tenho pena da Lua! | |
Tanta pena, coitadinha, | |
Quando tão branca, na rua | |
A vejo chorar sozinha!... | |
As rosas nas alamedas, | |
E os lilases cor da neve | |
Confidenciam de leve | |
E lembram arfar de sedas | |
Só a triste, coitadinha... | |
Tão triste na minha rua | |
Lá anda a chorar sozinha ... | |
Eu chego então à janela: | |
E fico a olhar para a lua... | |
E fico a chorar com ela! ... | |
" | |
José Régio,"Testamento do Poeta | |
Todo esse vosso esforço é vão, amigos: | |
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos. | |
Demais, já desisti de quaisquer portos; | |
Não peço a vossa esmola de mendigos. | |
O mesmo vos direi, sonhos antigos | |
De amor! olhos nos meus outrora absortos! | |
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos, | |
Que fostes o melhor dos meus pascigos! | |
E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje | |
Que tudo e todos vejo reduzidos, | |
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge. | |
Para reaver, porém, todo o Universo, | |
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!.... | |
Basta-me o gesto de contar um verso. | |
" | |
Florbela Espanca,"Horas Rubras | |
Horas profundas, lentas e caladas | |
Feitas de beijos sensuais e ardentes, | |
De noites de volúpia, noites quentes | |
Onde há risos de virgens desmaiadas... | |
Ouço as olaias rindo desgrenhadas... | |
Tombam astros em fogo, astros dementes. | |
E do luar os beijos languescentes | |
São pedaços de prata p’las estradas... | |
Os meus lábios são brancos como lagos... | |
Os meus braços são leves como afagos, | |
Vestiu-os o luar de sedas puras... | |
Sou chama e neve branca misteriosa... | |
E sou talvez, na noite voluptuosa, | |
Ó meu Poeta, o beijo que procuras !" | |
Eugénio de Andrade,"Ignoro o que seja a flor da água | |
mas conheço o seu aroma:depois das primeiras chuvassobe ao terraço,entra nu pela varanda,o corpo inda molhadoprocura o nosso corpo e começa a tremer:então é como se na sua bocaum resto de imortalidadenos fosse dado a beber,e toda a música da terra,toda a música do céu fosse nossa,até ao fim do mundo,até amanhecer. de Branco No Branco" | |
Cacaso,"Refém | |
Eu sempre quis requebrar | |
só me faltou poesia | |
eu nunca soube rimar | |
mas sempre tive ousadia | |
nunca joguei o destino | |
e nem matei a família | |
a minha sorte na vida | |
se escreve com C cedilha | |
Eu nunca tive ideal | |
nunca avancei o sinal | |
nem profanei minha filha | |
Eu me perdi muito além | |
sendo meu próprio refém | |
na solidão de uma ilha | |
Eu sempre quis acertar | |
só me faltou pontaria | |
eu nunca soube cantar | |
mas sempre tive mania | |
nunca brinquei carnaval | |
e nem saí da folia | |
nunca pulei a fogueira | |
e nem dancei a quadrilha | |
Eu nunca amei a ninguém | |
nunca devi um vintém | |
nem encontrei minha trilha | |
Eu me perdi muito além | |
sendo meu próprio refém | |
na solidão de uma ilha | |
In: CACASO. Mar de mineiro: poemas e canções. Fotos de Pedro de Moraes. Il. Malena Barreto. Rio de Janeiro: Grafit Gráf. e Impressos, 1982. Poema integrante da série Papos de Anjo da Guarda. | |
NOTA: Música de Carlinhos Vergueir" | |
Cruz e Sousa,"Vida Obscura | |
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, | |
Ó ser humilde entre os humildes seres. | |
Embriagado, tonto dos prazeres, | |
O mundo para ti foi negro e duro. | |
Atravessaste num silêncio escuro | |
A vida presa e trágicos deveres | |
E chegaste ao saber de altos saberes | |
Tornando-te mais simples e mais puro. | |
Ninguém te viu o sentimento inquieto, | |
Magoado, oculto e aterrador, secreto. | |
Que o coração te apunhalou no mundo. | |
Mas eu que sempre te segui os passos | |
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços | |
E o teu suspiro como foi profundo! | |
Publicado no livro Últimos sonetos (1905). | |
In: SOUSA, Cruz e. Últimos sonetos. Texto estabelecido pelo manuscrito autógrafo e notas Adriano da Gama Kury. Est. liter. Julio Castañon Guimarães. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC: Fundação Catarinense de Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 198" | |
Manuel Bandeira,"PLENITUDE | |
Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra. | |
O ar é como de forja. A força nova e pura | |
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto. fibra a fibra, | |
Avassalar-me o ser a vontade da cura. | |
A energia vital que no ventre profundo | |
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes, | |
Sobe no caule, faz todo galho fecundo | |
E estala na amplidão das ramadas felizes, | |
Entra-me como um vinho acre pelas narinas... | |
Arde-me na garganta... E nas artérias sinto | |
O bálsamo aromado e quente das resinas | |
Que vem na exalação de cada terebinto. | |
O furor de criação dionisíaco estua | |
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas, | |
E eu absorvo-o nos sons, na glória da luz crua | |
E ouço-o ardente bater dentro em minhas entranhas | |
Tenho êxtase de santo... Ânsias para a virtude... | |
Canta em minhalma absorta um mundo de harmonias. | |
Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude | |
- Belo como Davi, forte como Golias... | |
E neste curto instante em que todo me exalto | |
De tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo, | |
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto | |
Nem flamejou mais bela a chama do desejo. | |
E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza! | |
Vós que cicatrizais minha velha ferida... | |
Vós que me dais o grande exemplo de beleza | |
E me dais o divino apetite da vida! | |
" | |
David Mourão-Ferreira,"A Boca as Bocas | |
Apenas | |
uma boca. A tua Boca | |
Apenas outra , a outra tua boca | |
É Primavera e ri a tua boca | |
De ser Agosto já na outra boca | |
Entre uma e outra voga a minha boca | |
E pouco a pouco a polpa de uma boca | |
Inda há pouco na popa em minha boca | |
É já na proa a polpa de outra boca. | |
Sabe a laranja a casca de uma boca | |
Sabe a morango a noz da outra boca | |
Mas sabe entretanto a minha boca | |
Que apenas vai sentindo em sua boca | |
Mais rouca do que a boca a minha boca | |
Mais louca do que a boca a tua boca." | |
Luís de Camões,"Que me quereis, perpétuas saudades? | |
Que me quereis, perpétuas saudades? | |
Com que esperança inda me enganais? | |
Que o tempo que se vai não torna mais, | |
E se torna, não tornam as idades. | |
Razão é já, ó anos, que vos vades, | |
Porque estes tão ligeiros que passais, | |
Nem todos pera um gosto são iguais, | |
Nem sempre são conformes as vontades. | |
Aquilo a que já quis é tão mudado, | |
Que quase é outra cousa, porque os dias | |
Têm o primeiro gosto já danado. | |
Esperanças de novas alegrias | |
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado, | |
Que do contentamento são espias. | |
" | |
José Gomes Ferreira,"Todos os Punhais | |
... | |
Todos os punhais que fulgem nos gritos, | |
Todas as fomes que doem no pão | |
Todo o suor que luz nas estrelas | |
Todas as lanças nos dedos da reza, | |
Todos os soluços para ressuscitar os filhos mortos, | |
Todos os desejos nos alçapões do frio, | |
Todas as jóias nos pescoços dos espelhos rachados | |
Todos os assassinos que andaram aos colo das mães, | |
Todos os atestados de pobreza com lágrimas de carimbo, | |
Todos os murmúrios do sol no quarto ao lado à hora da morte… | |
Tudo, tudo, tudo | |
Se condensou de repente | |
Numa nuvem negra de milhões de lágrimas | |
A humilharem-me de ternura | |
- eu que quero ser alheio, duro, indiferente… | |
…. Enquanto os outros dançam, cantam, bebem, | |
vivem, amam, riem, suam | |
neste pobre planeta | |
magoado das pedras e dos homens | |
onde cresceu por acaso o meu coração no musgo | |
aberto para a consciência absurda | |
deste remorso sem sentido. | |
" | |
Manuel Bandeira,"Pensão familiar | |
Jardim da pensãozinha burguesa. | |
Gatos espapaçados ao sol. | |
A tiririca sitia os canteiros chatos. | |
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam. | |
Os girassóis | |
amarelo! | |
resistem. | |
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais. | |
Um gatinho faz pipi. | |
Com gestos de garçom de restaurant-Palace | |
Encobre cuidadosamente a mijadinha. | |
Sai vibrando com elegância a patinha direita: | |
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa." | |
Eugénio de Andrade,"Poema XVIII | |
Impetuoso, o teu corpo é como um rio | |
onde o meu se perde. | |
Se escuto, só oiço o teu rumor. | |
De mim, nem o sinal mais breve. | |
Imagem dos gestos que tracei, | |
irrompe puro e completo. | |
Por isso, rio foi o nome que lhe dei. | |
E nele o céu fica mais perto. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"O tempo | |
sujo | |
Há dias que eu odeio | |
Como insultos a que não posso responder | |
Sem o perigo duma cruel intimidade | |
Com a mão que lança o pus | |
Que trabalha ao serviço da infecção | |
São dias que nunca deviam ter saído | |
Do mau tempo fixo | |
Que nos desafia da parede | |
Dias que nos insultam que nos lançam | |
As pedras do medo os vidros da mentira | |
As pequenas moedas da humilhação | |
Dias ou janelas sobre o charco | |
Que se espelha no céu | |
Dias do dia-a-dia | |
Comboios que trazem o sono a resmungara para o trabalho | |
O sono centenário | |
Mal vestido mal alimentado | |
Para o trabalho | |
A martelada na cabeça | |
A pequena morte maliciosa | |
Que na espiral das sirenes | |
Se esconde e assobia | |
Dias que passei no esgoto dos sonhos | |
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime | |
Onde vi o necessário onde aprendi | |
Que só entre os homens e por eles | |
Vale a pena sonhar. | |
" | |
Jorge Luis Borges,"Susana Soca | |
Com lento amor fitava os dispersosColoridos da tarde. E se perdiaCom gosto na complexa melodiaOu na curiosa existência dos versos.Não o elementar vermelho masOs grises Fiaram seu destino delicado,Apto a discernir e exercitadoTanto na oscilação como em matizes.Sem atrever-se a pisar este perplexoLabirinto, observava, sorrateira,As formas, o tumulto e a carreira,Como aquela outra dama do espelho.Deuses que moram para além do rogoA abandonaram a esse tigre, o Fogo." | |
Florbela Espanca,"Escreve-me... | |
Escreve-me! | |
Ainda que seja só | |
Uma palavra, uma palavra apenas, | |
Suave como o teu nome e casta | |
Como um perfume casto daçucenas! | |
Escreve-me!Há | |
tanto,há tanto tempo | |
Que te não vejo, amor!Meu coração | |
Morreu já,e no mundo aos pobres mortos | |
Ninguém nega uma frase doração! | |
""Amo-te!""Cinco | |
letras pequeninas, | |
Folhas leves e tenras de boninas, | |
Um poema damor e felicidade! | |
Não queres mandar-me esta palavra apenas? | |
Olha, manda então...brandas...serenas... | |
Cinco pétalas roxas de saudade..." | |
Miguel Torga,"Santo e Senha | |
Deixem | |
passar quem vai na sua estrada. | |
Deixem passar | |
Quem vai cheio de noite e de luar. | |
Deixem passar e não lhe digam nada | |
Deixem, que vai apenas | |
Beber água de sonho a qualquer fonte; | |
Ou colher açucenas | |
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte. | |
Vem da terra de todos, onde mora | |
E onde volta depois de amanhecer. | |
Deixem-no pois passar, agora | |
Que vai cheio de noite e solidão | |
Que vai ser uma estrela no chão. | |
" | |
Florbela Espanca,"As Quadras D’Ele III[16] | |
Gosto imenso dumas flores | |
Muito escuras, quase pretas, | |
Modestas, lindas graciosas | |
Que se chamam violetas | |
Por isso quando eu morrer, | |
Em prova do teu amor | |
Inunda de violetas | |
O caixão aonde eu for. | |
" | |
Luís de Camões,"Em prisões baixas fui um tempo atado | |
Em prisões baixas fui um tempo atado, | |
vergonhoso castigo de meus erros; | |
inda agora arrojando levo os ferros | |
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado. | |
Sacrifiquei a vida a meu cuidado, | |
que Amor não quer cordeiros, nem bezerros; | |
vi mágoas, vi misérias, vi desterros: | |
parece-me questava assi ordenado. | |
Contentei-me com pouco, conhecendo | |
que era o contentamento vergonhoso, | |
só por ver que cousa era viver ledo. | |
Mas minha estrela, que eu jágora entendo, | |
a Morte cega, e o Caso duvidoso, | |
me fizeram de gostos haver medo. | |
" | |
Ruy Belo,"Vestigia Dei | |
És tu quem perseguimos pelos lábios | |
e tens em equilíbrio os seres e o tempo | |
És tu quem está nos começos do mar | |
e as nossas palavras vão molhar-te os pés | |
Tu tens na tua mão as rédeas dos caminhos | |
descem do teu olhar as mais nobres cidades | |
onde nasceram os primeiros homens | |
e onde os últimos desejarão talvez morrer | |
Tu és maior que esta alegria de haver rios | |
e árvores ou ruas donde serem vistos | |
Por ti é que aceitamos a manhã | |
sacrificada aos vidros das janelas | |
aceitamos por ti o sol ou a neblina | |
que faz dos candeeiros sentinelas | |
É para ti que os pensamentos se orientam | |
e se dirigem os passos transviados | |
e o vento que nos veste nas esquinas | |
És sempre como aquele que encontramos | |
diariamente pela rua fora | |
e a pouco e pouco vemos onde mora | |
Só tu é que nos faltas quando reparamos | |
que os papéis nos vão envelhecendo | |
e os dias um por um morrendo em nossas mãos | |
És tu que vens com todos os versos | |
És tu quem pressentimos na chuva adivinhada | |
quando os olhos ainda se nos fecham | |
embora o sono nunca mais seja possível | |
É tua a face oposta a todas as manhãs | |
onde o tempo levanta ombros de espuma | |
que deixam fundas rugas pelas faces | |
Os céus contam contigo é para teu repouso | |
a terra combalida e sem caminhos | |
Ser indecomponível teu corpo foi maior | |
que vítimas e oblações. Quando tu vens | |
a solidão cai leve como a flor do lírio | |
e as aves nos pauis levantam voo | |
e há orvalho em teus primeiros pés | |
Não assistisses tu a esta nossa vida | |
caíssem-nos os gestos ou quebrados ou dispersos | |
e nenhum rosto decisivo um dia fecharia | |
todas as palavras com que dissemos os versos | |
" | |
Castro Alves,"A Cachoeira | |
MAS SÚBITO da noite no arrepio | |
Um mugido soturno rompe as trevas... | |
Titubantes — no álveo do rio — | |
Tremem as lapas dos titães coevas!... | |
Que grito é este sepulcral, bravio, | |
Que espanta as sombras ululantes, sevas? | |
É o brado atroador da catadupa | |
Do penhasco batendo na garupa!... | |
Quando no lodo fértil das paragens | |
Onde o Paraguaçu rola profundo, | |
O vermelho novilho nas pastagens | |
Come os caniços do torrão fecundo; | |
Inquieto ele aspira nas bafagens | |
Da negra sucruiúba o cheiro imundo... | |
Mas já tarde silvando o monstro voa... | |
E o novilho preado os ares troa! | |
Então doido de dor, sânie babando, | |
Coa serpente no dorso parte o touro... | |
Aos bramidos os vales vão clamando, | |
Fogem as aves em sentido choro... | |
Mas súbito ela às águas o arrastando | |
Contrai-se para o negro sorvedouro... | |
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, | |
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue. | |
Assim dir-se-ia que a caudal gigante | |
— Larga sucuruiúba do infinito — | |
Coas escamas das ondas coruscante | |
Ferrara o negro touro de granito!... | |
Hórrido, insano, triste, lacerante | |
Sobe do abismo um pavoroso grito... | |
E medonha a suar a rocha brava | |
As pontas negras na serpente crava!... | |
Dilacerado o rio espadanando | |
Chama as águas da extrema do deserto... | |
Atropela-se, empina, espuma o bando... | |
E em massa rui no precipício aberto... | |
Das grutas nas cavernas estourando | |
O coro dos trovões travam concerto... | |
E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas | |
Caem de horror no abismo estateladas... | |
A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! | |
A briga colossal dos elementos! | |
As garras do Centauro em paroxismo | |
Raspando os flancos dos parcéis sangrentos. | |
Relutantes na dor do cataclismo | |
Os braços do gigante suarentos | |
Agüentando a ranger (espanto! assombro!) | |
O rio inteiro, que lhe cai do ombro. | |
Grupo enorme do fero Laocoonte | |
Viva a Grécia acolá e a luta estranha!... | |
Do sacerdote o punho e a roxa fronte... | |
E as serpentes de Tênedos em sanha!... | |
Por hidra — um rio! Por áugure — um monte! | |
Por aras de Minerva — uma montanha! | |
E em torno ao pedestal laçados, tredos, | |
Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!... | |
" | |
Luís de Camões,"Quando de minhas mágoas a comprida | |
Quando de minhas mágoas a comprida | |
Maginação os olhos me adormece, | |
Em sonhos aquela alma me aparece | |
Que pera mim foi sonho nesta vida. | |
Lá nu~a saudade, onde estendida | |
A vista pelo campo desfalece, | |
Corro pera ela; e ela então parece | |
Que mais de mim se alonga, compelida. | |
Brado: -- Não me fujais, sombra benina! -- | |
Ela, os olhos em mim cum brando pejo, | |
Como quem diz que já não pode ser, | |
Torna a fugir-me; e eu gritando: -- Dina... | |
Antes que diga: -- mene, acordo, e vejo | |
Que nem um breve engano posso ter. | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Os Desaparecidos | |
De repente, naqueles dias, começaram | |
a desaparecer pessoas, estranhamente. | |
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito | |
naqueles dias. | |
Ia-se colher a flor oferta | |
e se esvanecia. | |
Eclipsava-se entre um endereço e outro | |
ou no táxi que se ia. | |
Culpado ou não, sumia-se | |
ao regressar do escritório ou da orgia. | |
Entre um trago de conhaque | |
e um aceno de mão, o bebedor sumia. | |
Evaporava o pai | |
ao encontro da filha que não via. | |
Mães segurando filhos e compras, | |
gestantes com tricots ou grupos de estudantes | |
desapareciam. | |
Desapareciam amantes em pleno beijo | |
e médicos em meio à cirurgia. | |
Mecânicos se diluíam | |
— mal ligavam o torno do dia. | |
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito | |
naqueles dias. | |
Desaparecia-se a olhos vistos | |
e não era miopia. Desaparecia-se | |
até à primeira vista. Bastava | |
que alguém visse um desaparecido | |
e o desaparecido desaparecia. | |
Desaparecia o mais conspícuo | |
e o mais obscuro sumia. | |
Até deputados e presidentes evanesciam. | |
Sacerdotes, igualmente, levitando | |
iam, aerefeitos, constatar no além | |
como os pecadores partiam. | |
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito | |
naqueles dias. | |
Os atores no palco | |
entre um gesto e outro, e os da platéia | |
enquanto riam. | |
Não, não era fácil | |
ser poeta naqueles dias. | |
Porque os poetas, sobretudo | |
— desapareciam. | |
Publicado no livro Política e paixão (1980). | |
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198" | |
Fernando Pessoa,"Quando era criança | |
Quando era criança | |
Vivi, sem saber, | |
Só para hoje ter | |
Aquela lembrança. | |
E hoje que sinto | |
Aquilo que fui. | |
Minha vida flui, | |
Feita do que minto. | |
Mas nesta prisão, | |
Livro único, leio | |
O sorriso alheio | |
De quem fui então. | |
02/10/1933" | |
Cecília Meireles,"Máquina Breve | |
O pequeno vaga-lume | |
com sua verde lanterna, | |
que passava pela sombra | |
inquietando a flor e a treva | |
— meteoro da noite, humilde, | |
dos horizontes da relva; | |
o pequeno vaga-lume, | |
queimada a sua lanterna, | |
jaz carbonizado e triste | |
e qualquer brisa o carrega: | |
mortalha de exíguas franjas | |
que foi seu corpo de festa. | |
Parecia uma esmeralda | |
e é um ponto negro na pedra. | |
Foi luz alada, pequena | |
estrela em rápida seta. | |
Quebrou-se a máquina breve | |
na precipitada queda. | |
E o maior sábio do mundo | |
sabe que não a conserta. | |
" | |
David Mourão-Ferreira,"Soneto do amor difícil | |
A praia abandonada recomeça | |
logo que o mar se vai, a desejá-lo: | |
é como o nosso amor, somente embalo | |
enquanto não é mais que uma promessa... | |
Mas se na praia a onda se espedaça, | |
há logo nostalgia duma flor | |
que ali devia estar para compor | |
a vaga em seu rumor de fim de raça. | |
Bruscos e doloridos, refulgimos | |
no silêncio de morte que nos tolhe, | |
como entre o mar e a praia um longo molhe | |
de súbito surgido à flor dos limos. | |
E deste amor difícil só nasceu | |
desencanto na curva do teu céu. | |
" | |
José Craveirinha,"Moçambiquicida | |
Das incursões bem sucedidas aos povoados | |
sobressaem na paisagem as patrícias | |
sacarinas capulanas de fumaça | |
e uma fervura de cinco | |
tabuadas e uns onze | |
- ou talvez só dez - | |
cadernos e um giz | |
espólio das escolas destruídas. | |
Sobrevivos moçambiquicidas | |
imolam-se mesclados | |
no infuturo." | |
Fernando Pessoa,"Falaram-me os homens em humanidade, | |
Falaram-me os homens em humanidade, | |
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. | |
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. | |
Cada um separado do outro por um espaço sem homens. | |
" | |
Antero de Quental,"A Germano Meireles | |
Só males são reais, só dor existe: | |
Prazeres só os gera a fantasia; | |
Em nada [um] imaginar, o bem consiste, | |
Anda o mal em cada hora e instante e dia. | |
Se buscamos o que é, o que devia | |
Por natureza ser não nos assiste; | |
Se fiamos num bem, que a mente cria, | |
Que outro remédio há [aí] senão ser triste? | |
Oh! Quem tanto pudera que passasse | |
A vida em sonhos só. E nada vira… | |
Mas, no que se não vê, labor perdido! | |
Quem fora tão ditoso que olvidasse… | |
Mas nem seu mal com ele então dormira, | |
Que sempre o mal pior é ter nascido! | |
" | |
Luís de Camões,"Na fonte está Leanor | |
Na fonte está Leanor | |
lavando a talha e chorando, | |
às amigas perguntando: | |
vistes lá o meu amor? | |
VOLTAS | |
Posto o pensamento nele, | |
porque a tudo o Amor a obriga, | |
cantava, mas a cantiga | |
eram suspiros por ele. | |
Nisto estava Leanor | |
o seu desejo enganando, | |
às amigas perguntando: | |
vistes lá o meu amor? | |
O rosto sobre üa mão, | |
os olhos no chão pregados, | |
que, do chorar já cansados, | |
algum descanso lhe dão. | |
Desta sorte Leanor | |
suspende de quando em quando | |
sua dor; e, em si tornando, | |
mais pesada sente a dor. | |
Não deita dos olhos água, | |
que não quer que a dor se abrande | |
Amor, porque em mágoa grande | |
seca as lágrimas a mágoa. | |
Depois que de seu amor | |
soube, novas perguntando, | |
demproviso a vi chorando. | |
Olhai que extremos de dor! | |
" | |
Luís de Camões,"Glosa a mote alheio | |
Vejo-a na alma pintada, | |
Quando me pede o desejo | |
O natural que não vejo. | |
Se só no ver puramente | |
Me transformei no que vi, | |
De vista tão excelente | |
Mal poderei ser ausente, | |
Enquanto o não for de mi. | |
Porque a alma namorada | |
A traz tão bem debuxada | |
E a memória tanto voa, | |
Que, se a não vejo em pessoa, | |
Vejo-a na alma pintada. | |
O desejo, que se estende | |
Ao que menos se concede, | |
Sobre vós pede e pretende, | |
Como o doente que pede | |
O que mais se lhe defende. | |
Eu, que em ausência vos vejo, | |
Tenho piedade e pejo | |
De me ver tão pobre estar, | |
Que então não tenho que dar, | |
Quando me pede o desejo. | |
Como àquele que cegou | |
É cousa vista e notória, | |
Que a Natureza ordenou | |
Que se lhe dobre em memória | |
O que em vista lhe faltou, | |
Assim a mim, que não rejo | |
Os olhos ao que desejo, | |
Na memória e na firmeza | |
Me concede a Natureza | |
O natural que não vejo. | |
" | |
Cecília Meireles,"Presença em Pompéia | |
Esta conta não pagarás: | |
— ficará sob uma cinza que não sabes. | |
Sob a cinza que ainda não sabes | |
ficará teu filho por nascer | |
e também os meninos que já sabiam desenhar nos muros. | |
Ficarão os figos que ontem puseste na cesta. | |
Ficarão as pinturas da tua sala | |
e as plantas do teu jardim, de estátuas felizes, | |
sob a cinza que não sabes. | |
Os gladiadores anunciados não lutarão | |
e amanhã não verás, próximo às termas, | |
a mulher que desejavas. | |
Tu ficarás com a chave da tua porta na mão; | |
tu, com o rosto da amada no peito; | |
amo e servo se unirão, no mesmo grito; | |
os cães se debaterão com mordaças de lava; | |
a mão não poderá encontrar a parede; | |
os olhos não poderão ver a rua. | |
As cinzas que não sabes voarão sobre Apolo e Ísis. | |
É uma noite ardente, a que se prepara, | |
enquanto a luz contorna a coluna e o jato dágua: | |
— a luz do sol que afaga pela última vez as roseiras verdes. | |
" | |
Florbela Espanca,"Árvores Do Alentejo | |
Horas mortas... curvadas aos pés do Monte | |
A planície é um brasido... e, torturadas, | |
As árvores sangrentas, revoltadas, | |
Gritam a Deus a bênção duma fonte! | |
E quando, manhã alta, o sol postonte | |
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas, | |
Esfíngicas, recortam desgrenhadas | |
Os trágicos perfis no horizonte! | |
Árvores! Corações, almas que choram, | |
Almas iguais à minha, almas que imploram | |
Em vão remédio para tanta mágoa! | |
Árvores! Não choreis! Olhai e vede: | |
-Também ando a gritar, morta de sede, | |
Pedindo a Deus a minha gota de água! | |
" | |
Miguel Torga,"São Leonardo da Galafura | |
À proa dum navio de penedos, | |
A navegar num doce mar de mosto, | |
Capitão no seu posto | |
De comando, | |
S. Leonardo vai sulcando | |
As ondas | |
Da eternidade, | |
Sem pressa de chegar ao seu destino. | |
Ancorado e feliz no cais humano, | |
É num antecipado desengano | |
Que ruma em direcção ao cais divino. | |
Lá não terá socalcos | |
Nem vinhedos | |
Na menina dos olhos deslumbrados; | |
Doiros desaguados | |
Serão charcos de luz | |
Envelhecida; | |
Rasos, todos os montes | |
Deixarão prolongar os horizontes | |
Até onde se extinga a cor da vida. | |
Por isso, é devagar que se aproxima | |
Da bem-aventurança. | |
É lentamente que o rabelo avança | |
Debaixo dos seus pés de marinheiro. | |
E cada hora a mais que gasta no caminho | |
É um sorvo a mais de cheiro | |
A terra e a rosmaninho! | |
" | |
Augusto dos Anjos,"A idéia | |
De onde ela vem?! De que matéria bruta | |
Vem essa luz sobre as nebulosas | |
Cai de incógnitas criptas misteriosas | |
Como estalactites de uma gruta?! | |
Vem da psicogenética e alta luta | |
Do feixe de moléculas nervosas, | |
Que, em desintegrações maravilhosas, | |
Delibera, e depois, quer e executa! | |
Vem do encéfalo absconso que a constringe, | |
Chega em seguida às cordas da laringe, | |
Tísica, tênue, mínima, raquítica ... | |
Quebra a força centrípeta que a amarra, | |
Mas, de repente, e quase morta, esbarra | |
No molambo da língua paralítica! | |
" | |
Fernando Pessoa,"A morte chega cedo, | |
A morte chega cedo, | |
Pois breve é toda vida | |
O instante é o arremedo | |
De uma coisa perdida. | |
O amor foi começado, | |
O ideal não acabou, | |
E quem tenha alcançado | |
Não sabe o que alcançou. | |
E a tudo isto a morte | |
Risca por não estar certo | |
No caderno da sorte | |
Que Deus deixou aberto. | |
11/09/1933" | |
Miguel Torga,"Brasil | |
Brasil | |
onde vivi, | |
Brasil onde penei, | |
Brasil dos meus assombros de menino: | |
Há quanto tempo já que te deixei, | |
Cais do lado de lá do meu destino! | |
Que milhas de angústia no mar da saudade! | |
Que salgado pranto no convés da ausência! | |
Chegar. | |
Perder-te mais. | |
Outra orfandade, | |
Agora sem o amparo da inocência. | |
Dois pólos de atracção no pensamento! | |
Duas ânsias opostas nos sentidos! | |
Um purgatório em que o sofrimento | |
Nunca avista um dos céus apetecidos. | |
Ah, desterro do rosto em cada face, | |
Tristeza dum regaço repartido! | |
Antes o desespero naufragasse | |
Ente o chão encontrado e o chão perdido. | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Último Soneto | |
Que rosas fugitivas foste ali! | |
Requeriam-te os tapetes, e vieste... | |
--- Se me dói hoje o bem que me fizeste, | |
É justo, porque muito te devi. | |
Em que seda de afagos me envolvi | |
Quando entraste, nas tardes que apareceste! | |
Como fui de percal quando me deste | |
Tua boca a beijar, que remordi... | |
Pensei que fosse o meu o teu cansaço --- | |
Que seria entre nós um longo abraço | |
O tédio que, tão esbelta, te curvava... | |
E fugiste... Que importa? Se deixaste | |
A lembrança violeta que animaste, | |
Onde a minha saudade a Cor se trava?... | |
" | |
Eugénio de Andrade,"Desde a aurora | |
Como um sol de polpa escurapara levar à boca,eis as mãos:procuram-te desde o chão,entre os veios do sonoe da memória procuram-te:à vertigem do arabrem as portas:vai entrar o vento ou o violentoaroma de uma candeia,e subitamente a feridarecomeça a sangrar:é tempo de colher: a noiteiluminou-se bago a bago:vais surgirpara beber de um tragocomo um grito contra o muro. Sou eu, desde a aurora,eu-a terra-que te procuro.de Obscuro Domínio" | |
Manuel Bandeira,"CHAMA E FUMO | |
Amor - chama e, depois, fumaça... | |
Medita no que vais fazer: | |
O fumo vem, a chama passa... | |
Gôzo cruel, ventura escassa, | |
Dono do meu e do teu ser, | |
Amor - chama e, depois, fumaça... | |
Tanto êle queima! e, por desgraça, | |
Queimado o que melhor houver, | |
O fumo vem, a chama passa... | |
Paixão puríssima ou devassa, | |
Triste ou feliz, pena ou prazer, | |
Amor - chama e, depois, fumaça... | |
A cada par que a aurora enlaça, | |
Como é pungente o entardecer! | |
O fumo vem, a chama passa... | |
Antes, todo êle é gôsto e graça. | |
Amor, fogueira linda a arder! | |
Amor - chama e, depois, fumaça... | |
Porquanto, mal se satisfaça, | |
(Como te poderei dizer?...) | |
O fumo vem, a chama passa... | |
A chama queima. O fumo embaça. | |
Tão triste que é! Mas, tem de ser... | |
Amor?... - chama e, depois, fumaça: | |
O fumo vem, a chama passa... | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Distante Melodia | |
Num sonho de Íris morto a oiro e brasa, | |
Vem-me lembranças doutro Tempo azul | |
Que me oscilava entre véus de tule - | |
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa. | |
Então os meus sentidos eram cores, | |
Nasciam num jardim as minhas ânsias, | |
Havia na minha alma Outras distâncias - | |
Distâncias que o segui-las era flores... | |
Caía Oiro se pensava Estrelas, | |
O luar batia sobre o meu alhear-me... | |
- Noites-lagoas, como éreis belas | |
Sob terraços-lis de recordar-me!... | |
Idade acorde de Inter-sonho e Lua, | |
Onde as horas corriam sempre jade, | |
Onde a neblina era uma saudade, | |
E a luz - anseios de Princesa nua... | |
Balaústres de som, arcos de Amar, | |
Pontes de brilho, ogivas de perfume... | |
Domínio inexprimível de Ópio e lume | |
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar... | |
Tapetes de outras Pérsias mais Oriente... | |
Cortinados de Chinas mais marfim... | |
Áureos Templos de ritos de cetim... | |
Fontes correndo sombra, mansamente... | |
Zimbórios-panteões de nostalgias, | |
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar... | |
Escadas de honra, escadas só, ao ar... | |
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias... | |
Lembranças fluidas... Cinza de brocado... | |
Irrealidade anil que em mim ondeia... | |
- Ao meu redor eu sou Rei exilado, | |
Vagabundo dum sonho de sereia... | |
" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Escavação | |
Numa | |
ânsia de Ter alguma cousa | |
Divago por mim mesmo a procurar, | |
Desço-me todo, em vão, sem nada achar, | |
E a minh alma perdida não repousa! | |
Nada tenho, decido-me a criar: | |
Brando a espada: sou luz harmoniosa | |
E chama que tudo ousa | |
Unicamente à força de sonhar... | |
Mas a vitória fulva esvai-se logo | |
E cinzas, cinzas, só em vez de fogo... | |
– Onde existo que não existo em mim? | |
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... | |
... ... | |
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... | |
... ... | |
Um cemitério falso sem ossadas – | |
Tudo outro espasmo que princípio ou fim... | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"Arte-final | |
Não basta um grande amor | |
para fazer poemas. | |
E o amor dos artistas, não se enganem, | |
não é mais belo | |
que o amor da gente. | |
O grande amante é aquele que silente | |
se aplica a escrever com o corpo | |
o que seu corpo deseja e sente. | |
Uma coisa é a letra, | |
e outra o ato, | |
– quem toma uma por outra | |
confunde e mente. | |
" | |
Florbela Espanca,"[Sem Titulo] | |
Li um dia, não sei onde, | |
Que em todos os namorados | |
Uns amam muito, e os outros | |
Contentam-se em ser amados. | |
Fico a cismar pensativa | |
Neste mistério encantado... | |
Digo pra mim: de nós dois | |
Quem ama e quem é amado?... | |
" | |
Manuel Bandeira,"Evocação do Recife | |
Recife | |
Não a Veneza americana | |
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais | |
Não o Recife dos Mascates | |
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois | |
— Recife das revoluções libertárias | |
Mas o Recife sem história nem literatura | |
Recife sem mais nada | |
Recife da minha infância | |
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado | |
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas | |
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê | |
na ponta do nariz | |
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras | |
mexericos namoros risadas | |
A gente brincava no meio da rua | |
Os meninos gritavam: | |
Coelho sai! | |
Não sai! | |
A distância as vozes macias das meninas politonavam: | |
Roseira dá-me uma rosa | |
Craveiro dá-me um botão | |
(Dessas rosas muita rosa | |
Terá morrido em botão...) | |
De repente | |
nos longos da noite | |
um sino | |
Uma pessoa grande dizia: | |
Fogo em Santo Antônio! | |
Outra contrariava: São José! | |
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. | |
Os homens punham o chapéu saíam fumando | |
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo. | |
Rua da União... | |
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância | |
Rua do Sol | |
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) | |
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... | |
...onde se ia fumar escondido | |
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... | |
...onde se ia pescar escondido | |
Capiberibe | |
— Capiberibe | |
Lá longe o sertãozinho de Caxangá | |
Banheiros de palha | |
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho | |
Fiquei parado o coração batendo | |
Ela se riu | |
Foi o meu primeiro alumbramento | |
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu | |
E nos pegões da ponte do trem de ferro | |
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras | |
Novenas | |
Cavalhadas | |
E eu me deitei no colo da menina e ela começou | |
a passar a mão nos meus cabelos | |
Capiberibe | |
— Capiberibe | |
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas | |
Com o xale vistoso de pano da Costa | |
E o vendedor de roletes de cana | |
O de amendoim | |
que se chamava midubim e não era torrado era cozido | |
Me lembro de todos os pregões: | |
Ovos frescos e baratos | |
Dez ovos por uma pataca | |
Foi há muito tempo... | |
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros | |
Vinha da boca do povo na língua errada do povo | |
Língua certa do povo | |
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil | |
Ao passo que nós | |
O que fazemos | |
É macaquear | |
A sintaxe lusíada | |
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem | |
Terras que não sabia onde ficavam | |
Recife... | |
Rua da União... | |
A casa de meu avô... | |
Nunca pensei que ela acabasse! | |
Tudo lá parecia impregnado de eternidade | |
Recife... | |
Meu avô morto. | |
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro | |
como a casa de meu avô. | |
" | |
Olavo Bilac,"A Boneca | |
Deixando a bola e a peteca | |
Com que inda há pouco brincavam, | |
Por causa de uma boneca, | |
Duas meninas brigavam. | |
Dizia a primeira: ""É minha!"" | |
— ""É minha!"" a outra gritava; | |
E nenhuma se continha, | |
Nem a boneca largava. | |
Quem mais sofria (coitada!) | |
Era a boneca. Já tinha | |
Toda a roupa estraçalhada, | |
E amarrotada a carinha. | |
Tanto puxaram por ela, | |
Que a pobre rasgou-se ao meio, | |
Perdendo a estopa amarela | |
Que lhe formava o recheio. | |
E, ao fim de tanta fadiga, | |
Voltando à bola e à peteca, | |
Ambas, por causa da briga, | |
Ficaram sem a boneca... | |
In: BILAC, Olavo. Poesias infantis. 18.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 195" | |
José Gomes Ferreira,"O general | |
(""Depois de fortemente bombardeada, a cidade X foi ocupada pelas nossas tropas."") | |
O general entrou na cidade | |
ao som de cornetas e tambores ... | |
Mas por que não há ""vivas"" | |
nem flores? | |
Onde está a multidão | |
para o aplaudir, em filas na rua? | |
E este silêncio | |
Caiu de alguma cidade da Lua? | |
Só mortos por toda a parte. | |
Mortos nas árvores e nas telhas, | |
nas pedras e nas grades, | |
nos muros e nos canos ... | |
Mortos a enfeitarem as varandas | |
de colchas sangrentas | |
com franjas de mãos ... | |
Mortos nas goteiras. | |
Mortos nas nuvens. | |
Mortos no Sol. | |
E prédios cobertos de mortos. | |
E o céu forrado de pele de mortos. | |
E o universo todo a desabar cadáveres. | |
Mortos, mortos, mortos, mortos ... | |
Eh! levantai-vos das sarjetas | |
e vinde aplaudir o general | |
que entrou agora mesmo na cidade, | |
ao som de tambores e de cornetas! | |
Levantai-vos! | |
É preciso continuar a fingir vida, | |
E, para multidão, para dar palmas, | |
até os mortos servem, | |
sem o peso das almas. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"A leitura | |
(brechtiana) | |
Não te deixes enrolar! | |
És tu quem tem de pagar... | |
Põe o dedo em cada letra. | |
Pergunta:-Por que estáqui? | |
" | |
Fernando Pessoa,"I - Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito | |
CHUVA OBLÍQUA | |
Poemas Interseccionistas de Fernando Pessoa | |
I | |
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito | |
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios | |
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra | |
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... | |
O porto que sonho é sombrio e pálido | |
E esta paisagem é cheia de sol deste lado... | |
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio | |
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... | |
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... | |
O vulto do cais é a estrada nítida e calma | |
Que se levanta e se ergue como um muro, | |
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores | |
Com uma horizontalidade vertical, | |
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... | |
Não sei quem me sonho... | |
Súbito toda a água do mar do porto é transparente | |
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, | |
Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto. | |
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa | |
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem | |
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, | |
E passa para o outro lado da minha alma... | |
II | |
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, | |
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... | |
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso. | |
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro... | |
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes | |
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar... | |
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça | |
E sente-se chiar a água no facto de haver coro... | |
A missa é um automóvel que passa | |
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... | |
Súbito vento sacode em esplendor maior | |
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo | |
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe | |
Com o som de rodas de automóvel... | |
E apagam-se as luzes da igreja | |
Na chuva que cessa... | |
III | |
A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro... | |
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente | |
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides... | |
Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena | |
Ser o perfil do rei Cheops. | |
De repente paro... | |
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... | |
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro | |
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena... | |
Ouço a Esfinge rir por dentro | |
O Som da minha pena a correr no papel... | |
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, | |
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim, | |
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve | |
Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos, | |
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo | |
E uma alegria de barcos embandeirados erra | |
Numa diagonal difusa | |
Entre mim e o que eu penso... | |
Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!... | |
IV | |
Que pandeiretas o silêncio deste quarto!.. | |
As paredes estão na Andaluzia | |
E há danças sensuais no brilho fixo da luz... | |
De repente todo o espaço pára... | |
Pára, escorrega, desembrulha-se..., | |
E num canto do tecto, muito mais longe do que ele está, | |
Abrem mãos brancas janelas secretas | |
E há ramos de violetas caindo | |
De haver uma noite de Primavera lá fora | |
Sobre o eu estar de olhos fechados... | |
V | |
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel | |
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... | |
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora, | |
E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal... | |
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça | |
Que passam lá fora cheias de estar sob o sol, | |
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira, | |
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar, | |
E os dois grupos encontram-se e penetram-se | |
Até formarem só um que é os dois... | |
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira, | |
E a noite que pega na feira e a levanta no ar, | |
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol, | |
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, | |
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça, | |
E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira, | |
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol... | |
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira | |
E, misturado, o pó das duas realidades cai | |
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos | |
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... | |
Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos... | |
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira, | |
Sozinha e contente como o dia de hoje... | |
VI | |
O maestro sacode a batuta, | |
E lânguida e triste a música rompe... | |
Lembra-me a minha infância, aquele dia | |
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal, | |
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado | |
O deslizar de um cão verde, e do outro lado | |
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo... | |
Prossegue a música, e eis na minha infância | |
De repente entre mim e o maestro, muro branco, | |
Vai e vem a bola, ora um cão verde, | |
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo... | |
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância | |
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música | |
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal | |
Vestida de cão verde, tornando-se jockey amarelo... | |
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...) | |
Atiro-a de encontro à minha infância e ela | |
Atravessa e o teatro todo que está aos meus pés | |
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde | |
E um cavalo azul que aparece por cima do muro | |
Do meu quintal... E a música atira com bolas | |
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos | |
De batuta e rotações confusas de cães verdes | |
E cavalos azuis e jockeys amarelos... | |
Todo o teatro é um muro branco de música | |
Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade | |
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo... | |
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, | |
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa | |
Com orquestras a tocar música, | |
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei | |
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância... | |
E a música cessa como um muro que desaba, | |
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, | |
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se | |
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, | |
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, | |
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo... | |
8 de Março de 1914 | |
(Orpheu, nº 2, Abril-Maio-Junho de 1915)" | |
Florbela Espanca,"Rústica | |
Ser a moça mais linda do povoado, | |
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, | |
Ver descer sobre o ninho aconchegado | |
A benção do Senhor em cada filho. | |
Um vestido de chita bem lavado, | |
Cheirando a alfazema e a tomilho... | |
Com o luar matar a sede ao gado, | |
Dar às pombas o sol num grão de milho... | |
Ser pura como a água da cisterna, | |
Ter confiança numa vida eterna | |
Quando descer à «terra da verdade»... | |
Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! | |
Dou por elas meu trono de Princesa, | |
E todos os meus Reinos de Ansiedade. | |
" | |
Florbela Espanca,"Silêncio!... | |
No fadário que é meu, neste penar, | |
Noite alta, noite escura, noite morta, | |
Sou o vento que geme e quer entrar, | |
Sou o vento que vai bater-te à porta... | |
Vivo longe de ti, mas que me importa? | |
Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear | |
Em roda à tua casa, a procurar | |
Beber-te a voz, apaixonada, absorta! | |
Estou junto de ti, e não me vês... | |
Quantas vezes no livro que tu lês | |
Meu olhar se pousou e se perdeu! | |
Trago-te como um filho nos meus braços! | |
E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos... | |
Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!... | |
" | |
Charles Baudelaire,"O Heautontimoroumenos | |
Sem cólera te espancarei, | |
Como o açougueiro abate a rês, | |
Como Moisés à rocha fez! | |
De tuas pálpebras farei, | |
Para meu Saara inundar, | |
Correr as águas do tormento. | |
O meu desejo ébrio de alento | |
Sobre o teu pranto irá flutuar | |
Como um navio no mar alto, | |
E em meu saciado coração | |
Os teus soluços ressoarão | |
Como um tambor que toca o assalto! | |
Não sou acaso um falso acorde | |
Nessa divina sinfonia, | |
Graças à voraz Ironia | |
Que me sacode e que me morde? | |
Em minha voz ela é quem grita! | |
E anda em meu sangue envenenado! | |
Eu sou o espelho amaldiçoado | |
Onde a megera se olha aflita. | |
Eu sou a faca e o talho atroz! | |
Eu sou o rosto e a bofetada! | |
Eu sou a roda e a mão crispada, | |
Eu sou a vítima e o algoz! | |
Sou um vampiro a me esvair | |
- Um desses tais abandonados | |
Ao riso eterno condenados, | |
E que não podem mais sorrir." | |
Eugénio de Andrade,"Cristalizações | |
1.Com palavras amo. 2.Inclina-te como a rosasó quando o vento passe. 3.Despe-tecomo o orvalhona concha da manhã. 4.Amacomo o rio sobe os últimos degrausao encontro do seu leito. 5.Como podemos florirao peso de tanta luz? 6.Estou de passagem: ama o efémero. 7. Onde espero morrerserá amanhã ainda? de Ostinato Rigore" | |
Cecília Meireles,"Lamento do Oficial por seu Cavalo Morto | |
Nós merecemos a morte, | |
porque somos humanos | |
e a guerra é feita pelas nossas mãos, | |
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra, | |
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens | |
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação. | |
Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia, | |
os cálculos do gesto, | |
embora sabendo que somos irmãos. | |
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados | |
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros! | |
Que delírio sem Deus, nossa imaginação! | |
E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada, | |
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno, | |
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração. | |
Animal encantado - melhor que nós todos! | |
- que tinhas tu com este mundo | |
dos homens? | |
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada | |
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam... | |
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos... | |
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos! | |
(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.) | |
" | |
Fernando Pessoa,"Sétimo (II): D. FILIPA DE LENCASTRE | |
Que enigma havia em teu seio | |
Que só gênios concebia? | |
Que arcanjo teus sonhos veio | |
Velar, maternos, um dia? | |
Volve a nós teu rosto sério, | |
Princesa do Santo Graal, | |
Humano ventre do Império, | |
Madrinha de Portugal! | |
" | |
Adélia Prado,"O vestido | |
No armário do meu quarto escondo de | |
tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. | |
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes | |
delicadas. | |
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. | |
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. | |
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada: | |
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão. | |
De tempo e traça meu vestido me guarda. | |
" | |
Cora Coralina,"Ô de Casa! | |
(...) | |
Acontecia à noite, alta noite com chuva, frio ou lua clara, | |
passantes com cargueiros e família darem: ""Ô, de casa..."" | |
Meu avô era o primeiro a levantar, abrir a janela: | |
""Ô de fora... Tome chegada."" | |
O chefe do comboio se adiantava: | |
""De passagem para o comércio levando cargas, a patroa perrengue, | |
mofina, pedia um encosto até ""demanhã"". | |
Mais, um fecho para os ""alimais"". | |
Meu avô abria a porta, franqueava a casa. | |
Tia Nhá-Bá, de candeia na mão, procurava a cozinha, | |
acompanhada de Ricarda sonolenta. Avivar o fogo, fazer café, a praxe, | |
Aquecer o leite. Meu avô ouvia as informações. Não especulava. | |
Oferecia acomodação, no dentro, quarto de hóspedes. | |
Quase sempre agradeciam. Se arrumavam ali mesmo no vasto alpendre | |
[coberto | |
Descarregavam as mulas, encostavam a carga. | |
Tia Nhá-Bá comparecia, oferecia bacião de banho à dona, e aos | |
[meninos, | |
quitandas. | |
Aceitavam ou não. Queriam, só mais, aquele encosto, | |
estendiam os couros, baixeiros, arreatas, se encostavam. | |
Meu avô franqueava o paiol. Milho à vontade para os animais de sela, | |
[de carga. | |
Eles acendiam fogo, se arranjavam naquele agasalho bondoso, | |
[primitivo. | |
Levantávamos curiosas, afoitas, ver os passantes. | |
Acompanhá-los ao curral, oferecer as coisas da casa. | |
Ajoujavam os cargueiros, remetiam as bruacas nas cangalhas. | |
Faziam suas despedidas, pediam a conta das despesas. | |
Meu avô recusava qualquer pagamento — Lei da Hospitalidade. | |
Os camaradas já tinham feito o almoço lá deles. Já tinha madrugado | |
para as restantes cinco léguas. Convidava-se a demorar mais na volta. | |
Despediam-se em gratidão e repouso. | |
Era assim no antigamente, naqueles velhos reinos de Goiás. | |
In: CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 4. ed. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 198" | |
Almeida Garrett,"As Minhas Asas (1884?) | |
Eu tinha umas asas brancas, | |
Asas que um anjo me deu, | |
Que, em me eu cansando da terra, | |
Batia-as, voava ao céu. | |
— Eram brancas, brancas, brancas, | |
Como as do anjo que mas deu: | |
Eu inocente como elas, | |
Por isso voava ao céu. | |
Veio a cobiça da terra, | |
Vinha para me tentar; | |
Por seus montes de tesouros | |
Minhas asas não quis dar. | |
— Veio a ambição, coas grandezas, | |
Vinham para mas cortar, | |
Davam-me poder e glória; | |
Por nenhum preço as quis dar. | |
Porque as minhas asas brancas, | |
Asas que um anjo me deu, | |
Em me eu cansando da terra, | |
Batia-as, voava ao céu. | |
Mas uma noite sem lua | |
Que eu contemplava as estrelas, | |
E já suspenso da terra, | |
Ia voar para elas, | |
— Deixei descair os olhos | |
Do céu alto e das estrelas... | |
Vi entre a névoa da terra, | |
Outra luz mais bela que elas. | |
E as minhas asas brancas, | |
Asas que um anjo me deu, | |
Para a terra me pesavam, | |
Já não se erguiam ao céu. | |
Cegou-me essas luz funesta | |
De enfeitiçados amores... | |
Fatal amor, negra hora | |
Foi aquela hora de dores! | |
— Tudo perdi nessa hora | |
Que provei nos seus amores | |
O doce fel do deleite, | |
O acre prazer das dores. | |
E as minhas asas brancas, | |
Asas que um anjo me deu, | |
Pena a pena me caíram... | |
Nunca mais voei ao céu. | |
Material Coligido por Ricardo Madeira - ricmadeira@mail.telepac.pt | |
" | |
Eugénio de Andrade,"O muro é branco | |
O muro é branco | |
e bruscamente | |
sobre o branco do muro cai a noite. | |
Há uma cavalo próximo do silêncio, | |
uma pedra fria sobre a boca, | |
pedra cega de sono. | |
Amar-te-ia se viesses agora | |
ou inclinasses | |
o teu rosto sobre o meu tão puro | |
e tão perdido, | |
ó vida." | |
Thiago de Mello,"Lição de Escuridão | |
Caboclo companheiro meu de várzea, | |
contigo cada dia um pouco aprendo | |
as ciências desta selva que nos une. | |
Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos, | |
me levas a ler, nas lonjuras do céu, | |
os recados escritos pelas nuvens, | |
me avisas do perigo dos remansos | |
e quando devo desviar de viés a proa da canoa | |
para varar as ondas de perfil. | |
Sabes o nome e o segredo de todas as árvores, | |
a paragem calada que os peixes preferem | |
quando as águas começam a crescer. | |
Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar. | |
identificas todos os pássaros da selva. | |
Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas). | |
atravessas a noite no centro da mata. | |
corajoso e paciente na tocaia da caça. | |
a traição dos felinos não te vence. | |
Contigo aprendo as leis da escuridão, | |
quando me apontas na distância da margem, | |
viajando na noite sem estrelas, | |
a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande | |
de onde me fui pequenino e te deixei. | |
De novo no chão da infância, | |
contigo aprendo também | |
que ainda não tens olhos para ver | |
as raízes de tua vida escura, | |
não sabes quais são os dentes que te devoram | |
nem os cipós que te amarram à servidão. | |
Nos teus olhos opacos | |
aprendo o que nos distingue. | |
Já repartes comigo a ciência e a paciência. | |
Quero contigo repartir a esperança, | |
estrela vigilante em minha fronte | |
e em teu olhar apenas um tição | |
encharcado de engano e cativeiro. | |
Barreirinha, 1981 | |
Publicado no livro Mormaço na Floresta (1981). | |
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Bárbaro | |
Enroscam-se-lhe ao trono as serpentes doiradas | |
Que, César, mandei vir dos meus viveiros de África. | |
Mima a luxúria a nua — Salomé asiática... | |
Em volta, carne a arder — virgens supliciadas... | |
Mitrado de oiro e lua, em meu trono de esfinges — | |
Dentes rangendo, olhos de insónia e maldição — | |
Os teus coleios vis, nas infâmias que finges, | |
Alastram-se-me em febre e em garras de leão. | |
Sibilam os répteis... Rojas-te de joelhos... | |
Sangue e escorre já da boca profanada... | |
Como bailas o vício, ó torpe, ó debochada — | |
Densos sabbats de cio teus frenesis vermelhos... | |
Mas ergues-te num espasmo — e às serpentes domas | |
Dando-lhes a trincar teu sexo nu, aberto... | |
As tranças desprendeste... O teu cabelo, incerto, | |
Inflama agora um halo a crispações e aromas... | |
Embalde mando arder as mirras consagradas: | |
O ar apodreceu da tua perversão... | |
Tenho medo de ti num calafrio de espadas — | |
A minha carne soa a bronzes de prisão... | |
Arqueia-me o delírio — e sufoco, esbracejo... | |
A luz enrijeceu zebrada em planos de aço... | |
A sangue se virgula e se desdobra o espaço... | |
Tudo é loucura já quanto em redor alvejo!... | |
Traço o manto e, num salto, entre uma luz que corta, | |
Caio sobre a maldita... Apunhalo-a em estertor.. | |
................................................. | |
— Não sei quem tenho aos pés: se a dançarina morta, | |
Ou a minha Alma só que me explodiu de cor... | |
" | |
Affonso Romano de Sant'Anna,"A Implosão da Mentira ou o Episódio do Riocentro | |
1 | |
Mentiram-me. Mentiram-me ontem | |
e hoje mentem novamente. Mentem | |
de corpo e alma, completamente. | |
E mentem de maneira tão pungente | |
que acho que mentem sinceramente. | |
Mentem, sobretudo, impune/mente. | |
Não mentem tristes. Alegremente | |
mentem. Mentem tão nacional/mente | |
que acham que mentindo história afora | |
vão enganar a morte eterna/mente. | |
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases | |
falam. E desfilam de tal modo nuas | |
que mesmo um cego pode ver | |
a verdade em trapos pelas ruas. | |
Sei que a verdade é difícil | |
e para alguns é cara e escura. | |
Mas não se chega à verdade | |
pela mentira, nem à democracia | |
pela ditadura. | |
Publicado no livro Política e paixão (1984). | |
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198" | |
Mário de Sá-Carneiro,"Serradura | |
Serradura | |
A minha vida sentou-se | |
E não há quem a levante , | |
Que desde o Poente ao Levante | |
A minha vida fartou-se. | |
E ei-la,a mona ,lá está, | |
Estendida ,a perna traçada , | |
No infindável sofá | |
Da minha Alma estofada . | |
Pois é assim:a minha Alma | |
Outrora a sonhar de Rússias, | |
Espapaçou-se de calma, | |
E hoje sonha só pelúcias. | |
Vai aos Cafés,pede um bock, | |
Lê o ""Matin"" de castigo , | |
E não há nenhum remoque | |
Que a regresse ao Oiro antigo! | |
Dentro de mim é um fardo | |
Que não pesa ,mas que maça: | |
O zumbido dum moscardo, | |
Ou comichão que não passa. | |
Folhetim da ""Capital"" | |
Pelo o nosso Júlio Dantas - | |
Ou qualquer coisa entre tantas | |
Duma antipatia igual … | |
O raio já bebe vinho, | |
Coisa que nunca fazia, | |
E fuma o seu cigarrinho | |
Em plena burocracia!… | |
Qualquer dia ,pela certa , | |
Quando eu mal me precate, | |
É capaz dum disparate , | |
Se encontra uma porta aberta… | |
Isto assim não pode ser… | |
Mas como achar um remédio? | |
-P´ra acabar este intermédio | |
Lembrei-me de endoidecer: | |
O que era fácil -partindo | |
Os móveis do meu hotel, | |
Ou para a rua saindo | |
De barrete de papel | |
A gritar ""Viva a Alemanha""… | |
Mas a minha Alma,em verdade, | |
Não merece tal façanha, | |
Tal prova de lealdade. | |
Vou deixá-la-decidido- | |
No lavabo dum Café, | |
Como um anel esquecido. | |
É um final mais raffiné. | |
" | |
Fernando Pessoa,"Tenho em mim como uma bruma | |
Tenho em mim como uma bruma | |
Que nada é nem contém | |
A saudade de coisa nenhuma, | |
O desejo de qualquer bem. | |
Sou envolvido por ela | |
Como por um nevoeiro | |
E vejo luzir a última estrela | |
Por cima da ponta do meu cinzeiro. | |
Fumei a vida. Que incerto | |
Tudo quanto vi ou li! | |
E todo o mundo é um grande livro aberto | |
Que em ignorada língua me sorri. | |
16/07/1934" | |
Florbela Espanca,"Versos De Orgulho | |
O mundo quer-me mal porque ninguém | |
Tem asas como eu tenho ! Porque Deus | |
Me fez nascer Princesa entre plebeus | |
Numa torre de orgulho e de desdém. | |
Porque o meu Reino fica para além ... | |
Porque trago no olhar os vastos céus | |
E os oiros e clarões são todos meus ! | |
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém ! | |
O mundo ? O que é o mundo, ó meu Amor ? | |
__O jardim dos meus versos todo em flor ... | |
A seara dos teus beijos, pão bendito ... | |
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços ... | |
__São os teus braços dentro dos meus braços, | |
Via Láctea fechando o Infinito. | |
" | |
Manuel Bandeira,"A MATA | |
A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se! | |
A mata hoje tem alguma coisa para dizer. | |
E ulula, e contorce-se toda, como a atriz de uma pantomima | |
trágica. | |
Cada galho rebelado | |
Inculca a mesma perdida ânsia. | |
Todos eles sabem o mesmo segredo pânico. | |
Ou então - é que pedem desesperadamente a mesma instante coisa. | |
Que saberá a mata? Que pedirá a mata? | |
Pedirá água? | |
Mas a água despenhou-se há pouco, fustigando-a, escorraçando-a, | |
saciando-a como aos alarves. | |
Pedirá o fogo para a purificação das necroses milenárias? | |
Ou não pede nada, e quer falar e não pode? | |
Ter surpreendido o segredo da terra pelos ouvidos finíssimos | |
das suas raízes? | |
A mata agita-se, revuloteia, controce-se toda e sacode-se! | |
A mata está hoje como uma multidão em delírio coletivo. | |
Só uma touça de bambus, à parte, | |
Balouça... levemente... levemente... levemente... | |
E parece sorrir do delírio geral. | |
" | |
Alexandre O'Neill,"Auto-retrato | |
ONeill (Alexandre), moreno | |
português, | |
cabelo asa de corvo; da angústia da cara, | |
nariguete que sobrepuja de través | |
a ferida desdenhosa e não cicatrizada. | |
Se a visagem de tal sujeito é o que vês | |
(omita-se o olho triste e a testa iluminada) | |
o retrato moral também tem os seus quês | |
(aqui, uma pequena frase censurada...) | |
No amor? No amor crê (ou não fosse ele ONeill!) | |
e tem a veleidade de o saber fazer | |
(pois amor não há feito) das maneiras mil | |
que são a semovente estátua do prazer. | |
Mas sobre a ternura, bebe de mais e ri-se | |
do que neste soneto sobre si mesmo disse... | |
" | |
Alexandre O'Neill,"A história da moral | |
Você tem-me cavalgado | |
seu safado! | |
Você tem-me cavalgado, | |
mas nem por isso me pôs | |
a pensar como você. | |
Que uma coisa pensa o cavalo; | |
outra quem está a montá--lo. | |
" | |
Florbela Espanca,"Vozes Do Mar | |
Quando o sol vai caindo sobre as águas | |
Num nervoso delíquio d’oiro intenso, | |
Donde vem essa voz cheia de mágoas | |
Com que falas à terra, ó mar imenso?... | |
Tu falas de festins, e cavalgadas | |
De cavaleiros errantes ao luar? | |
Falas de caravelas encantadas | |
Que dormem em teu seio a soluçar? | |
Tens cantos depopeias?Tens anseios | |
Damarguras? Tu tens também receios, | |
Ó mar cheio de esperança e majestade?! | |
Donde vem essa voz,ó mar amigo?... | |
... Talvez a voz do Portugal antigo, | |
Chamando por Camões numa saudade! | |
" | |
António Ramos Rosa,"Estou vivo e escrevo sol | |
Eu escrevo versos ao meio-dia | |
e a morte ao sol é uma cabeleira | |
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo | |
Estou vivo e escrevo sol | |
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam | |
no vazio fresco | |
é porque aboli todas as mentiras | |
e não sou mais que este momento puro | |
a coincidência perfeita | |
no acto de escrever e sol | |
A vertigem única da verdade em riste | |
a nulidade de todas as próximas paragens | |
navego para o cimo | |
tombo na claridade simples | |
e os objectos atiram suas faces | |
e na minha língua o sol trepida | |
Melhor que beber vinho é mais claro | |
ser no olhar o próprio olhar | |
a maraviha é este espaço aberto | |
a rua | |
um grito | |
a grande toalha do silêncio verde | |
de Estou Vivo E Escrevo Sol(1966) | |
" | |
Mário Cesariny,"lembra-te | |
Lembra-te | |
que todos os momentos | |
que nos coroaram | |
todas as estradas | |
radiosas que abrimos | |
irão achando sem fim | |
seu ansioso lugar | |
seu botão de florir | |
o horizonte | |
e que dessa procura | |
extenuante e precisa | |
não teremos sinal | |
senão o de saber | |
que irá por onde fomos | |
um para o outro | |
vividos | |
" | |
João Cabral de Melo Neto,"Menino de Engenho | |
A cana cortada é uma foice. | |
Cortada num ângulo agudo, | |
ganha o gume afiado da foice | |
que a corta em foice, um dar-se mútuo. | |
Menino, o gume de uma cana | |
cortou-me ao quase de cegar-me, | |
e uma cicatriz, que não guardo, | |
soube dentro de mim guardar-se. | |
A cicatriz não tenho mais; | |
o inoculado, tenho ainda; | |
nunca soube é se o inoculado | |
(então) é vírus ou vacina. | |
Publicado no livro A escola das facas (1980). | |
In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.417-418. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira" | |
Eugénio de Andrade,"Oiço correr a noite pelos sulcos | |
do rosto-dir-se-ia que me chama,que subitamente me acaricia,a mim,que nem sequer sei aindacomo juntar as sílabas do silêncioe sobre elas adormecer. de O Peso Da Sombra" | |
Jorge de Sena,"Uma pequenina luz | |
Uma pequenina luz bruxuleante | |
não na distância brilhando no extremo da estrada | |
aqui no meio de nós e a multidão em volta | |
une toute petite lumière | |
just a little light | |
una picolla... em todas as línguas do mundo | |
uma pequena luz bruxuleante | |
brilhando incerta mas brilhando | |
aqui no meio de nós | |
entre o bafo quente da multidão | |
a ventania dos cerros e a brisa dos mares | |
e o sopro azedo dos que a não vêem | |
só a adivinham e raivosamente assopram. | |
Uma pequena luz | |
que vacila exacta | |
que bruxuleia firme | |
que não ilumina apenas brilha. | |
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda. | |
Muda como a exactidão como a firmeza | |
como a justiça. | |
Brilhando indeflectível. | |
Silenciosa não crepita | |
não consome não custa dinheiro. | |
Não é ela que custa dinheiro. | |
Não aquece também os que de frio se juntam. | |
Não ilumina também os rostos que se curvam. | |
Apenas brilha bruxuleia ondeia | |
indefectível próxima dourada. | |
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha. | |
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha. | |
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha. | |
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha. | |
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: | |
brilha. | |
Uma pequenina luz bruxuleante e muda | |
como a exactidão como a firmeza | |
como a justiça. | |
Apenas como elas. | |
Mas brilha. | |
Não na distância. Aqui | |
no meio de nós. | |
Brilha | |
" | |
Ruy Belo,"Breve Sonata em Sol [UM (Menor, Claro) | |
A solidão da árvore sozinha | |
no campo do verão alentejano | |
é só mais solitária do que a minha | |
e teima ali na terra todo o ano | |
quando nem chuva ou vento já lhe fazem companhia | |
e o calor é tão triste como o é somente a alegria | |
Eu passo e passo muito mais que o próprio dia | |
" | |
Fernando Pessoa,"A Lua (dizem os Ingleses) | |
A LUA (dizem os ingleses) | |
É feita de queijo verde. | |
Por mais que pense mil vezes | |
Sempre uma idéia se perde. | |
E era essa, era, era essa, | |
Que haveria de salvar | |
Minha alma da dor da pressa | |
De... não sei se é desejar. | |
Sim, todos os meus reveses | |
São de estar sentir pensando... | |
A Lua (dizem os ingleses) | |
É azul de quando em quando. | |
" | |
Fernando Pessoa,"QUALQUER MÚSICA | |
QUALQUER MÚSICA | |
Qualquer música, ah, qualquer, | |
Logo que me tire da alma | |
Esta incerteza que quer | |
Qualquer impossível calma! | |
Qualquer música – guitarra, | |
Viola, harmónio, realejo... | |
Um canto que se desgarra | |
Um sonho em que nada vejo... | |
Qualquer coisa que não vida! | |
Jota, fado, a confusão | |
Da última dança vivida... | |
Que eu não sinta o coração! | |
(Presença, nº 10, Março de 1928)" | |
Maria Teresa Horta,"Segredo | |
Não contes do meu | |
vestido | |
que tiro pela cabeça | |
nem que corro os | |
cortinados | |
para uma sombra mais espessa | |
Deixa que feche o | |
anel | |
em redor do teu pescoço | |
com as minhas longas | |
pernas | |
e a sombra do meu poço | |
Não contes do meu | |
novelo | |
nem da roca de fiar | |
nem o que faço | |
com eles | |
a fim de te ouvir gritar | |
" | |
Jorge de Sena,"Dizer Porquê e Para Quê | |
Dizer porquê e para quê do que descubro | |
que a vida ensina ou julgo que ela ensina? | |
Se o só descubro quando passou tempo, | |
e a gente já passou como eu também? | |
Se quem me leia não me entenderá?- | |
ou são mais velhos e já sabem, | |
ou mais antigos e têm outra língua | |
ou são mais jovens crendo que o saber | |
é a sua descoberta em que de passo em passo | |
descobrirão que a vida não ensina | |
senão o que mais tarde em nós descobriremos | |
de quanto nunca foi ou não escolhemos. | |
Di-lo-ei por mim e para mim? Porquê | |
Aos outros? Que comum tenho com eles | |
além de lhes dizer que não importa | |
dizer o que não dizem? se não há | |
maneira alguma de viver de novo | |
o que quiséramos que a vida fora? | |
E se outros não de nós mas de si mesmos | |
já descobriram de outro modo a mesma coisa, | |
ou hão-de descobri-la? De experiência | |
Falamos e falemos. E nenhuma | |
serve a ninguém. Que tê-la não atendo | |
Ou que não tê-la tendo-a é o que se diz dizendo." | |
Florbela Espanca,"Nihil Novum | |
Na penumbra do pórtico encantado | |
De Bruges, noutras eras, já vivi; | |
Vi os templos do Egito com Loti; | |
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado. | |
No horizonte de bruma opalizado, | |
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti! | |
O silêncio dos claustros conheci | |
Pelos poentes de nácar e brocado... | |
Mordi as rosas brancas de Ispaã | |
E o gosto a cinza em todas era igual! | |
Sempre a charneca bárbara e deserta, | |
Triste, a florir, numa ansiedade vã! | |
Sempre da vida ? o mesmo estranho mal, | |
E o coração ? a mesma chaga aberta! | |
" | |
Ruy Belo,"Requiem por um cão | |
Cão que matinalmente farejavas a calçada | |
as ervas os calhaus os seixos e os paralelipípedos | |
os restos de comida os restos de manhã | |
a chuva antes caída e convertida numa como que auréola da terra | |
cão que isso farejavas cão que nada disso já farejas | |
Foi um segundo súbito e ficaste ensanduichado | |
esborrachado comprimido e reduzido | |
debaixo do rodado imperturbável do pesado camião | |
Que tinhas que não tens diz-mo ou ladra-mo | |
ou utiliza então qualquer moderno meio de comunicação | |
diz-me lá cão que faísca fugiu do teu olhar | |
que falta nesse corpo afinal o mesmo corpo | |
só que embalado ou liofilizado? | |
Eras vivo e morreste nada mais teus donos | |
se é que os tinhas sempre que de ti falavam | |
falavam no presente falam no passado agora | |
Mudou alguma coisa de um momento para o outro | |
coisa sem importância de maior para quem passa | |
indiferente até ao halo da manhã de pensamento posto | |
em coisas práticas em coisas próximas | |
Cão que morreste tão caninamente | |
cão que morreste e me fazes pensar parar até | |
que o polícia me diz que siga em frente | |
Que se passou então? um simples cão que era e já não é | |
" | |
Miguel Torga,"Afonso de Albuquerque | |
Quando esta escrevo a Vossa Alteza | |
Estou com um soluço que é sinal de morte. | |
Morro à vista de Goa, a fortaleza | |
Que deixo à índia a defender-lhe a sorte. | |
Morro de mal com todos que servi, | |
Porque eu servi o rei e o povo todo. | |
Morro quase sem mancha, que não vi | |
Alma sem mancha à tona deste lodo. | |
De Oeste a Leste a índia fica vossa; | |
De Oeste a Leste o vento da traição | |
Sopra com força para que não possa | |
O rei de Portugal tê-la na mão. | |
Em Deus e em mim o império tem raízes | |
Que nem um furacão pode arrancar... | |
Em Deus e em mim, que temos cicatrizes | |
Da mesma lança que nos fez lutar. | |
Em mais alguém, Senhor, em mais ninguém | |
O meu sonho cresceu e avassalou | |
A semente daninha que de além | |
A tua mão, Senhor, lhe semeou. | |
Por isso a índia há de acabar em fumo | |
Nesses doiros paços de Lisboa; | |
Por isso a pátria há de perder o rumo | |
Das muralhas de Goa. | |
Por isso o Nilo há de correr no Egito | |
E Meca há de guardar o muçulmano | |
Corpo dum moiro que gerou meu grito | |
De cristão lusitano. | |
Por isso melhor é que chegue a hora | |
E outra vida comece neste fim... | |
Do que fiz não cuido agora: | |
A índia inteira falará por mim. | |
" | |
Luís de Camões,"Descalça vai para a fonte | |
Descalça vai para a fonte | |
Lianor pela verdura; | |
Vai fermosa, e não segura. | |
Leva na cabeça o pote, | |
O testo nas mãos de prata, | |
Cinta de fina escarlata, | |
Sainho de chamelote; | |
Traz a vasquinha de cote, | |
Mais branca que a neve pura. | |
Vai fermosa e não segura. | |
Descobre a touca a garganta, | |
Cabelos de ouro entrançado | |
Fita de cor de encarnado, | |
Tão linda que o mundo espanta. | |
Chove nela graça tanta, | |
Que dá graça à fermosura. | |
Vai fermosa e não segura. | |
" | |
Fernando Pessoa,"GLÁDIO | |
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça | |
A sua santa guerra. | |
Sagrou-me seu em honra e em desgraça, | |
Às horas em que um frio vento passa | |
Por sobre a fria terra. | |
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me | |
A fronte com o olhar; | |
E esta febre de Além, que me consome, | |
E este querer grandeza são seu nome | |
Dentro em mim a vibrar. | |
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá | |
Em minha face calma. | |
Cheio de Deus, não temo o que virá, | |
Pois venha o que vier, nunca será | |
Maior do que a minha alma. | |
" | |
Mário Quintana,"A Arte de Ser Bom | |
Sê bom. Mas ao coração | |
Prudência e cautela ajunta. | |
Quem todo de mel se unta, | |
Os ursos o lamberão." | |
Eugénio de Andrade,"Shelley sem anjos e sem pureza, | |
Shelley sem anjos e sem pureza,aqui estou à tua espera nesta praça,onde não há pombos mansos mas tristezae uma fonte por onde a água já não passa. Das árvores não te falo pois estão nuas;das casas não vale a pena porque estãogastas pelo relógio e pelas luase pelos olhos de quem espera em vão. De mim podia falar-te,mas não seique dizer-te desta história de maneiraque te pareça natural a minha voz. Só sei que passo aqui a tarde inteiratecendo estes versos e a noiteque te há-de trazer e nos há-de de deixar sós de As Mãos e os Frutos" | |
Manuel Bandeira,"MADRIGAL MELANCÓLICA | |
O que eu adoro em ti | |
Não é sua beleza | |
A beleza é em nós que existe | |
A beleza é um conceito | |
E a beleza é triste | |
Não é triste em si | |
Mas pelo que há nela | |
De fragilidade e incerteza | |
O que eu adoro em ti | |
Não é a tua inteligência | |
Mas é o espírito sutil | |
Tão ágil e tão luminoso | |
Ave solta no céu matinal da montanha | |
Nem é tua ciência | |
Do coração dos homens e das coisas | |
O que eu adoro em ti | |
Não é a tua graça musical | |
Sucessiva e renovada a cada momento | |
Graça aérea como teu próprio momento | |
Graça que perturba e que satisfaz | |
O que eu adoro em ti | |
Não é a mãe que já perdi | |
E nem meu pai | |
O que eu adoro em tua natureza | |
Não é o profundo instinto matinal | |
Em teu flanco aberto como uma ferida | |
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza | |
O que adoro em ti lastima-me e consola-me | |
O que eu adoro em ti é A VIDA !!! | |
" | |
Casimiro de Abreu,"No Lar | |
Terra da minha pátria, abre-me o seio | |
Na morte — ao menos ................ | |
GARRETT. | |
I | |
Longe da pátria, sob um céu diverso | |
Onde o sol como aqui tanto não arde, | |
Chorei saudades do meu lar querido | |
— Ave sem ninho que suspira à tarde. — | |
No mar — de noite — solitário e triste | |
Fitando os lumes que no céu tremiam, | |
Ávido e louco nos meus sonhos d'alma | |
Folguei nos campos que meus olhos viam. | |
Era pátria e família e vida e tudo, | |
Glória, amores, mocidade e crença, | |
E, todo em choros, vim beijar as praias | |
Por que chorara nessa longa ausência. | |
Eis-me na pátria, no país das flores, | |
— O filho pródigo a seus lares volve, | |
E consertando as suas vestes rotas, | |
O seu passado com prazer revolve! | |
Eis meu lar, minha casa, meus amores, | |
A terra onde nasci, meu teto amigo, | |
A gruta, a sombra, a solidão, o rio | |
Onde o amor me nasceu — cresceu comigo. | |
Os mesmos campos que eu deixei criança, | |
Árvores novas... tanta flor no prado!... | |
Oh! como és linda, minha terra d'alma, | |
— Noiva enfeitada para o seu noivado! — | |
Foi aqui, foi ali, além... mais longe, | |
Que eu sentei-me a chorar no fim do dia; | |
— Lá vejo o atalho que vai dar na várzea... | |
Lá o barranco por onde eu subia!... | |
Acho agora mais seca a cachoeira | |
Onde banhei-me no infantil cansaço... | |
— Como está velho o laranjal tamanho | |
Onde eu caçava o sanhaçu a laço!... | |
Como eu me lembro dos meus dias puros! | |
Nada m'esquece -... e esquecer quem há de?.. | |
— Cada pedra que eu palpo, ou tronco, ou folha, | |
Fala-me ainda dessa doce idade! | |
Eu me remoço recordando a infância, | |
E tanto a vida me palpita agora | |
Que eu dera oh! Deus! a mocidade inteira | |
Por um só dia de viver d'outrora! | |
É a casa!.. as salas, estes móveis... tudo, | |
O crucifixo pendurado ao muro... | |
O quarto do oratório... a sala grande | |
Onde eu temia penetrar no escuro!... | |
E ali... naquele canto... o berço armado! | |
E minha mana, tão gentil, dormindo! | |
E mamãe a contar-me histórias lindas | |
Quando eu chorava e a beijava rindo! | |
Oh! primavera! oh! minha mãe querida! | |
Oh! mana! — anjinho que eu amei com ânsia — | |
Vinde ver-me, em soluços — de joelhos — | |
Beijando em choros este pó da infância! | |
Imagem - 00300004 | |
Publicado no livro As primaveras (1859). Poema integrante da série Livro I. | |
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.1 | |
NOTA: Poema composto de 2 partes, cada uma com 13 quadras, datado de Indaiaçu, 185" | |
Chacal,"Bermuda Larga | |
muitos lutam por uma causa justa | |
eu prefiro uma bermuda larga | |
só quero o que não me encha o saco | |
luto pelas pedras fora do sapato | |
In: CHACAL. Comício de tudo: poesia e prosa. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.179. (Cantadas literárias, 48" | |
Luís de Camões,"Quem pode livre ser, gentil Senhora, | |
Quem pode livre ser, gentil Senhora, | |
Vendo-vos com juízo sossegado, | |
Se o Menino que de olhos é privado | |
Nas meninas de vossos olhos mora? | |
Ali manda, ali reina, ali namora, | |
Ali vive das gentes venerado; | |
Que o vivo lume e o rosto delicado | |
Imagens são nas quais o Amor se adora. | |
Quem vê que em branca neve nascem rosas | |
Que fios crespos de ouro vão cercando, | |
Se por entre esta luz a vista passa, | |
Raios de ouro verá, que as duvidosas | |
Almas estão no peito trespassando | |
Assim como um cristal o Sol trespassa. | |
" | |
Ferreira Gullar,"Traduzir-se | |
Uma parte de mim | |
é todo mundo: | |
outra parte é ninguém: | |
fundo sem fundo. | |
Uma parte de mim | |
é multidão: | |
outra parte estranheza | |
e solidão. | |
Uma parte de mim | |
pesa, pondera: | |
outra parte | |
delira. | |
Uma parte de mim | |
almoça e janta: | |
outra parte | |
se espanta. | |
Uma parte de mim | |
é permanente: | |
outra parte | |
se sabe de repente. | |
Uma parte de mim | |
é só vertigem: | |
outra parte, | |
linguagem. | |
Traduzir uma parte | |
na outra parte | |
- que é uma questão | |
de vida ou morte - | |
será arte?" | |
Herberto Helder,"Contou que caminhava pela praia, nu, correndo | |
Contou que caminhava pela praia, nu, correndo. | |
A areia, o sol, o mar | |
e a profundidade extenuante do céu embriagavam-no. | |
Tinha extrema consciência da sua nudez, | |
e isso também o embriagava. | |
Ia com um projecto, ou uma missão, estava carregado disso, | |
mas tratava-se de uma coisa inominável. | |
Na praia havia gente, gente - parece | |
- com aquela disponibilidade sem expectativa de gente na praia. | |
Estavam em fato de banho, ociosos e alheios, | |
e quando ele passou pelo meio dessa gente, | |
a nudez que tinha ainda o embriagou mais. | |
Depois encontrou três degraus de pedra, e subiu-os. | |
Continuou a correr, mas - segundo contou - o céu, | |
a água e a areia, agora perdidos, haviam deixado nele um espaço vazio | |
onde a ideia de missão se pôs a crescer, | |
de modo que ele se encontrava como que louco da pressa | |
e densidade da missão. | |
Corria por um labirinto de pedra negra, e nos corredores estreitos | |
havia casas baixas, também de pedra, sem telhado | |
e sem portas e janelas. | |
Eram cubos negros abertos em cima | |
e com buracos rectangulares a diversos níveis. | |
Correndo pelos labirintos, cheio da sua pressa | |
e com a espessa ansiedade daquela mensagem tão obscura, | |
viu de súbito que tinha dois longos pénis brancos, | |
delgados e longos como duas serpentes, | |
e que se contorciam e enroscavam um no outro. | |
Não sentiu medo, sequer espanto, | |
pois imaginava que isso também fazia parte da missão. | |
Mas quando avistou uma mulher | |
que vinha em sentido contrário ao dele, | |
procurou tapar com as mãos aqueles pénis-serpentes | |
nascidos da mesma sombria raiz, quando corria pelos labirintos. | |
As serpentes, no entanto, | |
escapavam-se por entre os dedos, desciam-lhe pelas pernas, | |
subiam pelo ventre até ao peito, | |
avançavam em todas as direcções, com as suas pequenas cabeças cruéis, | |
sagazes e esfaimadas. | |
Cheio de terror, parou em frente de uma daquelas casas. | |
Quando entrou - contou ele - | |
havia já perdido a sua força e leveza de mensageiro, | |
e apen |
Sign up for free
to join this conversation on GitHub.
Already have an account?
Sign in to comment